sexta-feira, 7 de junho de 2024

COMO ME DOÍ VER O SUL ASSIM

COMO ME DOI VER O SUL ASSIM

por Fernando Alves

Como me doi ver o Sul assim
Dos pontos cardeais, no coração, o que ficou em mim
Do carmesim das miçangas vendidas nos briques do meu parque Farroupilha, da estrada, das pontes, dos montes aos montes.
Do cheiro do mate, da erva fervida e sugada, das letras saudosas do Ramil
Num passo bem fundo na relva, num alegrete dito em falsete, de tantas pelotas chutadas ao pé do laranjal! 
Senão baianas, uruguaianas, de um sul da Santa Maria, ao pé de uma Santa Cruz.
De um sul afro, negro, gringo, polaco, colono europeu e ameríndio.
Tão sul, tão céu, tão sol, tão azul, tão límpido em minha memória, como nas calçadas do Quintana.
Sim! No sul eu também passei, e fui passarinho!
Foi minha Canaã. Lá já montei meu ninho.
Fui chimango, mas também fui maragato!
Fui Colorado na beira de um rio, mas também vi os grandes pelearem do outro lado,  em suas arenas! Entre gols, aplausos e vaias dos gratos aos ingratos!
Fui gasômetro, num Guaíba estrelado na passagem de ano.
Vi gaitas tocando, com pandeiros ribombando. 
Vi templos, terreiros, centros espirituais e catedrais! 
Vi brigas de rua, mas presenciei confraternizações entre rivais!
Vi gente simples e complexa, num sotaque que ainda me resta. Fiz festa, junto ao júbilo dos  vitoriosos, como também estive à mesa, compartilhando misérias com os derrotados. 
No sul, tive dúvidas, mas também muitas certezas!
Em minhas caminhadas, esbarrei em muitas veredas.
Como nos passeios no Bonfim, ou na boêmia sem fim de um nirvana. De seus piuchados, piqueteiros ou lunáticos. De suas prendas vistosas, das tradicionalistas entre saias e vestidos, às sorumbáticas de voluptuosas botas.
De amigos saudosos, até os esquecidos, que se te esquecem não esquecem o porquê de serem esquecidos.
Duma Cidade Baixa que sabia ser tão Alta em atitude, cultivando do vício a virtude de seus tipos humanos em esquinas, ora doces, ora rudes.
Nas caminhadas pelo Gramado, ou num trem para uma São Leopoldo, tão Nova Germânia, tão Novo Hamburgo. Tão Caxias, de gladiadores tornados pacificadores, com suas localidades, povoados, ribanceiras, liberdades.
Ou do frio invernal ou calor infernal, 
Do tédio e do movimento em ruas bucólicas, outrora caóticas.
Num porto, mais nem tanto alegre, mas, que dentro de mim, o barco sempre atraca e segue.

Segue pelos vales, outrora esverdeados, agora assombrados pela chuva, por uma natureza que se inflama e chama.
Desfaz-se a conversa em temporal: eis-me aqui, final dos tempos! Preso no vendaval.
Como se Deus lançasse o castigo
Ao gaudério  pelo duro, só se restasse um rio escuro, 
Que transborda, as mentiras que ninguém  lhe contou.
Que homens não podem ser maiores do que Deus
Nem os mais belos, nem os mais ricos, nem os mais patriotas!
Apesar dos engravatados e suas negativas! Negam a chuva! Negam as dores! Negam uma natureza que açoita!
Das mais altas torres, sentem-se protegidos na sua hipocrisia!
Mas quem seria? Senão o vento e a tempestade iminente  a desafiar.
Tamanha chuva não poupa nem os caudilhos!

O que fizeram aos teus filhos, ó meu querido e singelo sul?!
Que pena! Quão idiotas, fomos nós e todos, ao brincar com fogo no chão da fábrica, ao invés de cuidar do pasto.
Quem diria, que do fogo das chaminés, que fura as nuvens, surgia a vingança de um vento ferido e gélido, sob relâmpagos e trovoadas.
O talvez finalmente se fez!
No pasto o gado se agita e os cavalos fogem.
Um minuano triste não é mais o mesmo, pois veio cedo, com recados de má sorte.
Hoje, no meu sul, a correnteza transforma o rio em lápide.
As crianças se assombram e os cães latem.
Está na hora de partir.

