Início o primeiro post do ano neste blog para falar de um tema muito feio: o preconceito. Creio que desde crianças, em determinada fase de nossa formação, ouvimos falar dessa palavra, que ao pé da letra significa um "pré" (antes) do conceito, ou seja, uma espécie de conceito superficial, mal formado acerca de pessoas e coisas, antes de termos um conceito propriamente dito sobre algo. Implica em dizer que não podemos "julgar um livro pela capa", como se diz no adágio popular, ou não podemos nos deixar levar por ideais pré-formuladas, ou por "minhoquinhas" que entram ou já estão em nossa cabeça, antes de propriamente conhecer algo ou alguém. Na Sociologia do Direito alguns autores chamam isso de "metanorma", uma norma pré-concebida no inconsciente de quem julga que compromete, de certa forma, a formulação de seu juízo. De qualquer forma, o que me interesse aqui falar é do preconceito que todos nós, eu, você e o próximo já podem ter recebido ou cometido, por diversos fatores.
Essa semana li na coluna do dramaturgo Walcyr Carrasco, na Revista Época, um artigo onde ele fala de preconceito, citando um colega seu: o novelista Aguinaldo Silva. Walcyr tomou as dores de Aguinaldo (apesar dele mesmo falar de que ambos tem lá suas desavenças), relatando o preconceito que Silva, negro, sofreu ao entrar em um determinado restaurante do Rio de Janeiro, e, segundo o que relata o texto, ser vítima dos piores dos preconceitos. Silva teve dificuldade de encontrar uma mesa para sentar, uma vez que estava sozinho (daí Carrasco aponta o primeiro preconceito que existe nas grandes cidades: contra os sozinhos); e além da dificuldade de mesa, teve o novelista que aguentar o descaso no atendimento, sendo recebido por garçons mal educados e zombeteiros, que inclusive ficaram rindo do cliente, fazendo chistes enquanto um dos garçons tinha espirrado (segundo ele diz) acidentalmente num prato que o novelista acabou comendo.
O preconceito é algo tão grave, tão nefasto, mas tão comum, que o presenciamos desde tenra infância, especialmente na prática do chamado bullyng, tão comum hoje nas escolas. Basta que um aluno seja diferente, mais gordo, mais magro, mais alto ou mais baixo, que tenha orelhas de abano, um nariz muito grande, ou que fuja um milímetro do padrão que nosso senso comum nos aliena, para que alguém seja vítima do escárnio, de piadas, zombarias, violências; ou seja simplesmente ignorado como alguém inferior. Recordo de ouvir numa conversa casual o relato da irmã de um colega meu, bem afortunada financeiramente, que na sua rotina de classe média disse que ficou espantada com a reação da filha dela, uma garotinha de 5 anos de idade, que ao ver na escola uma coleguinha deficiente física, numa cadeira de rodas, desandou a rir e fazer gracejos da menina, como que na sua inocência infantil a outra criança estivesse numa condição muito engraçada. Essa jovem mãe me disse que chegou a ser chamada pela direção do colégio de sua filha por conta disso; mas ela mesmo tentou se justificar, dizendo que nunca tinha ensinado sua filha a ser preconceituosa. Creio que o problema foi o contrário: ela não ensinou sua filha a não ser preconceituosa.
Eu posso dizer que, infelizmente, também recentemente, senti-me vítima de preconceito. Curiosamente no mesmo dia em que um desembargador envolveu-se numa confusão em uma padaria da cidade, por conta de um suposto mal atendimento de um garçom, que levou a toda uma discussão sobre racismo ou abuso de autoridade, em um fato ocorrido num domingo (dia 29 de dezembro) do ano passado. Nessa época, após o Natal e perto dos festejos do Ano Novo, saí para a praia com meus familiares, e depois deixei minha esposa e minha mãe em casa, quando decidi dar uma volta, no período da tarde, pelo centro da cidade. Como eu só tinha feito um lanche na praia e ainda estava com fome, dirige-me a um badalado bar e restaurante do bairro de Petrópolis, na capital potiguar, onde nunca tinha ido antes, e ao lá chegar presenciei como a força dos estereótipos e preconceitos pode não somente estragar uma tarde, como também doer na alma e na dignidade de quem sabe que é e se sente cidadão.
Em primeiro lugar, é preciso que o leitor saiba como eu me encontrava naquele momento, para poder compreender no relato a força dos estereótipos e da estigmatização. Como eu tinha vindo da praia, ainda estava com os pés um tanto quanto cobertos de areia, o que é normal para quem vive em cidades litorâneas, num dia de domingo, próximo à praia, em pleno e abrasador verão. Além disso eu estava bem à vontade, vestido conforme a temperatura: de camiseta, bermuda, boné e sandálias havaianas, e como eu estava com os braços descobertos, dava para se ver as duas grandes tatuagens que ostento em ambos os braços. Além disso eu estava barbudo e de brinco em uma das orelhas. Gostaram do visual? Além disso sou negro. Não daqueles do tipo "azulão", mas com uma característica étnica bem definida que me diferencia bastante de um europeu loiro de olhos azuis, do tipo caucasiano.
Pois bem! Era exatamente 16 horas e 30 minutos de uma tarde quente, num estabelecimento que não tem as portas fechadas, e, pelo contrário, é bem aberto, com um visual convidativo e agradável, localizado em uma das ruas mais tradicionais da elitista classe média alta natalense, num bairro que possui os percentuais de IPTU mais caros da cidade. Ao entrar no local, educadamente eu perguntei aos primeiros funcionários (um deles parecia músico, uma vez que toca música ao vivo no bar), se o restaurante ainda estava aberto, pois eu pretendia pedir alguma refeição e quem sabe uma cerveja gelada ou refrigerante. De imediato, um dos presentes me disse que o local estava aberto, e me dirigindo a uma mesa, a garçonete que me atendeu confirmou a informação, dizendo que o lugar só fecharia depois das 18 horas.
