terça-feira, 28 de abril de 2009

"Voar,voar, subir, subir..." mas não com o dinheiro da Câmara!


"Voar, voar, subir, subir, ir por onde for. Descer até o céu cair ou mudar de cor". Podem me chamar de brega, mas, pra quem conhece os versos iniciais da canção "Sonho de Ícaro", do cantor Biafra, famosa nas rádios na década de oitenta, sabe que a paródia desses versos serve agora como anedota comparativa das últimas notícias do Congresso, sobre a farra de passagens aéreas utilizadas pelos deputados.


Foi-se o "trem da alegria", agora é o "voo da folia". A última dos nossos "nobres" representantes no Parlamento deu-se a partir de notícias sobre o colunável empresário e dublê de deputado, Fábio Faria, do PMN do Rio Grande do Norte, quando se descobriu que ele custeou as passagens aéreas de sua então namorada, a apresentadora Adriane Galisteu, assim como de sua sogra, até Miami, com dinheiro da Câmara, referente à verba destinada aos parlamentares para passagens aéreas. Além disso, Faria custeou também a vinda a cidade de Natal das estrelas globais Samara Felippo, Sthefany Brito e seu irmão, o ator Kayky Brito, para participar das festas do Carnaval fora de época na cidade, no camarote vip do Carnatal. Faria tornou-se o mais jovem deputado federal envolvido em esbanjamento de dinheiro público, tão somente para fins pessoais. Com um detalhe, apesar de ter devolvido o dinheiro (depois de muita relutância), o deputado informou que seu desvio ético não foi uma ilegalidade (como realmente, pasmem, não foi), mas foi apenas um "erro pontual", segundo o que diz matéria da revista Veja do dia 22 de abril.


Acontece que esses "erros pontuais" são cometidos, sem distinção, praticamente em todos os gabinetes parlamentares de Brasília, entre vários deputados, independente do espectro político, seja de esquerda ou de direita, em todas as agremiações, seja lá quais diversos sejam os motivos. Para se ter uma ideia, no outro lado dos grupos políticos que fazem o Congresso, lá na extrema-esquerda, até mesmo ilustres deputados do P-Sol como Luciana Genro, do Rio Grande do Sul, até Chico Alencar, do Rio de Janeiro, utilizaram indevidamente a verba da Câmara com passagens aéreas para custear terceiros, com motivações diferentes dos fins originais da benesse institucional, qual seja, a de proporcionar o deslocamento do parlamentar até suas bases políticas de origem ( o estado que o elegeu), onde, para bom entendedor, competiria tão somente ao próprio parlamentar, e a mais ninguém, valer-se da passagem, com fins unicamente políticos e institucionais.

Até Fernando Gabeira, do PV do Rio, outrora um dos bastiões da moralidade e da defesa da ética na política, caiu na tentação da passagem fácil, acomodando-se com a mordomia, concedendo passagem para que uma de suas filhas visitasse a outra no Havaí, ou para fins mais modestos e até humanitários, quando financiou com verbas da Câmara a viagem de um monge budista de Florianópolis até São Paulo. Bom, no último caso até se justifica, em parte, a "boquinha", pois, ao menos, sabe-se que monges budistas são avessos a materialismos em seu voto de pobreza e lisos até a goela, demonstrando até a preocupação religiosa do "verde" deputado em querer enviar um dos representantes de Buda da serena Floripa, até a "material" selva de pedra paulista. Só falta agora financiar religiosos daimistas da Amazônia até às ruas do Rio de Janeiro, pra ver se conseguem substituir a cocaína e o crack que devastam o Rio de Janeiro do deputado, por chá de ayuhasca ou por uma prosaica vitamina de abacate, ecologicamente correta. Tudo, claro, financiado com verba da Câmara, tudo com dinheiro do contribuinte!

Ao menos, o deputado Gabeira teve a ombridade de, no momento de ver que a "casa caiu"(ou se preferir, metaforicamente, o "avião caiu") na farra de passagens aéreas financiadas com dinheiro público, antecipar a confissão do erro cometido, antes que o apedrejassem, vindo a confessar publicamente: "sim, assim como os outros, eu também caí em tentação". Gabeira, em suas palavras (segundo a Revista Época), "caiu na ilusão patrimonialista", ou seja, traduzindo do sociologuês: cresceu o olho, deixando-se levar pelas facilidades do cargo. Para um político que até pouco tempo atrás quase se elegeu prefeito do Rio, com direito à gravação de vinheta com artistas "cabeça feita" ou "odara", como Caetano Veloso, Lucélia Santos, Du Moskovis, Nelson Motta e outros, queima de incenso para atrair bons fluidos (pra não dizer outra substância), e que viu perder parte decisiva do seu eleitorado, após chamar uma vereadora de suburbana, parece que a conta das passagens aéreas reembolsadas por Gabeira custou bem caro. Acredito que os cariocas podem até aguentar serem chamados de suburbanos (um pecado para qualquer carioca, uma injúria grave, pior do que ser chamado de "paraíba"), porém, tendo agora que arcar com as passagens da filha do deputado pro Havaí, como se as ondas de lá fossem melhores que as de Ipanema, aí não dá! Perdeu, sangue bão, perdeu! Nada haver!


E tem o caso dos deputados do P-SOl. Ahhh, sim, voltando ao P-SOl. A deputada federal Luciana Genro afirmou que, sim, utilizou verba de seu gabinete para financiar passagem aérea, da visita do delegado Protógenes Queiroz até a capital gaúcha, num evento pela ética, contra a corrupção (que paradoxo!) organizado pelo partido. No entender da deputada, os nobres fins políticos do evento, justificavam a utilização de sua cota pessoal de passagens aéreas, para financiar a vinda do novo popstar do combate à corrupção, famoso desde a prisão do banqueiro Daniel Dantas, e das espetaculares reviravoltas da Operação Satiagraha, da Polícia Federal. Imagino a justificativa ideológica para tal fato. Afinal, em eventos contra a burguesia, vale tudo na luta de classes, até mesmo usar dinheiro da burguesia para financiar a vinda de pessoas que a combatam. Mesmo que, por "burguesia", entenda-se aí todo contribuinte brasileiro.

E sobrou para o PT. Ahaaa! Os tucanos adoram essa! Como para estimular seu festival de mancadas, já que há muito tempo encontrava-se fora da mídia, o ex-queridinho do PT paulista e ex-presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, além de demonstrar que ainda não aprendeu a lição desde as denúncias do Mensalão, onde foi acusado de receber dinheiro do hoje indiciado empresário Marcos Valério, Cunha ainda apareceu na lista dos parlamentares que aproveitou a farra das passagens aéreas, tendo usado o dinheiro da verba para viajar a Bariloche, acompanhado da mulher e da filha. Por menos do que isso a ex-senadora Benedita da Silva, do PT carioca, acabou perdendo o cargo de ministra da ação social, quando viajou para um congresso evangélico em Buenos Aires, em 2003. Pelo menos, no caso da ex-ministra, assim como no caso de Gabeira, religião teve algo haver em termos, ao menos para pedir a absolvição divina dos envolvidos, após a condenação pela opinião pública. No caso de Cunha, não.

Agora a maior desfaçatez, ou o argumento que, de tão absurdo chega a ser prosaico, foi a reclamação do deputado Silvio Costa, do PDT de Pernambuco, diante de tanto bafafá com o uso irregular de passagens áereas. "Minha mulher me telefonou do Recife reclamando que agora não vamos poder nos encontrar mais. Ela me ama, e já está com saudades". Ahhhhhhhh! Tadinho do deputado! O povo brasileiro, tão ingrato e tão mal amado, não sabe o que é o amor. Vai acabar com o casamento dos parlamentares. Louvo ao deputado Costa pela declaração de amor a sua esposa. Ao menos, amor ele tem a mulher, ao contribuinte brasileiro, não.

Argumentos que chegam a ser risíveis, como o apresentado acima por vários parlamentares, acerca da necessidade de utilização da verba de passagens aéreas para deslocamento de familiares, lembra o livro clássico do antropólogo carioca Roberto Damatta chamado Carnavais, malandros e heróis (Editora Rocco). No livro, Damatta trata da confusão entre os domínios da "casa" e da "rua", da indefinição entre o público e o privado, da extensão da vida doméstica à vida pública. Numa passagem do livro, Damatta diz; "pergunta-se quando se pode modificar o mundo doméstico ou o mundo público, seja transformando um desses domínios ou outro, seja enfatizando apenas um deles" (p.101). De fato, no caso do uso indiscriminado de passagens aéreas custeadas pela Câmara pelos parlamentares, e a ausência proposital de uma normatividade que limite ou regule isso, recuperando, ao menos, o sentido ético da existência desse benefício público, reflete-se uma indistinção, ou mesmo, uma ênfase dada tão somente ao aspecto da vida doméstica, do espaço privado do parlamentar, que ele confunde com o espaço público. Dentro dessa mentalidade, que é culturalmente fundada, segundo uma visão antropológica, é legítimo para parlamentares como Costa, que o uso de passagens aéreas por parlamentares tenha fins não tão somente de auxiliar seu deslocamento para fins de atividade parlamentar, enquanto dignos representantes políticos de seu eleitorado, mas sim como um benefício pessoal, um privilégio ao que os eleitos teriam direito, para utilizar como bem entendessem, no sentido de poder até doar as passagens para seus familiares ou apaniguados, ou levar namoradas famosas para passear em Miami, ou esposas para tirar férias em Bariloche. É quando Dammata diz, no mesmo livro, que a rua e seus valores passam a penetrar no mundo privado, e o mundo da casa passa a ser integrado pela metáfora da vida pública. Se o gabinete do parlamentar, passa a ser visto por ele como uma extensão da sua casa, então é lícito e legítimo que sua esposa e filhos venham de seus estados de origem para ficar com ele, com o dinheiro pago pela própria Casa Legislativa, já que aquela "casa", é, na verdade, também "sua casa".