Nunca o partir foi sinônimo de fugir.
Mas sim o medo de sumir
É o que faz parte do duro verbo partir.
Alguns apenas com a roupa do corpo e um lamento
Outros, prostram-se sós em telhados, sofrimento.
Pranteiam do Taquari ao Jacuí, de um Rio dos Sinos, que badalam, até minha querida Rio Pardo!
Ali, onde jazem insepultos sentimentos de uma terra ora sepultada
A dureza da dúvida sobre o óbvio é não ter como ter dúvida do óbvio de sofrer.
Dizem que o gaúcho tem a saudade  gravada nos olhos
Saudade essa que não cansa, submersa
Altivez imersa é do meu cantar a lembrança 
Pois as lembranças não são levadas pelas águas 
Saudade não alaga, não afoga, não se cobre de lama.
Mas invade o peito; 
Faz-me virar à noite pranteado  pela cama,
inundando-me de dor, suado, mas sem calor. 
E o odor do mate na minha cuia de chimarrão não vai embora! 
A tempestade que assombra, fez-se senhora!
Enquanto isso, a noite cai!
As águas recuam, como num último lamento traduzido em recado: não volte, o que só pode voltar!
O rio caudaloso não me cala! Aquilo que tenta me calar, multiplica-se!
Continuo a cantar, lágrimas copiosas como a chuva, e no meu canto, digo!
Como me doi, ver-te, Sul! Sem mim!

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

SOBRE DESFILES E CARAPUÇAS

Na sua obra sobre linguagem e estética, "As palavras e as coisas", o pensador francês Michel Foucault indicava que até o final do século XVI, a arte e o saber eram baseados, sobretudo, na semelhança. Como num espelho, tudo que era visto e dito deveria representar indubitavelmente a realidade. Os símbolos, quase esquecidos, seguiam uma relação de conveniência; ou seja, buscava-se, no conhecimento sobre as coisas, uma identificação com aquilo que fosse conveniente aos seus valores e suas paixões. Hoje em dia, em termos de "dissonância cognitiva"(termo utilizado pela primeira vez, na psicologia, em 1954, pelo norte-americano Leon Fastinger), em ambientes socialmente polarizados, a arte, como por exemplo, as fantasias e adereços de um desfile de Carnaval, podem geram interpretações distintas, que, muitas vezes, se não destoam da realidade, criam novas realidades, ao sabor da narrativa populista e popularesca daqueles que, como diz o dito popular, querem ver "pelo em ovo"!

Não podia ser diferente acerca da, no mínimo excêntrica (porque não dizer maldosamente oportunista) manifestação do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo-SINDPESP, por meio de uma nota de repúdio à apresentação da Escola de Samba Vai-Vai, no Carnaval deste ano. O motivo da revolta foi a passagem de um carro alegórico durante o desfile da escola no Anhembi, que apresentava a figura de um policial militar fardado e de chifres, enquanto era tocado samba-enredo "Sobrevivendo ao Inferno", baseado numa canção do grupo de hip-hop paulistano, Racionais MC.

Seria de causa espanto, se já não fosse recorrente personalidades nas redes sociais ou entidades de classe quererem tomar as dores dos operadores da segurança pública, alegando o SINDPESP, no caso da Vai-Vai, que o samba-enredo agredia os profissionais das polícias, produzindo um verdadeiro escárnio com esses agentes da lei. Não demorou para que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, apoiador do ex-presidente Bolsonaro, saísse em defesa da nota do sindicato, defendendo, também, o que era pedido na nota: uma retratação pública da Escola de Samba paulista.

Ora, não obstante uma entidade representativa de delegados ter tomado o lugar de associações de praças e oficiais da Polícia Militar, retratados expressivamente no desfile carnavalesco, há no meio policial brasileiro centenas de profissionais que não se sentiram ofendidos com o desfile da Vai-Vai, dentre eles eu, que também componho (com orgulho) os efetivos policiais. Por um simples motivo: uma polícia que persegue, espanca, tortura e mata pretos e pobres da periferia não me representa!