Satisfeito de início com o atendimento, a garçonete me separou uma mesa, sentei-me e ainda pude presenciar uma alegre família, em torno de umas dez pessoas, de diferentes idades e gêneros divertindo-se numa mesa próxima, como se fosse o aniversário de alguém, ou uma lúdica reunião de família qualquer. O que pude notar em diferença a minha mesa em relação à barulhenta mesa vizinha é que, além de eu estar sozinho em uma mesa, e a outra estar repleta de gente, pude perceber que os outros clientes do restaurante onde eu me encontrava eram bem diferentes de mim em termos de cor da pele: eram todos brancos, muito bem vestidos e, aparentemente muito bem de vida. Se de um lado havia um cliente solitário, negro, mal vestido e calado; do outro havia uma dezena de clientes falastrões, alegres, brancos e todos acompanhados. Até aí eu não via problema nenhum pois pensava: "cada um no seu quadrado".
Ocorre que, além de demorar o atendimento da mesa, enquanto eu segurava um cardápio nas mãos, depois de uns dez minutos de espera presenciei outro garçom que veio até minha direção, no lugar da solícita garçonete que até então tinha me atendido. O garçom foi curto, objetivo e enfático ao me dizer que o local já estava fechado. Como é que é? Lugar fechado? E o que tinham me dito antes? Além de estupefato, fiquei desorientado inicialmente com a negativa do atendimento, e como quem não tinha entendido direito a primeira mensagem, perguntei em desalento: por que? O garçom limitou-se a dizer que tinha recebido a ordem de me informar que o lugar já estava fechando as portas. Ordem de quem? Mas não haviam me dito que o restaurante só fechava às 18 horas? O que foi que aconteceu?
Agora, menos surpreendido do que indignado, retirei-me bruscamente da mesa, procurando não deixar que a fúria tomasse conta diante de tal despropósito contra o consumidor, passando pelos mesmos funcionários que haviam me atendido na entrada do bar, no momento de minha chegada, inclusive pela mesma garçonete que inicialmente me atendeu, observando o olhar atordoado destes, que também se perguntavam: o que aconteceu? Lembro que eu simplesmente disse a eles que, diante da falta de atendimento e da forma abrupta que fui despejado, eu nunca mais iria naquele estabelecimento, e ao pegar meu carro estacionado na rua, ainda parei em frente ao lugar da afronta e disse a um dos seguranças que eu podia até não processar o restaurante, mas com certeza iria divulgar em todas as redes sociais em que eu participasse o tamanho da falta de respeito e flagrante insinuação de preconceito que sofri. Será que foi por eu ser negro? Ou porque eu estava mal vestido? Ou por estar sozinho em uma mesa? O que me chamou atenção nessa rápida, mas desagradável saída do bar, foi constatar de relance apenas um último e significativo dado acerca do que me aconteceu: as pessoas da outra mesa continuavam rindo e se divertindo dentro do bar, sem que o bar fechasse as portas, sem que eu sequer existisse.
São essas chatas e incômodas situações cotidianas que nos fazem lembrar sobre o peso do preconceito. O que fazer numa hora dessas? Esbravejar, fazer um escarcéu, chamar a polícia ou as câmeras de televisão? Se eu fosse utilizar de qualquer prerrogativa minha de funcionário público, nível escolar, titulo acadêmico ou cargo de importância, liderança ou autoridade, poderia ser acusado de abuso de poder, de ser arrogante, um boçal que gosta de dar carteiradas em lugares de acesso ao público, ou de me valer do mesquinho expediente de classe identificado pelo famoso antropólogo Roberto Da Matta, no seu célebre livro Carnavais, malandros e heróis, indagando aos meus interlocutores aquela popular frase: "Você sabe com quem está falando?". Mas não foi o que ocorreu. Naquele momento preferi me calar, no silêncio constrangedor das vítimas. Para não me parecer com o indelicado desembargador Dilermando Mota, que ocupou as páginas da mídia local e das redes sociais, após ter destratado um garçom e um empresário no mesmo dia, em uma padaria de Natal, por supostamente não ter sido bem atendido, eu preferi ser mais discreto e me valer deste espaço, que é meu e de meus leitores, para um salutar debate de ideias, porque como professor creio que o diálogo e a abertura de consciências são muito mais lucrativos a curto prazo do que uma celeuma que renda imprensa e processos judiciais. É óbvio que, sabedor de meus direitos, eu poderia muito bem ter acionado todos os canais legais competentes para denunciar um suposto abuso, ou mesmo a prática de um racismo por parte de funcionários, clientes ou da gerência do citado estabelecimento. Mas numa história em que não se procurou "dar nome aos bois", prefiro a credibilidade do meu relato, informando aos que leem esse blog do que aconteceu, do que ficar cultivando rancores e desentendimentos desnecessários com quem quer que seja.
Preferi me valer do silêncio constrangido do novelista Aguinaldo Silva, como conta em sua crônica Walcyr Carrasco, que também gostaria este último que seu colega processasse o estabelecimento que o tratou mal. Prefiro numa sociedade civil e democrática que a vergonha e a perda moral seja maior do que a perda legal para os donos ou responsáveis pelo estabelecimento onde presenciei uma pequena humilhação. Prefiro que o episódio relatado sirva de lição, e que dessa lição possamos manter a cabeça erguida, e combater preconceitos, que constrangem, machucam; mas, sobretudo, cultivam o ódio e a dor, e por isso precisam ser combatidos por meio da educação e da consciência cívica. Que possamos ser nessa vida, ao menos, menos preconceituosos!