Não obstante as tardias iniciativas do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, de conter os abusos no uso de passagens, limitando seu uso ao próprio parlamentar, após o "circo ter pegado fogo" na opinião pública, o desgaste já estava feito. Mais uma vez, o comportamento genérico de nossos parlamentares, no uso indevido e indiscriminado de verbas públicas, provocou mais uma daquelas manifestações de descaso e desânimo com a classe política que tanto reconhecemos. Fico cansado de ouvir as mesmas lamúrias e reclamações daquele simpático senhor da banca de revista, que conhecemos ao pegar o jornal pela manhã, todas as vezes que saímos do supermercado, que diz a mesma coisa, a cada notícia desabonadora do Parlamento: "Político é tudo igual. Político é tudo safado, tudo ladrão, tudo corrupto, só querem saber de seus próprios interesses". Ouvi esse tipo de reclamação durante anos, em diferentes lugares, e até em diferentes países, pois em Buenos Aires, Montevidéo ou Santiago, assim como se tem os mesmos políticos, também se tem os mesmos jornaleiros indignados. Sempre tive dificuldades de retrucar, defendendo os políticos íntegros, honestos e responsáveis, por mais escassos que fossem. A cada nova notícia que recebo, a tarefa se torna cada vez mais difícil.

Afinal, de políticos sem expressão ou parlamentares de ocasião, como o playboy bonitão Fábio Faria, podemos até esperar denúncias de idiotices como essas, noticiadas pelos meios de comunicação, agora quando sabemos que a prática é generalizada em toda a comunidade política, e, o que mais dói, que o assunto era sequer regulamentado, propiciando abusos como o que foi visto no uso das passagens aéreas, aí é hora de pensar se faremos ou não uma reforma política já, ou se me unirei ao coro dos descontentes, fazendo voz com meu amigo jornaleiro, concordando com ele. É, será que não é ele que tem razão? Vovôzinhos jornaleiros pra deputado!! Enquanto isso, como diz a música do Biafra, o negócio é voar, voar, até cair e mudar de cor: vermelha de vergonha, por causa de tanta estupidez!

quinta-feira, 23 de abril de 2009

BATE-BOCA NO TRIBUNAL: JOAQUIM BARBOSA PARA PRESIDENTE!!

O título deste comentário é notadamente uma brincadeira, mas serve para denotar um pouco o espírito da opinião pública, após a tempestuosa briga que se viu no plenário do Supremo Tribunal Federal, devidamente captada ontem pelas câmeras, numa sessão de julgamento do tribunal, entre o ministro Joaquim Barbosa e o atual presidente do Supremo, Gilmar Mendes.











A querela, televisionada, mostrada inúmeras vezes na internet e no próprio site do Uol, revelou que na votação do processo da Previdência, o ministro Barbosa não gostou de deliberação do ministro Gilmar e numa discussão técnica sobre aspectos interpretativos da lei, acabou por se revelar uma visível rusga entre os ministros votantes, num desentendimento que gerou inflamado bate-boca (vi a hora de um deles pular de sua cadeira e agarrar o pescoço do outro), demonstrando existir uma antipatia recíproca e uma briga de egos muito comum no Judiciário brasileiro, e porque não dizer, psicologicamente falando, em todo ambiente de equipe de trabalho, onde seus integrantes tem dificuldades de lidar com a vaidade própria e a alheia.



"Vossa excelência não está na rua, não. Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário Brasileiro. Vossa excelência me respeite, eu não sou um de seus capangas do Mato Grosso, não!" Essas foram apenas algumas das lapidares frases que o ministro Joaquim Barbosa proferiu em alto e bom som, em direção ao seu colega de corte. Mais do que a reação raivosa de quem se sentiu incomodado com o gesto de um colega, revelando todo o ressentimento mútuo e antipatia contida, a reação de Joaquim Barbosa demonstrou o que muitos brasileiros gostariam de ter feito, certos ou não, em relação às posturas adotadas pelo ministro Gilmar Mendes, já algum tempo.


Não obstante sua notável capacidade jurídica, intelecto privilegiado e dedicação à área jurídica, não há como deixar de comparar o ministro Mendes a seu congênere na política, responsável por sua indicação ao Supremo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mendes era da cota pessoal de FHC nas indicações presidenciais para o Supremo, em seu mandato, e na época que foi advogado-geral da União, do governo anterior, foi responsável por grandes e dedicadas defesas, das causas tucanas do senhor FHC e asseclas de seu partido, manifestando o atual ministro uma plena identificação política com o alto tucanato.


É claro que o Supremo, além de ser uma corte constitucional é um tribunal político. Hoje, até uma criança do ensino médio que goste de história, sabe disso. A composição dos tribunais superiores no país é feita por indicação política. Entretanto, diferentemente do passado, onde qualquer apaniguado podia fazer uma "boquinha", pegando um cargo numa alta corte, na base do fisiologismo e do puxa-saquismo, no Brasil da era-Lula, mesmo que a duras penas e de forma capenga, os altos postos do Judiciário brasileiro, especialmente o STF (sobretudo após os escândalos de vendas de sentença do STJ), hoje são compostos por pessoas que são indicadas tendo, ao menos, um profundo conhecimento técnico em sua área, respeito em sua categoria profissional e conquistado posições na estrutura do poder por méritos próprios.


Foi assim com a indicação do ministro Barbosa, indicado por Lula para ser o primeiro ministro da cor negra, da mais alta corte do país. Assim como o Judiciário inovou após dezenas de anos, colocando mulheres no topo da estrutura judicial (tendo sido a corte presidida anteriormente pela ministra Ellen Gracie), a política atual das "ações afirmativas" chegou até os afrodescendentes e as mais altas cortes, levando um deles até a alta cúpula do Judiciário.






Assim como Mendes tem seus méritos, e isso é inegável, o ministro Barbosa também é um exemplo de superação. De origem humilde e lutando contra os preconceitos, como todo brasileiro que vem de baixo, estudou, dedicou-se, ingressou num faculdade de direito, e, formado, passou num concurso. Foi no Ministério Público Federal que Barbosa galgou voos maiores, sendo promovido por merecimento, até ganhar o respeito de seus pares na profissão, e atenção do presidente Lula, numa indicação para o Supremo que significou um fato histórico, nas lutas do povo negro de combater o racismo e eliminar o preconceito nesse país, assim como a opinião pública mundial aplaudiu, quando Barack Obama chegou à presidência dos Estados Unidos, numa onda de otimismo que há muito não se via na política global, e, pasmem, diante de uma crise econômica mundial aguda e colossal.



Que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa tem suas diferenças isso é inegável, e natural. Assim como o ministro Marco Aurélio de Melo, com seu linguajar afetado típico e suas decisões polêmicas, pôde ser antipatizado uma época por vários membros daquele corte, ou mesmo por todo o tribunal. Ora, ser quem você é, independente da opinião dos outros, tendo dignidade para manifestar suas opiniões, mesmo que conte com a reação de reprovação contrária, é no mínimo, conduta digna de respeito, e por isso o citado ministro ganhou a respeitabilidade de seus colegas de toga, assim como do restante da sociedade. Porém, o que ocorreu na briga de ontem, entre os ministros do judiciário, revela um pano de fundo mais intrigante, é que resvala, na verdade, em dois posicionamentos políticos contrários, que manifestam pela origem das indicações de ambos à corte, a disputa bipartidária e nacional entre as duas maiores legendas políticas da atualidade: PT e PSDB.

É bem verdade que a Lei Orgânica da Magistratura proíbe a filiação partidária de juízes, mas é também verdade que a composição do tribunal é feita por indicação política. Então, é claro, pra quem quiser ver, que por trás das indicações, não obstante o "notório saber jurídico" a que me referi, existe o posicionamento de que o indicado que vai compor o tribunal seja, ao menos, minimamente identificado com o posicionamento político do governo da ocasião. Foi assim que aconteceu com o ministro Gilmar, foi assim que ocorreu com o ministro Barbosa.







Fora a disputa de egos, e a antipatia mútua que nutre os sentimentos dos dois ministros na relação de um com o outro, ou fora mesmo o jeito meio arrogante, até mesmo boçal do ministro Mendes, e o jeito desaforado ou irritado do ministro Barbosa, a briga de ontem revelou até que ponto a opinião pública não está a jogar, com os interesses dominantes dos grupos políticos, que almejam a presidência em 2010, numa disputa que tem tudo para ser acirrada, em quem vai ficar na cadeira hoje ocupada pelo presidente Lula.





