Nesse mês o cantor Luiz Gonzaga Júnior, popularmente conhecido como "Gonzaguinha", desconhecido das novas gerações (mas muito conhecido por aqueles que já passaram dos quarenta ou cinquenta) faria 70 anos. Morto em 1991, aos 45 anos, num acidente automobilístico no Paraná, após regressar de um show, Gonzaguinha ainda é uma das maiores vozes que o país já teve, ao lado de ícones como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Infelizmente, diferente desses últimos que chegaram a terceira idade, Gonzaguinha não teve tempo de viver a vida por longo tempo, mas a viveu por inteiro, numa história de vida talvez tão fascinante quanto às letras e emoções das suas canções. Tratava-se de um compositor completo, poeta passional, genuinamente brasileiro, nativamente e emocionalmente carioca, romântico e politizado, como um Pablo Neruda do Corcovado. Filho do genial compositor nordestino Luiz Gonzaga, o cantor carioca reconciliou-se com o pai já na vida adulta, e apesar das diferenças de estilo, ambos foram para suas épocas, alguns dos mais talentosos artistas que a música brasileira já teve.
Gonzagão era tradicional, alegre, apolítico e regionalista, enquanto que seu filho, Gonzaguinha, era moderno, introvertido, politizado, rebelde e assumidamente multicultural, mas ambos, pai e filho, tinham um carisma incomensurável. Tais diferenças podem ser vistas no emocionante filme Gonzaga-de Pai pra Filho., de 2012, dirigido por Breno Silveira (o mesmo de "Os Dois Filhos de Francisco"). Assisti a vida dos Gonzaga em um cinema no bucólico e boêmio bairro de Santa Teresa, na altitude de seu morro, no centro do Rio de Janeiro, com sua vista esplendorosa da "cidade maravilhosa". Nada mais emblemático do que ver um filme sobre um compositor e cantor que era a cara do Rio, dentro de sua própria terra (que por sinal gosto muito e onde passei felizes dias de minha infância), ao mesmo tempo em que, por conta das raízes nordestinas que Gonzaguinha tinha, assim como eu, e um histórico de conflitos com o pai na adolescência, o filme de Silveira me fez até chorar, e criar uma relação de empatia, familiaridade e gosto musical pela obra do autor que, em muito transcendeu o filme.
Gonzaguinha era, antes de tudo, um apaixonado, tanto pela vida quanto pelas mulheres, numa escala diretamente proporcional ao seu talento de fazer músicas sobre paixões, política, paz ou natureza. Quem, com alma de poeta, jovem, intelectualizado, no começo de sua vida adulta e cheio de ideais na cabeça, não vai escrever poemas ou canções? Quem não faz isso, principalmente quando se tem uma mulher na mente ou no coração? Gonzaguinha era um apaixonado não só por sua esposa, amantes ou namoradas, mas também pela sua cultura, pelo seu povo, pela sua gente e pela natureza, das árvores, riachos e cachoeiras, contidos em sua canção como na canção Lindo Lago do Amor. Sua via politizada, e seu amor pelas causas progressistas, no combate à ditadura e a exploração capitalista, era bem expressada e cantada em canções como Você Merece. Talvez a música que mais desperte a alma brasileira para o fim dos anos de autoritarismo e início da Nova República foi a canção É, representando o desencanto dos militantes pró-democracia após a derrota do Movimento das Diretas-Já, com a rejeição da emenda Dante de Oliveira, onde Gonzaguinha cantava que " a gente não tem cara de panaca, a gente não tem jeito de babaca, com a bunda exposta na janela, pra passar a mão nela".