Assim, no retorno ao significado das palavras em relação às coisas, ao  mesmo tempo que os ilustres representantes da entidade de classe citada compreenderam como um ataque a polícia brasileira a utilização da figura de um capacete policial com chifres, outros podem compreender  a imagem do carro alegórico  como simbolização do genocídio negro, historicamente retratado em letra e prosa na literatura (e nos relatórios de violência policial no Brasil). Acerca disso, nas redes sociais, diversos policiais, integrantes do Movimento Policiais Antifascismo, entenderam como mais uma perseguição ao povo negro e pobre a nota do SINDPESP exigindo retratação da Vai-Vai, atacando a falsa vitimização do suposto escárnio à figura do policial, como pretexto para disseminar mais preconceito e desinformação quanto ao genocídio do povo negro. Agindo desta forma, estes policiais militantes agiram  na contramão de parlamentares, egressos do meio policial, que comumente aderem ao discurso do tiro, arma e bomba, como uma forma de fortalecer o discurso polarizado da extrema-direita, tão bem representada pelo bolsonarismo.

Faz parte do discurso autoritário e da narrativa protofascista o culto à autoridade a qualquer custo. Desta forma, mesmo num desfile carnavalesco, onde deve prevalecer a liberdade de expressão e pensamento, pois se trata de um evento que lida com a arte e a linguagem, por meio da música, dança e imagens simbólicas das fantasias e alegorias, para os defensores dos discursos de lei e ordem, qualquer crítica à autoridade do poder do Estado, mesmo que legítima, por se referir aos excessos e abusos históricos de agentes armados contra a população periférica, é visto com um escárnio, um injusto ataque contra abnegados servidores e servidoras que expõem a risco suas vidas todos os dias, no combate à criminalidade. Ora, não confundamos as coisas. Em tempos de ignorância, pós-verdade e fake news, com um emburrecimento progressivo do senso comum, não nos deixemos levar pela confusão de narrativas.

A violência do crime afeta tanto as Polícias quanto à sociedade, principalmente a população periférica. Sobretudo por meio do crime organizado e a violência armada das facções e milícias, anualmente milhares de homens e mulheres, em sua imensa maiores, jovens, negros e pardos, são feridos ou mortos, seja na condição de vítimas da ação de criminosos, seja na condição de policiais em serviço, atingidos por essa mesma violência. Em momento algum, a defesa da vida e a integridade física de policiais confronta-se com a crítica a violência arbitrária do Estado, na ação de agentes que abusam de sua autoridade e praticam todo tipo de agressões e torturas, sob o pretexto de combater o crime. Desta forma, não se ver representado com chifres numa escola de samba significa que, em momento algum, concebo o bom policial como referido na crítica a violência do Estado por meio da arte, mas sim, somente o mau policial. Por que eu defenderia, portanto, maus policiais?

A relação entre coisas e as palavras que a definem encontra, agora, um novo léxico, numa expressão em português que, de expressão a simbolizar um tecido, passou a representar uma gíria que muito se adequa  a aqueles que preferem se valer do discurso dissonante, de que a realidade é somente aquilo que eles querem ver, e não aquilo que realmente é. Assim, carapuça deixa de ser apenas um gorro, para simbolizar algo que é enfiado na cabeça de alguns integrantes do meio policial brasileiro, que há muito tempo já vestiram carapuças autoritárias que representam um velho, anacrônico e repressivo modelo de polícia, e, quando não, representam um mau governo felizmente derrubado pelo voto democrático, apesar dessas carapuças também representarem o golpismo. Entre o capacete do policial com chifres do desfile da Vai Vai, que, para deputados do PL, demonizam a Polícia, e aqueles que vestem a carapuça do protofascismo, prefiro o colorido da democracia e as imagens cintilantes de um Carnaval, que após uma triste pandemia, realizou-se novamente no Brasil, mostrando uma triste realidade de brutalidade através da arte, mesmo que isto mexa com os brios daqueles que deveriam reconhecer e não estimular tal brutalidade.




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