As recentes decisões judiciais e declarações à imprensa do ministro Gilmar, sobretudo no que tange à prisão e posterior soltura do banqueiro Daniel Dantas, na operação Satiagraha, suas concepções quanto à ilegalidade das ações do MST, e a resolução pelo fim do uso de algemas, bateu na opinião pública como a de um ministro senão comprometido com os interesses dos poderosos, ao menos omisso, ou no mínimo preocupado, pois agiu com maior rapidez quanto à denúncias de que seu gabinete estava grampeado, do que quanto ao julgamento de envolvidos em escândalos de corrupção, sobretudo se relacionados com o governo anterior. E para alguns, isso soou como uma certa omissão incriminadora. No entanto, entendendo que todo e qualquer julgador, quanto mais um ministro do supremo, tem todo direito de expressar suas convicções, já que a Constituição permite, vejo muito mais a utilização política ( ou "politiqueira") das decisões do ministro, no sentido de ferir a credibilidade do Judiciário, pois isso sim é que afeta a alta corte, e não as ações isoladas deste ou aquele julgador.

Na sessão do plenário do Supremo ontem, poderia parecer a querela que se instalou, uma mera briga de funcionários públicos num ambiente de trabalho, se a repartição não fosse a mais alta Corte do país. Os ministros do Supremo, com seus egos naturamente inflados por terem sido indicados para a instância máxima do Judiciário brasileiro, pelo seu "notório saber jurídico e reputação ilibada", representam um dos Poderes da República, e também são hoje, numa sociedade midiática, galgados à posição de pop stars. Daí o interesse da mídia por tão prosaico bate-boca, entre duas emblemáticas figuras representativas da Justiça (?!) brasileira.



O Supremo Tribunal Federal conseguiu na sociedade ganhar visibilidade que nunca teve na história da República. E isso é bom. Através da internet, da TV Justiça, das votações polêmicas (como o aborto de anencéfalos, a demarcação da reserva Raposa do Sol e o uso de células-tronco) e das dezenas de reportagens cobrindo a atividade diária dos julgadores, fez com que o Judiciário brasileiro deixasse de ser aquele poder fechado, hermético, formal, elitista, de gente letrada e educada, falando num português castiço, gabando-se de seus conhecimentos teóricos em meio a um esbanjamento de expressões vernaculares, dando aulas num latim indecifrável, para milhares de brasileiros que mal sabem ler. Com a mídia e a consequente midiatização dos espaços públicos, hoje é comum encontrar-se alunos mais dedicados do segundo grau, que sabem, ao menos os nomes de dois a três ministros do Supremo. No tempo em que ingressei numa faculdade de direito, há vinte anos atrás, nem mesmo um aluno do último ano sabia ao certo o nome do presidente do tribunal, fato que hoje é o contrário, tendo em vista a relevância que é dada hoje pelos jornais às decisões da Alta Corte, e a maior visibilidade que alcançaram os juízes, atuando não mais como meros repetidores de códigos, mas sim atuantes representantes da chamada "jurisdição constitucional".

O desabafo do ministro Barbosa, apenas reflete o que muita gente gostaria de ter dito, após ter sido influenciada pelas reportagens desabonadoras, em que mediante uma ação diligente do juiz federal Fausto De Santis, mandando prender o banqueiro Daniel Dantas, a rápida ação seguinte do ministro Gilmar libertando o banqueiro gerou um sentimento de indignação, típico daqueles que acreditam que a sociedade brasileira é a sociedade da impunidade, e que todos os poderes públicos, inclusive o Judiciário, estariam efetivamente comprados. Não compartilho desse pensamento, mas também não sou ingênuo para não achar que no jogo de interesses que se dá entre os poderes econômico e político, muito ainda tenha que ser solucionado, para se saber em que grau se deu as obscuras relações do citado banqueiro com os serviços do Estado. Pra isso é que serve a polícia, pra isso é que serve o Judiciário brasileiro, e se até Salvatore Cacciola, após ter pego um bronzeado em Mônaco foi preso, porque então não confiar que algum dia outro desses "gabolas" de colarinho-branco também não possam ir em cana, de vez em quando? Marcos Valério foi e saiu de lá dizendo que foi violentado, apesar de seus colegas de cela terem dito que até emprego em cervejaria ele ofereceu pra eles. Por que não pensar que nosso Judiciário pode acertar de vez em quando? Ao menos acertando em conter sua tradicional morosidade? O juiz Rocha Matos que o diga, pois ainda está na cadeia.

A meu ver a briga de ontem reflete bem um clima folhetinesco de polarização bem ao gosto da mídia: de um lado, o pretor do Mato Grosso, o sisuso e bochechudo defensor de engravatos, o último remanescente das hordas de FHC, onde por trás da toga esconde-se a plumagem ideológica tucana; do outro, o "diamante negro" da ética (parodiando o antológico Leônidas do futebol), o ministro egresso das massas, um correlato do chefe do executivo (também de origem humilde) no judiciário , com seu indisfarçável discurso petista, o "Batman" afrodescendente a combater os criminosos de colarinho-branco da Gotham do Planalto. A briga de ontem só reflete uma imagem cultivada pela mídia no imaginário coletivo, de quem sejam os "mocinhos" e os "vilões" dentro do Judiciário nacional. É só ver a capa da Revista Carta Capital aí do lado. É so ver a capa da Veja. Nada mal para uma saborosa crônica policial, mas muito pouco, para o que esperamos do nosso Judiciário.

Portanto, acredito que as rusgas entre ministros sejam naturais e façam parte das relações humanas, quanto mais as que se dão num órgão público de tanta visibilidade. Não acredito em crise do Judiciário por causa disso, mas sim em crise de concepções quanto ao Judiciário. O problema é nosso, não é deles e nem dos outros, e compete a nossa opinião pública eleger ou não os "heróis" e "bandidos" dessa estória toda. Portanto, fazendo coro à massa: Joaquim Barbosa para presidente!!!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

MÚSICA: Nunca julgue um livro pela capa!

"Nunca julgue um livro pela capa!" É através desse antigo adágio popular que eu inicio meu comentário em nossas conexões musicais, tratando talvez de um maiores fatos de 2009 no mundo da música. É, o ano não está nem na metade, mas eu me arrisco a dizer, contra todos os prognósticos, que nunca vi manifestação tão bela, tão encantadora, e tão surpreendentemente comovente, como a apresentação da escocesa Susan Boyle, no programa de calouros inglês Britain's Got Talent (assemelhado ao programa Ídolos, com versão produzida aqui no Brasil), ocorrido semana passada.



A primeira vez que ouvi falar da mulher foi através dos jornais, já que a notícia pipocou no mundo todo, e depois em revistas e na internet. Hoje, animei-me a ver a apresentação no Youtube, e o resultado é isso que você vê ao lado, no vídeo selecionado, que deixei à disposição dos leitores do blog.



Pieguiesmos a parte, vocês hão de convir ao ver a apresentação, que, de fato, a estória foi comovente. Como num bom conto de fadas materializado na vida real, um patinho feio, uma verdadeira "Betty, a Feia" britânica, arrasou, matou a pau, encantou e surpreendeu a todos, numa apresentação impecável, digna de ser vista e revista várias vezes. Sim! Podem me chamar de sentimentalóide, mas a verdade é que chorei à beça, emocionei-me francamente, senti mesmo um arrepio, quando vi pela primeira vez esse vídeo. Chorei de verdade, repito, e não por pieguismo, mas sim pela constatação de que num mundo tão caótico e de coisas tão feias, a singeleza ainda existe numa bela voz!



Por falar em feiúra foi isso o que mais surpreendeu na apresentação de Susan. A caloura que se apresentou no programa era uma típica pobre coitada, vítima da vida e das circunstâncias, num bom roteiro de filme de sessão da tarde, no velho clichê da autossuperação. Mas a verdade é que os clichês existem pois reproduzem uma realidade que se repete. Tem muita gente por aí com talento, com conteúdo, com beleza moral e artística, verdadeiros diamantes brutos ou flores por trás de cactus prontas a desabrochar, desde de que se dê uma oportunidade. Viva a musa da beleza interior!! Como diriam os comediantes Vesgo e Silvio do Pânico na TV. Pois, desta vez, a feia conseguiu superar até as anedotas. A feíura de Susan foi compensada pela beleza do óbvio, da grandeza inestimável da alma humana em toda sua singeleza de humildade, calando todos aqueles que riram mesmo antes da mulher abrir a boca. Sim! Porque Susan é feia e desengonçada mesmo, e nenhum homem no seu perfeito juízo, ou mesmo com doses cavalares de barris de whisky escocês, iria encarar uma mulher dessas, antes de ver do que ela seria capaz. Pois a feia Susan mostrou que na verdade é bela, muito bela.



Susan Boyle é uma senhora de 47 anos, desempregada, sozinha na vida e depauperada, vivendo num vilarejo perdido no mapa na Escócia, sem nunca (segundo ela) ter tido um namorado, com dificuldades de aprendizado na infância por falta de oxigenação no nascimento, e que a única coisa que tinha a oferecer era sua voz, e que voz!! Quando chegou ao palco do Britain's Got Talent, Susan chegou a ser desdenhada de longe pelos jurados. Assim como aqui no Brasil, no programa semelhante "Ídolos", apresentado pelo SBT, onde jurados como Arnaldo Saccomani detonavam os candidatos de forma tão vergonhosa que faria corar o Chacrinha ( para alegria dos interessados num freak show de calouros), os jurados do programa inglês quase se contorciam de rir, ao ver entrar no palco aquela senhora gorducha, cabelo desalinhado, vestido bege quadrado, papada flácida, sobrancelha de dois dedos e aquele sotaque de interior que denuncia um caipira a cem metros de distância. Esperava-se na audiência um vexame cabal. Mas o que veio depois é a prova de que Deus existe e que o Espírito Santo se manifesta nas horas e lugares mais inusitados. Como um anjo descido dos céus, foi só Susan abrir a boca para começar a cantar a primeira nota da canção I dreamed a dream, da intérprete Elaine Page, para que o teatro do programa quase viesse abaixo.