Fico imaginando hoje Gonzaguinha aos 70 anos, idoso, se é que ainda chegaria a essa idade, mesmo salvando-se do acidente que o matou, escapando de uma cirrose por conta do alcoolismo ou de um câncer ou efisema pulmonar, por conta do tabagismo exacerbado. Será que ele continuaria progressista, um militante de esquerda, ou daria uma guinada à direita, como fizeram contemporâneos seus como Raimundo Fagner, Alceu Valença e Jards Macalé? Será que ele continuaria fazendo shows, principalmente fora do país, como fazem Caetano e Gil, viraria ícone, e lançaria livros como um Chico Buarque, na falta de discos? Será que ele encontraria a fé evangélica e se converteria, tornando-se um representante da causa gospel, como Baby Consuelo, depois dos Novos Baianos em sua carreira solo, ou como o sambista Bezerra da Silva, no final da vida? Será que ele se isolaria, com a barba branca e o cabelo ralo, em algum apartamento em Copacabana, acompanhado apenas da presença esporádica dos filhos e de um violão, relembrando os tempos de glórias passadas e conversando de vez em quando com Nelson Motta, ou seria visto ainda à noite biritando em algum bar da Lapa, atrás do sorriso de uma bela mulher, enquanto rabiscasse poemas e versos num guardanapo, por detrás do balcão? Será que ele teria twitter, página do facebook ou instagram, ou escreveria artigos num blog, ou em algum artigo sobre música e cultura, de algum jornal ou revista de distribuição nacional?
E, principalmente? Em relação a esse governo federal, tão criticado pela oposição, raivosa ao PT, partido que nos anos oitenta Gonzaguinha respeitava. Será que ele também iria se transformar num "coxinha", viraria as costas para o partido, como já fizeram outros artistas, atores e cantores, chegando ao cúmulo de falar mal do governo para uma plateia de emergentes em Nova York, como fez o cantor Fábio Jr recentemente, ou sairia à francesa para fora do país, como faz, de vez em quando, Chico Buarque, mantendo ainda seu apoio ao governo e preservando seu status de ícone, dando a mínima para as críticas de uma juventude mimada, de classe média, que gosta de ir a protestos em dias de domingo contra o governo, vestido de verde e amarelo, só pra posar selfies em seus smartphones, que nunca ouviu ou não gostou de escutar suas músicas, e nunca soube o que é enfrentar e ser perseguido pela ditadura?
Talvez Gonzaguinha fizesse tudo isso, virasse um exemplo de cidadão comum ou repetisse a dinâmica das celebridades; ou talvez ele inovasse por completo, surpreendendo a todos nós, como nos surpreendeu, ao partir precocemente, naquela fatídica estrada que tolheu sua vida numa rodovia do sul do país. Talvez sua maior e última inovação tivesse sido a morte, o prenúncio de que nada seria do mesmo jeito outra vez, e o que país, assim como sua cultura e musicalidade sofreriam mudanças profundas. Gonzaguinha partiu antes, talvez para não ver e se decepcionar com a decadência da era do disco, a predominância das mídias digitais, a transformação das rádios FM em espaços para transmissão de "jabás", ou músicas pop de qualidade duvidosa, ou em redes cedidas para igrejas evangélicas. Gonzaguinha veria uma boêmia diferente, não mais de dinheiro contado na mão para pendurar a conta no bar, no fim da festa, mas de bêbados conscientes e preocupados em não serem pegos na Lei Seca, com seus cartões de crédito e débito no balcão para evitar uma peça de museu chamada fiado, saindo mais cedo e de táxi numa cidade com muitos mais ladrões e repressão policial, mesmo que dentro de uma democracia, que caras como Gonzaguinha ajudaram a construir. De qualquer forma, antes de morrer, Gonzaguinha viveu, e não teve a vergonha de ser feliz!! Ele cantou a beleza de ser um eterno aprendiz!!
Talvez para não ver o fracasso das UPPs, os equívocos, contradições e erros do lulo-petismo e os novos rumos da música brasileira, centrados em programas luxuosos de TV como o The Voice, no lugar de grandes festivais, Gonzaguinha tivesse que ter partido tão cedo. Talvez, e sobretudo, talvez, no meu enorme exercício de especulação, Gonzaguinha tivesse que ter morrido para se transformar em lenda, e que lenda: a lenda de um Brasil que resiste, mas não tem medo de se assumir brasileiro!! Um brasileiro típico, chamado Gonzaguinha.