A voz límpida, cristalina, de afinação perfeita e empostação que fariam corar uma cantora de ópera, fez com que Susan fosse aplaudida de pé, e arrancasse lágrimas ao invés de gargalhadas dos jurados, outrora detratores, agora convertidos à condição de fãs. É, pois uma voz daquelas converte até o mais impiedoso dos infíeis, faz chorar até um caminhoneiro, e mesmo quem não entende patavina de inglês, fica comovido pela beleza da melodia cantada pela feiosa escocesa. Susan conquistou com seu canto não apenas os jurados, mas o mundo, com convites para cantar em diversos programas, culminando com uma viagem sua aos Estados Unidos, onde ela irá se apresentar no programa da megaapresentadora Oprah Winfrey. É a glória! Ó Deus! Ó glória!

A estória de Susan me remete a um famoso musical britânico, transformado em filme de 1998, dirigido por Mark Herman, chamado Little Voice (apesar de aqui, ter recebido em vídeo o insosso nome de "Laura-nasce uma estrela"). Lá, a protagonista do mesmo nome, interpretada pela cantora Jane Horrocks, faz juz ao apelido de "pequena voz", por ser uma introvertida garota, feia e desengonçada, que quase não fala, trancada no quarto da casa onde vive com sua alcóolatra mãe víúva, num subúrbio londrino, escutando discos antigos, dos cantores prediletos de seu finado pai. Um belo dia a garota é descoberta por um empresário musical de quinta categoria, namorado recente de sua mãe, que fica surpreendido com o talento e a beleza da voz da moça ao ouvi-la casualmente cantar. E o patinho feio transforma-se numa grandiosa estrela.

Da mesma forma, penso ser esse o destino da gorducha Susan, torcendo para que ela não seja moída pelo oportunista e ganancioso sistema capitalista da indústria musical. Entretanto, sem quere predizer o futuro, não há hoje quem não se comova, por mais insensível, chato ou ignorante que seja, com essa unanimidade que é Susan Boyle! Que Deus te abençoe Susan! Que você possa cantar ainda por muitos e muitos anos e (en)cantar as belezas da vida com sua voz de rouxinol. Agora você já pode arrumar um namorado, apesar de não ser eu o felizardo! I dreamed a dream!

sábado, 11 de abril de 2009

POLÍTICA RACIAL: Afinal, nas universidades, deve ter cota ou não????

Neste mês de abril a Comissão de Constituição e Justiça do Senado deve se reunir para discutir a proposta de expandir o sistema de cotas raciais, já existente nas universidades públicas estaduais ( como no Rio de Janeiro e na Bahia), para toda a rede pública de universidades federais do país, bem como para as escolas técnicas federais (as CEFETS), e para os colégios mlitares. O projeto prevê inicialmente uma reserva do percentual de 50% das vagas dessas instituições para alunos de escolas públicas (as chamadas "cotas sociais"), bem como desse contingente, 25% das vagas devem ser destinadas a estudantes com renda familiar de até um salário mínimo (até aí tudo bem!). Ocorre que o projeto também menciona que essas vagas reservadas devem ser destinadas a negros e indígenas.

Introduzido paulatinamente no país desde a última década do século passado, o sistema de cotas raciais no Brasil, destinando parte das vagas nas universidades públicas para descendentes de negros e indígenas, tem mantido acesa polêmica na opinião pública nacional, como também tem sido pivô de várias disputas judiciais. É comum se encontrar em qualquer sala de aula, manifestações contrárias e raivosas de estudantes não contemplados pelo sistema de cotas, e até mesmo daqueles que originalmente delas dependeriam, dizendo que a cota racial atrapalha ao invés de ajudar, uma vez que um aluno branco e pobre pode ter estudado na mesma escola pública que um estudante negro, ter tido as mesmas oportunidades, e mesmo assim ser preterido numa seleção para uma universidade, tão e simplesmente pela diferença da cor da pele, mesmo que esse aluno branco tenha apresentado um melhor resultado e uma melhor qualificação na seleção. Já do lado dos negros contrários às cotas, é comum também ouvir o argumento de que as cotas raciais instituem um racismo às avessas, fator difusor de maior preconceito, uma vez que o sistema não mediria a capacidade real dos estudantes negros em relação aos brancos, e, pelo contrário, ao se estabelecer cotas para o ingresso nas universidades, o poder público reconheceria não apenas o racismo, ferindo o princípio constitucional da igualdade, como também legitimaria a diferença social, afirmando pela própria lei que os negros são inferiores intelectualmente aos brancos, e, em função disso, necessitariam das cotas para "compensar" essa desvantagem racial e intelectual, permitindo-lhes um acesso mais fácil à universidade.

Também se encontra no meio estudantil posicionamentos plenamente favoráveis às cotas, seja entre alunos brancos ou negros. Mais propriamente entre os negros, escuta-se também discursos de que o sistema de cotas raciais não é ideal, mas necessário, tendo em vista a histórica situação de desamparo do negro e pobre no Brasil, dependente de escola pública, desde a tenra idade, e que não teve sequer condições de competir ou ter acesso à rede particular de ensino(bem) paga, onde a grande maioria dos estudantes brancos de classe média alta tiveram acesso e melhor qualificação para estudar e passar numa seleção para as universidades públicas (ainda hoje, as mais concorridas). Já outros alunos são mais pragmáticos e simplesmente dizem: "ahhh, tenho avô negro ou avó índia e minha pele é meio bronzeada. Se o sistema de cotas me favorecer, que bom!! Eu vou mais é aproveitar!!".

Em primeiro lugar, devo dizer que me sinto plenamente à vontade para discutir esse tema, levando em conta não apenas o fato de eu ser negro, ou, para uns, apenas um descendente típico de afrobrasileiros (pejorativamente chamado de "pardo" ou "mulato"), mas também porque essa discussão interessa-me como cidadão, pela sua repercussão social, e como técnico e estudioso do direito, por suas claras implicações jurídicas.

As chamadas "ações afirmativas" são produto dos movimentos de desobediência civil e reivindicação de direitos sociais, popularizados nas marchas conduzidas por líderes negros norte-americanos como Martim Luther King, nos EUA, na década de sessenta do século passado. Esses movimentos dedicavam-se a combater as leis segregacionistas, que estabeleciam direitos diferenciados e privilégios para representantes de uma raça (a branca), contra uma minoria de negros que não podia compartilhar, sequer, de um mesmo assento de ônibus ou entrada em um restaurante, quanto mais o ingresso em uma universidade. Foi nesse movimento que nasceram as propostas de cotas raciais no ensino público universitário, que hoje são adotadas por uma boa parte dos países onde há diferenças raciais e sociais gritantes.

Surge aqui então uma primeira dicotomia que precisa ser resolvida: a distinção entre segregacionismo X inclusão racial. Sabe-se que o mecanismo das cotas foi introduzido historicamente para combater a segregação pela via da inclusão; ou seja, se havia leis que estabeleciam direitos diferenciados e acesso privilegiado para alguém de uma cor, essas leis deveriam ser abolidas, e, em seu lugar, deveriam ser colocadas disposições que garantissem o acesso daqueles que outrora foram excluídos, no meio de um sistema não mais segregador. Foi isso que ocorreu na Índia, por exemplo, onde um sistema de castas milenar e enraizadíssimo na sociedade hindu começou a ir por terra mediante uma "ocidentalização" do direito local, prevalecendo o princípio da igualdade, onde membros de castas diferenciadas deveriam ter o mesmo acesso ao ensino público, independente de sua condição étnica ou social. É bem verdade que tais mecanismos não garantiram um maior desenvolvimento social à nação indiana e nem combateram a fome e a miséria galopantes que ainda hoje encontram-se presentes naquele país ( quem viu o filme ganhador do Oscar este ano,"Quem quer ser milionário", e deu olhada nas favelas de Mumbai, sabe do que eu estou falando). Portanto, na verdade, o sistema de cotas serviu mais como um "meio compensatório", do que propriamente como um instrumento real de conquista racial e integração social.

Agora, o argumento que me custa a calhar nos ouvidos é aquele de que no Brasil não haveria racismo, ou, menos do que isso, apesar de nossas diferenças raciais e sociais, a miscigenação aqui em terra brasilis seria tão grande, que hoje seria impossível estabelecer diferenças raciais num pais majoritariamente de mestiços. Aludem os defensores da miscigenação que, aqui em nosso país, não existiria uma consciência de raça, pois a nossa experiência histórica seria bem diferente da experiência norte-americana. Ahhh! tá! Mas ambos os países não foram escravocratas enquanto eram colônias de reinos europeus, e tanto lá na terra do Tio Sam quanto aqui, por séculos, os negros não foram desprovidos de condições sociais e econômicas, em detrimento de uma classe privilegiada branca? Ou será que estamos falando de outro país?? Os norte-americanos tinham a sua "cabana do Pai Tomás", nós, tínhamos o nosso "negrinho do pastoreio". Só falta tocar um blues para lembrarmos dos negros de lá, ou talvez um samba, para recordarmos dos negros daqui.


Eu teria aqui uma pilha de exemplos históricos comparativos para mencionar, a título de ilustração, na tentativa de explicar as diferenças entre os negros das plantações de algodão pincelados pelo escritor Mark Twain, na sua obra máxima "Tom Sawyer", na literatura norte-americana, em comparação aos "pretos tições" lidados por Gilberto Freyre por aqui, em sua ótima "Casa Grande & Senzala". Porém, ficaria muito chato! Já que estamos falando de sistema de cotas, competiria aqui estabelecer algumas desconstruções, de ambas as teses (favoráveis e contrárias) sobre as cotas raciais, explicitando alguns de meus pontos de vista, que podem ser úteis a quem se aventura a ler estas extensas linhas, e compartilhar das "conexões" que faço na leitura deste blog.

Ficando então nas diferenças básicas, eu diria que não é verdade que no Brasil o negro não tenha consciência de raça em função da miscinegação, e que por isso não seja conveniente (ou até depreciativo) defender políticas de inclusão social que levem em conta o componente da raça. Na verdade, todo negro ou descendente de escravos no Brasil sabe muito bem a extensão do papel da cor de sua pele, toda vez que é confundido com o zelador do prédio ao visitar um amigo no elevador, ter fama de ser pagodeiro ao invés de ouvinte de música clássica, ou só se tornar ídolo quando vira jogador de futebol. Os negros norte-americanos se organizaram enquanto grupo racial, combateram o racismo e desenvolveram as ações afirmativas na conquista de direitos, por que souberam e tiveram uma maior capacidade de iniciativa e mobilização, na luta por direitos sociais. Sabe-se que nos EUA, o mito da "democracia amerina", como defendia o filósofo inglês Alexys de Toqueville, foi posto à prova quando centenas, ou talvez milhares de negros organizados, mobilizaram-se em passeatas e protestos, pelas ruas americanas do Alabama até o Mississipi, chegando até Washington, por meio das marchas pelos direitos civis ou pelo movimento dos Panteras Negras.

Aqui no Brasil, por contingências históricas que não merecem observação agora, o negro brasileiro nunca foi impulsionado a se organizar da mesma forma que seus parceiros de raça norte-americanos, até mesmo porque, em primeiro lugar, na vanguarda dos movimentos sociais, estavam as lideranças operárias e socialistas, encabeçando sindicatos, ligas de camponeses e partidos de esquerdas, com um discurso ideológico de classes que superava a luta racial. O racismo ou a segregação racial eram produto da divisão de classes, e não de uma diferença étnica, e competiria aos militantes marxistas não somente garantir a adesão de negros ou indígenas, mas sim de toda a camada de explorados economicamente e socialmente, sejam eles brancos, pardos, negros, indígenas, amarelos, ou quem quer que aparecesse, para combater a dominação burguesa de uma classe branca e capitalista.

No aspecto religioso, a questão da fé também não foi menos importante, no momento em que nos EUA, um país majoritariamente protestante, porém racista, ao lado das igrejas pentecostais de brancos, adeptos da Ku Klus Klan, havia igrejinhas de negros, na periferia das cidades, com seu gospel comovente e seu louvor animado, movido a batucadas e bater de palmas típico dos culto afro, que aqui, no Brasil, foram assimilados pela Igreja Católica, por via do sincretismo entre padres e pais-de-santo umbandistas na Bahia, e não pelas igrejas evangélicas, com seus missionários brancos chegados ao Brasil, que ao invés de propiciarem um modelo de organização e mobilização efetivamente black, como era feito nos EUA, mantinham, ao contrário, com sua ideologia branca, um modelo de "branqueamento" dos segmentos de negros pobres, nas favelas e periferia das grandes cidades, que largaram as vestes brancas e os atabaques, pelo paletó e gravata, cabelo curto e vocabulário wasp do modelo tradicional de culto anglo-saxão.


Grandes vultos de nossa história eram negros, tais como José do Patrocínio e Abdias do Nascimento. Porém, foi somente este último que contribuiu no século passado para a formação de um discurso sobre a identidade negra e a necessidade de mobilização social, para consolidar uma consciência étnica do papel social do afrodescendente. Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras, símbolo máximo da intelectualidade nacional, era mulato, casado com uma branca, mas mesmo em seus retratos mais antigos, o "enbranquecimento" não deixava de estar presente, e ele nunca requereu sua condição de raça para estabelecer qualquer crítica fundada ao sistema republicano pela discriminação com o negro, uma vez que assim como naquela época, a questão da negritude parecia ter sido resolvida historicamente com o fim da escravidão, e a diferença pela cor da pele passou a ser secundarizada pela diferença social.

Porém, voltando à questão das cotas, se, ao menos para mim, ficou demonstrado que é balela qualquer discussão pelo fim desse sistema, sob a alegação de que não há consciência de negritude no Brasil (uma vez que ela sempre existiu, só não foi fator de mobilização), fica aqui também a minha crítica quanto aos que, de forma oportunista, abraçam definitivamente o argumento das cotas como uma espécie de panacéia para o problema nacional na inclusão racial, dizendo que: sim, de fato, concordo com os anticotitas, mas tão somente na crítica de que, adotar tão e simplesmente o sistema de cotas raciais nas universidades, não vai resolver, nem hoje, nem nunca, o extenso dilema da desigualdade social e racial no Brasil.

Mas se não resolve, ao menos compensa, nem que seja um pouquinho. Se alguns dizem que o sistema de cotas enquanto condição obrigatória para o funcionamento das universidades, foi abolido pela Suprema Corte Americana em 1979, eu contra-argumento dizendo que se as cotas foram consideradas inconstitucionais enquanto requisito obrigatório para o acesso ao ensino público, digo que, por outro lado, elas foram fundamentais para corrigir uma injustiça histórica quanto aos negros, e o exemplo mais cabal disso foi o repentino acesso de centenas e centenas de negros norte-americanos à instituições renomadas de ensino nos EUA, na década de sessenta, que propiciaram o incentivo à preparação, e superação social de milhares e milhares de gerações de negros que vieram posteriormente, trazendo ao mundo um ex-professor de direito constitucional da Universidade de Chicago, um advogado militante, nascido no Havaí, filho de um queniano negro como uma estudante branca norte-americana, e que viria a se tornar o presidente da nação mais poderosa do planeta. Sim, é ele: Barack Obama!

O sistema de cotas que garantiu a abertura de direitos aos negros, redundando no surgimento de Obama, é a prova cabal de que o sistema de cotas não resolve, por si só, o problema da desigualdade, e nem é a solução mágica para o fim do racismo. Contudo, tal mecanismo ataca de morte e supera o segregacionismo, que, se nos EUA se deu da forma mais gritante, pela vigência de leis que estimulavam a segregação, no Brasil essa segregação se deu de forma mais sutil, velada, mas tão eficaz e aguda como o modelo norte-americano, pela incapacidade econômica e social de nossos negros competirem em relação de igualdade com brancos educados em escolas privadas, de classe média, com um bom perfil econômico, que além do acesso a boa escola na infância, pela rede básica de ensino, ainda tiveram o privilégio de pagar bons cursinhos, boas aulas de idiomas, bons livros comprados no cartão de crédito e boas salas de aula. Vão me dizer que o problema está então no ensino como um todo no Brasil, e eu concordo plenamente. Não haveria como discordar. Porém, enquanto o ensino não for de todos e para todos neste país, acho conveniente, sim, termos mecanismos compensatórios, de curto, mas eficaz alcance, na debelação da desigualdade (ora por raízes econômicas, ora por diferenças raciais), garantindo a toda uma massa de pretos e pobres, o acesso à universidade pública, com ensino de qualidade.

Como eu disse, e volto a repetir, já que o tema é polêmico, não estou aqui defendendo as cotas como a solução de todas as mazelas produzidas pela profunda desigualdade, e pela evidência demográfica de que temos tantos negros ou indígenas pobres nesse país, em relação a uma minoria branca, até mesmo porque branco não se encontra apenas em mansão, mas tem também muito branco pobre, vivendo em favela por aí! Entretanto, o que percebo no Brasil, assim como em outros países, é que as normas devem ter sua vigência até o momento em que produzirem a eficácia a que elas foram destinadas. E no caso do sistema de cotas, enquanto seu principal objetivo for minimizar o evidente fato de que poucos são os negros a ingressar em uma universidade pública, acredito que sua adoção é viável, até o momento em que produzirmos em nossa sociedade um novo modelo social, onde não será mais estranho e nem diferente ver um negro na Casa Branca (como se deu na eleição americana), assim como não será exótico ver um grande banqueiro negro, assim como hoje não é, ao ver isso no serviço público (vide a excelente atuação no STF do ministro negro Joaquim Barbosa). Acredito que o sistema de cotas deve valer, até o momento em que, por mais "chinelento" que eu esteja, eu não seja confundido com o zelador do condomínio ao entrar dentro do elevador do prédio.

Em termos constitucionais, fala-se muito em igualdade, e na centena de mandados de segurança que são impetrados contra as cotas, por alunos preteridos em processos seletivos nas universidades, vê-se que o argumento é quase sempre o mesmo:"inconstitucionalidade das cotas por ferir o princípio da igualdade". Não obstante os ganhos de causa ou as perdas em alguns tribunais, chega a hora em que pergunto: "igualdade pra quem, cara-pálida?". O bom estudante de direito constitucional sabe que o princípio constitucional da igualdade rege-se, em sua essência, pelo princípio da isonomia, que pode ser: material ou formal. Pela isonomia formal, os argumentos usados aos montes pelos advogados dos anticotistas, é de que a lei de cotas não contempla a igualdade prevista formalmente pela constituição em seu texto, quando diz que "todos são iguais perante a lei", no artigo 5.o. Ocorre que pelo prisma da isonomia material ( e não formal), o texto é claro também ao dizer, no artigo 7.o, inciso XXX, que é proibida " a diferença de salários, exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil". A isonomia material serve para "tratar os desiguais de forma desigual", como apregoava o jurista brasileiro José Afonso da Silva. Ora, é lógico que os mais avivados na letra da lei, irão me dizer que a norma constitucional que eu citei, só serve para combater a segregação, e como ela já está abolidada de nosso sistema, então não seriam necessárias leis pró-cotas. Contudo, eu refuto mais uma vez esse argumento, dizendo que a isonomia não é apenas obtida com a proibição da segregação, evitando-se o preconceito, mas também pela inclusão de direitos que, hoje, ainda não contemplam a todos os brasileiros, como é o caso dos negros, pobres e indígenas, que se veem privados do acesso à universidade pública, não por falta de capacidade, mas por falta de oportunidades que sequer lhes foram garantidas, no primeiro dia que chegaram na escola.

Concluo me recordando de excelente e esclarecedora passagem, escrita pelo filósofo e jurista norte-americano Ronald Dworkin, em sua célebre obra: Levando os direitos a sério. No livro, o jurista trata, no capítulo 9, da chamada "discriminação compensatória", tratando do regime de cotas raciais nas universidades norte-americanas. Ele disse que, em 1945, um negro chamado Sweatt tentou ingressar na Faculdade de Direito da Universidade do Texas, mas teve seu pedido rejeitado, com base numa lei estadual que proíbia a presença de negros na universidade. Ele então moveu uma ação judicial, que foi parar na Suprema Corte Americana, obtendo o direito de ingressar na referida universidade, alegando a Décima Quarta Emenda da constituição americana, sobre a igualdade na proteção de direitos. Em 1971, um judeu chamado DeFunis entrou com pedido semelhante, alegando o mesmo dispositivo constitucional, para ingressar na Universidade de Washington, alegando proteção das minorias, mas seu pedido foi rejeitado. Qual a diferença entre o pedido de um e de outro, já que ambos se sentiram discriminados?

Ocorre que, segundo Dworkin, Defunis não tem nenhum direito, mesmo que não pudesse ingressar no ensino superior pela falta de faculdade de direito no seu estado, ou se houvesse apenas uma faculdade, mas com poucas vagas, e que não levassem em conta seus méritos intelectuais. A inteligência não é o único critério a ser levado em conta para o ingresso numa universidade. Para Dworkin, as faculdades de direito selecionam os mais aptos intelectualmente, não porque seja um direito do candidato ser avaliado tão somente no crítério de inteligência, mas sim porque interessa a faculdade servir a comunidade de advogados mais aptos no futuro, quando eles se formam. Ele diz: "os padrões intelectuais se justificam não porque premiam os mais inteligentes, mas porque parecem servir a uma política social útil".

É nesse sentido que se processa a crítica inteligente de Dworkin. O direito à educação básica, é sim direito fundamental que deve ser garantido igualmente a todos, da infância até a adolescência, o que não é feito pela realidade da rede de ensino brasileira, que privilegia os mais abonados economicamente, e aqueles que, historicamente, por raça, encontram-se melhor posicionados na pirâmide social (não me venham falar novamente dos brancos existentes nas camadas pobres da sociedade, pois retruco com a maciça maioria branca, nos setores mais privilegiados e ricos da sociedade). Entretanto, no ensino superior, a educação jurídica pleiteada pelo judeu Defunis, e concedida ao negro Sweatt, não é vital a ponto de que todos tenham direito a ela, mas tão somente aqueles que procuram tal opção. O que ocorre é que, ao indeferir o pedido de Defunis, a justiça norte-americana não tolheu de direitos toda a comunidade judaica do estado de Washington, impossibilitando que outros judeus tivessem acesso à universidade, prejudicando uma política social útil, mas no caso do negro Sweatt, a situação é oposta.

Dworkin argumenta que, se é pensada como política social, a opção preferencial pela admissão de negros na universidade (assim como a dos mais aptos intelectualmente), no sentido de diminuir a diferença de riqueza e poder que existe entre brancos e negros na sociedade, proporcionando mais igualdade racial, no momento em que negros mais instruídos juridicamente, podem, não só melhorar a qualidade do ensino jurídico no estudo dos problemas sociais, mas também estimular mais e mais negros a se candidatar a novas vagas, é uma proposta de política social com objetivo bem definido, sendo legítimo que tal instituição de ensino adote tal critério, além de outros que a universidade tem o direito de estabelecer, face sua autonomia universitária e os propósitos de realizar o bem comum. Desta forma, o argumento em favor das cotas deve ser sempre de interesse social, público, em prol da sociedade, e não tão somente um argumento individual, de natureza privada, fundado tão somente no interesse particular do candidato de ingressar na universidade, neste ou naquele curso. O candidato, seja ele qual for, tem o direito, sim, de ser avaliado, mas não deve ter ele qualquer ingerência sobre os critérios de seleção de uma instituição, baseado tão somente no seu próprio interesse pessoal, como na alegação de ter o direito a ser avaliado tão somente pelo critério intelectual.

Agora se me perguntam das maracutaias de muitos alunos, na hora de preencher a ficha de inscrição a um processo seletivo, que só são negros ou pardos na hora de pegar um bronzeado na praia, e assinalam o "x" dizendo-se negros ou indígenas, digo que o problema não está na essência da proposta das cotas, mas sim no mecanismo de gerenciamento do processo seletivo. Por que será que só sabemos idenficar um preto pobre quando desviamos da calçada ao ver um se aproximando, com medo de um assalto, e não sabemos identificar quando realmente algum deles preenche esse requisito na hora de pleitear uma vaga na universidade? Sim, como diria o velho Abdias, tá na hora de ampliarmos nossa consciência de raça, e se " a alma não tem cor", como diz no verso da música de Jorge Mautner, ao menos ela pede uma pincelada de tinta, na hora de entrar na universidade!

domingo, 5 de abril de 2009

MÚSICA:"No line on horizon" apresenta um U2 da meia idade

Como diz a célebre canção de Roberto Carlos: "Além do horizonte existe um lugar". Talvez para bandas planetárias como o U2, esse lugar seja o mitológico panteão das lendas do rock, ou tão e simplesmente seu lugar na história como uma das mais longevas e competentes parcerias criativas no mundo da música, entre músicos experientes e dedicados que, pelo talento, conseguiram se transformar em astros e prosperar no ramo, arrebatando legiões de fãs por décadas e gerações. Lendas vivas e expoentes históricos como Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin ou The Who, são exemplos emblemáticos disso.





Relutei alguns dias em escrever este comentário, seja porque estive escutando o novo disco do U2, chamado No line on horizon, lançado este mês mundialmente, ou porque não queria com este artigo comportar-me, de um lado, apenas no contexto de crítico, ou de outro, apenas no contexto de fã. Ambas as análises ficariam nebulosas se eu tentasse expor minhas ideias e impressões sobre o disco me atendo às polaridades dos dois tipos de contexto que tracei há pouco. Se eu fosse crítico demais, poderia dar a impressão de fazer uma análise seca, desprovida de emoção, técnica demais, formal demais, acadêmica, e despojada do necessário calor humano que envolve toda crítica de arte. Entretanto, se eu me comportasse apenas como fã, escrevendo sobre uma banda que gosto e admiro, poderia adotar uma conduta irresponsável, longe dos limites da proposta que fiz ao criar este blog e, naturalmente, afastar aqueles que não gostam do grupo comentado, ou simplesmente não gostam desse estilo de música. Não é esse meu propósito. Portanto, ao escrever estas linhas procurei um meio termo (ao menos tento), não sendo nem tão crítico, e nem tão fã, apenas fazendo aquilo a que me dediquei neste blog: escrever sobre o que entendo, e sobre o que gosto.



No line on the horizon tem inicialmente a proposta de ser um dos melhores álbuns da história do U2. Claro! Essa é a proposta de todo marketing musical (afinal de contas, todo artista tem que "vender seu peixe"), mas o que se revela por detrás da propaganda é a iniciativa natural de todo grupo com mais de vinte anos de estrada, de tentar se reinventar, ou mesmo ficar na mesma, experimentando velhas fórmulas musicais e apenas requentando-as para fazer sucesso (vide, pra quem gosta, da explosão de vendagens de Black Ice, último álbum do AC/DC, lançado ano passado, que traz a mesma coisa em música e o velho estilo da banda australiana). Obtive o disco logo após o seu lançamento e o escutei todo, por várias vezes, repetindo naturalmente em meus ouvidos as músicas que gostei mais. É um bom disco, da boa e velha banda irlandesa que já conhecemos, com seu natural estilo e até mesmo cacoetes, mas é um disco bom, audível, perfeito sonoramente, de boa qualidade, mas não uma obra de arte.


Mas, afinal de contas, antes de mais nada, que os fãs mais devotos do U2 me perdoem! Antes de me jogarem pedras, afirmo que a proposta do U2 é essa mesma: de ser bom, competente, mas não ser grandiloquente. Bono e seus companheiros não são, nem de longe, os mártires da música e nem cruzados de boas ideologias querendo propagar a revolução através da música! É verdade que hoje, todo artista global quer ser "politicamente correto". Bono Vox (alter ego do talvez mais interessante Paul Hewson) não é John Lennon, e nem seu parceiro nas guitarras The Edge (alter ego de David Evans) não é Paul Mccartney. Enganam-se os críticos ou marqueteiros de hoje ao alegar que o U2 seja os Beatles da nova era. É tudo bobagem! Na verdade, bem diferente da lendária banda inglesa de Liverpool, os irlandeses de Dublin não querem reeditar a genial parceira entre Lennon e Mccartney, pois afinal, quem dá as cartas da banda na verdade é o circunspecto baterista, Larry Mullen Jr.


Quando Bono sai da pose de quem está querendo salvar o mundo, quem entra em cena é dá o coração musical da banda, na verdade é Mullen. Foi ele que, aos 17 anos, no final da década de 70, fixou um cartaz no mural da escola, declarando-se baterista e propondo-se a reunir um grupo para formar uma banda de rock. Até hoje, mesmo com toda a empolgação, fama e frenesi de Bono, quem dá a palavra final e barra ou dá prosseguimento aos projetos musicais do U2 é Larry. Nos quase trinta anos de existência do U2, lá, atrás do palco, na direção das baquetas, Larry Mullen não apenas dá o compasso das canções, como também dirige o processo criativo, a formação das canções embaladas mediante as letras de Bono, transforma em música e fórmula de sucesso tudo o que aqueles garotos irlandeses lisos quiseram um dia, ao se propor formar uma banda, pagando as passagens de ônibus com grana emprestada dos pais de classe operária em direção a Londres, para gravar a primeira fita demo. Larry, Bono, The Edge, e o baixista Adam Clayton são de fato, os caras mais sortudos, carismáticos e talentosos da terra de James Joyce, mas também sabem de suas inseguranças e limitações musicais.


O U2 foi uma das bandas das últimas décadas do século XX que conseguiram aliar virtu e fortuna (nos dizeres de Maquiavel), numa época em que a geração MTV acabava de surgir. Os anos oitenta foram pródigos numa nova musicalidade e trouxeram tantos grupos musicais e tendências memoráveis no rock, tornando-o definitivamente a expressão musical mais popular e globalizada do planeta, que se torna difícil até os enumerar, graças à difusão da música pela televisão, a volta da cultura das rádios mediante o enfraquecimento dos festivais e dos shows ao vivo, e pelos movimentos políticos engajados pelo combate a fome na África (como o Live Aid), a defesa da queda do muro de Berlim, e pelo fim do apartheid na África do Sul. Artistas como Michael Jackson e Madonna ( nos EUA e depois no resto do mundo), bombaram nesse período, mas também foi nessa época que o termo Britt Pop passou a ser utilizado. Na verdade, o rock europeu, e, em especial, a música do estilo produzida na Grã-Bretanha, ainda estava de ressaca do punk, e devia ao mundo gigantes musicais produzidos nos anos 60, como Beatles e Rolling Stones. Começaram a surgir nos anos oitenta bandas épicas, que marcaram a vida e a trajetória de qualquer um que seja hoje quarentão ou esteja entre seus trinta e poucos anos. Foi uma avalanche de bandas boas e memoráveis, oriundas do Reino Unido, que fizeram ressuscitar todo um sentimento de nostalgia no novo milênio, como The Cure, New Order, Depeche Mode, Simple Minds, A-ha (da Noruega, mas lançada na Inglaterra), Suede, The The, e talvez uma banda com tanto ou mais carisma que os irlandeses do U2: a banda The Smiths, do poeta bardo Steven Patrick Morrysey.


No Brasil, na mesma época, o marco histórico desenvolvido com o primeiro Rock in Rio, em 1985, nos deu grupos e artistas consagrados nos dias de hoje, como Blitz, Barão Vermelho ( do saudoso Cazuza), Ira, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Titãs, Capital Inicial, Engenheiros do Hawaii,Lulu Santos, Rádio Taxi, Camisa de Vênus e o antológico Legião Urbana, do memorável Renato Russo. Era o começo do Brock, ou Rock Brazuca, com repercussões que são sentidas até hoje. Aqui, o rock deixou, por exemplo, de ser considerado subgênero musical para adolescentes ou produto importado do imperialismo yankee, para se tornar parte integrante da MPB(Música Popular Brasileira). Ouvir U2 e Legião Urbana naquela época, fazia parte das duas faces de uma mesma moeda, na música nacional e internacional, que revelavam sentimentos de juventude, revolta, rebelião contra os valores estabelecidos, mas também paixão, poesia e esperança. Pra quem viveu a época, éramos embalados por Sunday Bloody Sunday na voz de Bono, assim como escutávamos Geração Coca-cola, através do gogó de um jovem Renato Russo.



A música do U2 em seus primórdios revelava o mesmo questionamento político que fazíamos aqui nos últimos anos da ditadura militar, ainda sob o veto da censura, com Lula e seus sindicalistas ainda fazendo muito barulho num recém fundado PT, e no embalo da campanha das Diretas Já. Nosso escapismo era escutar as rádios e comprar os novos discos de vinil das bandas do momento, passando horas intermináveis após a escola tateando nas prateleiras, entre álbuns do U2, do Legião Urbana, e de um sem número de bandas que gostava de colocar na minha antiga vitrola, do 3 em 1, em meu barulhento quarto. Foi nos vídeos do antigo programa de televisão "Som Pop", que vi pela primeira vez os irlandeses do U2, num show antológico em Dublin, com um Bono ainda usando um cafona penteado mullet, enquanto The Edge ainda tinha cabelo e Adam Clayton parecia um nerd saindo de uma loja de bonecas, com aquele cabelão loiro e cacheado, cobrindo uns óculos parabrisa que eu também usava. Os caras simbolizam o espírito da rebelião ou do engajamento politicamente correto. Não eram escrotos, drogados ou viciados em sexo como os Stones, e nem tão pueris ou beatificados quanto os Beatles, autodestrutivos como o pessoal do The Who ou xamânicos como o Led Zeppelin de Jimmy Page e Robert Plant, mas eram carismáticos, jovens e hasteavam a bandeira de uma causa reconhecida como justa no mundo inteiro: o massacre de vidas inocentes e civis nos conflitos pela independência da Irlanda do Norte, entre as lutas do IRA (exército republicano irlandês) contra as forças invasoras da Inglaterra.



Pois é! Se tínhamos aqui na América do Sul a decadência de ditaduras, na Europa dos irlandeses do U2 tinha-se uma economia combalida pelo desemprego, o apogeu do discurso neoliberal e de extrema-direita no Reino Unido, do governo ultraconservador de Margareth Thatcher (aliado do governo da mesma linha do republicano Ronald Reagan nos EUA e amiga íntima do ditador Pinochet do Chile) e o clima ainda pesado da Guerra Fria, num mundo dividido entre dois blocos: dos adeptos do capitalismo, vinculados a Washington, e aqueles integrantes da chamada "cortina de ferro", liderada por Moscou, no bloco soviético. Éramos todos jovens, vivendo num mesmo mundo e numa mesma época, unidos pela luta global contra governos demagógicos, capitalistas e autoritários, assolados pelo medo de um conflito nuclear entre as potências e sofrendo as mazelas do capitalismo com nossa fama de terceiromundistas. Sim! Era muito bom escutar U2, pois a música deles revelava uma causa para qual lutar. Além disso, os caras eram católicos! E apesar de hoje eu ser protestante e antipapista, não deixava de ser interessante uma banda que, em suas letras, falava de Deus e de revolução da mesma maneira enérgica e empolgante que The Edge estremecia multidões nos estádios tocando seus riffs de guitarra, ao escutar a inebriante canção Pride (in the name of love), que falava de Cristo e Martin Luther King, ou New Years Day. "What more in the name of love"????

No livro "Rock and Roll-uma história social", publicada aqui no Brasil pela Editora Record, o historiador Paul Friedlander traça um retrato desse estilo musical, falando no capítulo 18 sobre o rock produzido nos anos oitenta. É digna de transcrição, a passagem em que analisa as letras dos grupos, em termos conclusivos, dizendo que na época, "a história das letras de pop/rock registra uma transmissão de mensagens implícitas e explícitas, relatos, símbolos de rebeldia, mudança social e amor". De fato, é tudo isso que se pode encontrar na música do U2, sendo que nos últimos anos, a banda procurou redimensionar seus conceitos artísticos, sempre mantendo porém um certo estilo, ao flertar com a música eletrônica nos anos noventa, em álbuns como Acthung Baby, Zooropa e o célebre Pop, que valeu a primeira turnê do grupo ao Brasil, da qual este que vos escreve assistiu ao vivo e em cores, em minha passagem pelo Rio de Janeiro, quando a banda aportou aqui para um show memorável no autódromo de Jacarepaguá.

Se na década de oitenta do século passado, o U2 e outros grupos aproveitaram um momento histórico significativo para a música popular, com a revolução através da televisão, via MTV, hoje em dia, a revolução midiática prossegue, mas em outro ritmo, bem mais acelerado e através de outras mídias como a internet, os programas de MP3, o Youtube, os I-pods, e até mesmo os celulares. Os caras do U2 além de bons músicos, são muito bem assessorados profissionalmente e se revelaram excelentes administradores da própria carreira, pois sempre souberam se promover decentemente, utilizando dos recursos mercadológicos das novas tecnologias. Um exemplo disso é que antes do lançamento do novo álbum, os caras já disponibilizavam o novo material através de aparelhos celulares, associando-se a uma famosa marca do setor da telefonia, divulgando seu novo projeto e seus novos vídeos, como também promovendo ainda mais a carreira e engordando suas já adiposas contas bancárias. Quem é que hoje, seja em Nova York, no Nepal, no Malauí, ou num casebre de barro no interior do Maranhão, que não tem, nem que seja um aparelho celular? Pois é! É nesse aparelhinho que agora dão as caras Bono e sua turma!


Mas, voltando aqui ao novo disco, que é o que realmente nos interessa neste artigo, após tantas conexões que fiz entre o passado e o presente da banda de Bono, como eu tinha dito no começo destas linhas, uma banda pode se reinventar mudando tudo o que antes já produziu, arriscando-se a redefinir seu estilo (os caras do U2 já tinham tentado fazer isso nos anos noventa), ou então manter o que está bom, apenas revisitando obras anteriores, numa colagem de antigos riffs e canções, que tão e simplesmente fazem de No line on horizon uma verdadeira autoparódia de tudo o que o U2 já produziu. Como eu já tinha dito, o disco é bom, mas não apresenta nenhuma novidade quanto à musicalidade já conhecida da banda.

Pra se ter uma ideia, ao escutar a faixa de abertura, cujo título é o mesmo do álbum, não há como não deixar de recordar a canção The Fly, eternizada nas rádios, no começo dos anos noventa, no já citado disco Acthung Baby. Já a segunda música Magnificent, com seu refrão grudento, lembra puramente Unforgetable Fire, um dos primeiros discos da banda ( e aquele que os popularizou), juntamente com o álbum War, que também serviu como ícone para o trabalho do grupo, com a lendária logomarca do menino "Radar" em sua capa. É musica pra tocar em FM direto (como, com certeza, irá tocar), e embalar as festas com a gata do lado(que, naturalmente, vai ter que ser fá do U2 pro "xaveco" pegar), nas pistas de dança das boates ao redor do mundo. Ouvindo a música, dá pra perceber porque o jovem grupo norte-americano de Las Vegas, The Killers, foi tão influenciado pelo quarteto irlandês. Já a música seguinte, Moment of Surrender, parece em seu começo que a banda de Bono rendeu-se ao Radiohead, mas logo fica clara a marca do grupo, mostrando que a música trata-se, nada mais, nada menos, que a continuação do projeto alternativo de Bono e The Edge, iniciado com a banda paralela Passengers, mais uma vez na década de noventa (quem é que não se lembra de Miss Sarajevo, cantada por Bono junto com o finado tenor Luciano Pavarotti?). Para quem é fã, é música pra se escutar no escuro, acendendo uma vela (catolicamente falando, como é bem do estilo do grupo). O ritmo prossegue o mesmo, mas com um certo ar mais lírico, ao se ouvir a canção que segue, Unknown Caller, mais chegada a um certo esoterismo, com um lance meio de guitarra mística tocada por The Edge, porém seguida da batida meio tribal e característica de Larry Mullen, e o jeito de canção gospel, bem ao estilo de If God send his angels, de discos mais recentes, como o também bom All That You Can Leave Behind.

Agora a música da metade do disco que se segue, a quinta canção, meio que fazendo um marco proposital no interior do álbum, talvez muito pela influência do produtor da banda Brian Eno (ex-Roxy Music), é a faixa mais pop, mais baba, mais comercial, e mais "papai, quero tocar na FM". É a típica balada romântica e animada que aparece, de vez em quando, nas obras do U2, e que serve como ótimo motivo pra chamar a ex-namorada pra sair e tocar no carro. Como diria meu amigo cineasta, Aristeu Araújo, com seu bom humor sarcástico, a música é bem "romantiquinha", mas não deixa de ser bacana por causa disso. Ou alguém aqui vai dizer que nunca cantarolou "With or Without You, do célebre álbum Rattle and Hum? Para Rodrigo Salem, crítico da revista Rolling Stone Brasil, é Bono Vox querendo ser Justin Timberlake (arrrghhh!!! essa doeu!), mas aí é outra história.

Meio que saindo um pouco do romance, eis que após a quinta faixa surge a canção Get on your Boots, mostrando bem o quanto Bono permanece antenado às novas gerações. Pois não há quem me diga ou convença que o electro-rock movido a Red Bull dessa música não tenha influência em seus riffs, da dupla White Stripes. É música agitada boa pra contrastar com a meiguice da canção anterior. Depois, como que seguindo na influências de outros ritmos aliados ao rock, vem a canção Stand up Comedy, com influência da black music, e as letra irônica e politizada de um Bono ainda em boa forma. Lembra Until the End of the World, outro megahit tocado à exaustão na década de noventa, também do ultracitado álbum Acthung Baby. A próxima música Being Born, volta ao projeto Passengers, com um pingo de Pop, com uma pitada de Last Night on Earth do disco referido, pra talvez voltar a ser uma música tipicamente eletrônica, como que num disco do Depeche Mode. Depois segue outra música marco do disco, White as Snow, considerada pelos críticos de algumas revistas a mais bela das produções recentes do U2, e talvez uma das mais adultas, por tratar em sua letra, da triste história de um soldado que morre no Afeganistão. É o U2 voltando a sua veia politicamente correta ou altamente politizada, bem ao sabor dos tempos em que Bono cantarolava Sunday Bloody Sunday. A penúltima música, Breathe, apresentada inicialmente à mídia e candidata a ser um dos singles do álbum, e faixa de propaganda, tocada com exclusividade no programa de David Letterman nos EUA, talvez seja uma das que eu mais goste:simplesmente visceral, forte, marcante, rebelde, viril, como o U2 que conheci quando era adolescente, e que me deixou embasbacado, confiante e com vontade de sair às ruas para protestar, correndo atrás dos meus sonhos. É a canção com The Edge mais solto como nunca, esbanjando a competência na guitarra que lhe é devida, fora suas sabidas limitações como virtuose, fazendo o que ele mais sabe: riffs de guitarra extremamente bacanas e que são escutados e reconhecidos pelo até mais surdo dos mortais!

A canção de encerramento, como em todo disco do U2, tinha que ser uma canção mais intimista, pois Cedars of Libanon é bem a cara de um Bono mais poeta, que deixa para o final, juntamente com os teclados belamente arranjados por Brian Eno, que os ouvidos mais sensíveis escutem como um sussurro a melodia pós-moderna que trata de temas da atualidade, como a massificação da mídia, a guerra, os conflitos globais, os vícios e as incertezas do período, com uma sonoridade mais filosófica, menos romântica, mas elegantemente bela.


Para os quase cinquentões do U2, não deixa de ser encarado como um "ufa" a exclamação final ao encerrar mais um ciclo em que apresentam ao mundo um trabalho regular, longe de ser uma obra-prima, mas que tem sim, seu reconhecido valor. Talves No line on horizon seja melhor que os últimos discos da última safra pró-século XXI, ou década de dois mil da obra da banda irlandesa, mas, com certeza, não é o melhor álbum de sua história. E nem poderia ser, até porque qualificar qual é o melhor disco não é tarefa dos músicos e nem dos críticos, mas sim do próprio público, dos fãs que aguardam ansiosos um novo material ou dos novos fãs que podem ser arrebatados, nas novas gerações que vivem de baixar música na internet ou ver vídeos no Youtube, e não fazer, como eu fazia, agora dinossauro, ao procurar música na década de oitenta, passando horas nas lojas de discos, ouvindo meus artistas e bandas prediletas.

É isso! Como diria o crítico de música André Barcinski, dentre as 100 melhores bandas de rock do século XX, o U2 é a banda "brega" mais legal do planeta. Sim, pois o que os caras fazem é um rock pop de qualidade, sem grandes especulações filósoficas ou rítmicas como os discos do Radiohead, ou as viagens do rock progressivo do Pink Floyd ou de um Genesis da década de setenta, na fase com Peter Gabriel. Os caras nem tampouco são operísticos ou ricamente teatrais como eram os caras do Queen, com o finado e saudoso Freddy Mercury nos vocais, mas tem sim seu valor e muito valor. Barack Obama que o diga, um dos fãs confessos da banda, responsável pelo convite feito aos músicos para tocar no dia de sua posse, em frente ao Lincoln Memorial Center, em Washington, no começo deste ano. Você quer moral maior do que essa? It's only rock and roll, but I like it!!!!!

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