quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

COMPORTAMENTO: Maui e o preconceito estético

Estreia essa semana nos cinemas, a animação "Moana", dos estúdios Disney, dirigido pelos bem sucedidos diretores de animações, Ron Clemens e John Musker. O desenho deverá encantar crianças e adultos, pois se passa na Oceania, onde a heroína, uma morena de cabelos cacheados, faz-se acompanhar de um semideus grande, forte e gorducho, o indolente Maui (dublado pela voz do ator Dwayne Johnson), em paradisíacas paisagens oceânicas, que lembram as ilhas de Fiji, Samoa e Bora Bora, recriadas perfeitamente após uma pesquisa geográfica com afinco, além de apresentar um vilão que, na verdade, é um acidente natural (um vulcão). 

Entretanto, antes de estrear, o filme já gerou controvérsias nas democráticas, mas nem sempre esclarecidas redes sociais, com muitas críticas ao personagem heroico do filme, o semideus Maui, pelo simples fato dele ser gordo. Maui é alto, cabeludo e todo tatuado, mas, sobretudo, corajoso e um tanto engraçado. Apesar dessas qualidades, alguns "vigilantes do peso" virtuais apenas viram um cara gordão no meio da tela.

O dramaturgo Nelson Rodrigues dizia que sempre preferia em suas peças, colocar como vilões os magros, e fazia uma defesa pública dos gordos; pois, entre suas tiradas históricas, pode-se colher as seguintes expressões: "O gordo só é cruel na mesa, diante do prato, com o guardanapo a pender-lhe do pescoço", ou em relação aos magros: "É preciso ver os magros com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros."

Rodrigueanismos a parte, os comentários maldosos acerca da silhueta do herói do desenho da Disney, a meu ver, tem relação com um velho elemento cultural: o preconceito estético. Numa sociedade que prioriza a forma, a perfeição do corpo, e, principalmente, cultua um ideal de saúde representado por um corpo magro, esbelto, e, de preferência musculoso, aqueles que apresentam um semblante mais roliço tornam-se párias, os marginalizados da beleza. Se são crianças, sofrem a mais cruel das provações sociais: o bullying. Quando criança, no efeito sanfona que sempre permeou a vida (e o formato) de minha trajetória, eu sofria uma dupla estigmatização: ser gordo e usar óculos; ou seja, um alvo fácil para meus algozes "perfeitinhos" e magrinhos. 

Existe muita ignorância em relação à forma física de cada um, e aos padrões de beleza associados ou não a uma camada maior ou menor de tecido adiposo. Ora, na Renascença, nos diversos quadros de Renoir, as mulheres bonitas eram retratadas com uns quilos a mais, pois o padrão de beleza estava associado à ociosidade dos ricos, que, por isso, mais bem alimentados, contrastavam com a esqualidez da camada mais pobre do campesinato.

Hoje em dia, inclusive, proliferam a moda das modelos plus size, representada por mulheres muito bonitas, mas com uma desproporção acentuada entre a altura e o peso do corpo. Mesmo assim, no mercado de trabalho, é comum ainda encontrar resquícios de preconceito estético nas contratações por algumas empresas privadas. Quem nunca se sentiu excluído, por ter uns quilinhos a mais, quando viu nos cartazes de ofertas de empregos, a crucial expressão: "requisito da boa aparência"?!

Eu mesmo vivi e ainda vivo no meu cotidiano cenas de preconceito explícito quanto a minha forma física, e percebo que a ignorância acerca da democracia estética atinge também o discurso médico. Como diria o filósofo Michel Foucault, o discurso médico também é uma das formas de saber, e saber é poder, pois o conhecimento também pode ser utilizado como uma forma de opressão. Na teoria de Foucault, o saber dos doutos podia se manifestar como um poder estabelecido sobre os corpos. Desta forma, senti a força dessa opressão corporal ao me dirigir, por exemplo, a um gastroenterologista para resolver um problema de estômago, ou a um otorrinolaringolista, para tratar de um problema de sinusite. Foi até engraçado, pois ambos, sem sequer medir a minha pressão arterial ou me examinar com um estecoscópio, ao me ver entrando na sala, e olhar para meu corpanzil, já sentenciaram: "seu problema está relacionado com o aumento de peso, o senhor precisa emagrecer". Ora, consulto anualmente um cardiologista, faço todos os testes e exames, e, graças a Deus, pelo menos até o momento, minhas taxas estão todas equilibradas e não apresento nenhum problema sério de saúde, a não ser uma hipertensão arterial, que é herdada de família, e que, passei a desenvolver, aos 30 anos, quando era............. magro!!!


Vivi um efeito sanfona a vida toda, alternando momentos de extrema magreza e excesso de peso. Tenho 1,74 m, mas me recordo que, em 2005, quando tive uma súbita perda de peso, por conta de um doença, cheguei a pesar 82 kg, e todas as pessoas, especialmente colegas de trabalho e alunos em sala de aula comentavam nos corredores que eu deveria estar gravemente enfermo, e até mesmo portando o vírus da AIDS, tamanha era minha magreza e abatimento. Talvez por conta de minha estatura larga, não posso perder peso em excesso, e talvez por conta disso meu peso ideal sempre esteve entre 90 a 95 kg. E se me perguntarem hoje? Sim, estou acima do peso. Tenho mais de 100 kg, apesar de correr toda semana e fazer academia ao menos duas vezes por semana. É pouco? Com certeza. E tendo deixado de fumar há mais de 5 anos, passado dos 40 anos, onde o metabolismo necessariamente se modifica e se torna menos acelerado, preciso, sim, fechar a boca, adotando uma dieta mais regrada e baixa em calorias, além de fazer mais exercícios. Entretanto, busco isso não para atingir um ideal estético, pois sou feliz como sou, e na minha autoestima, ainda acho-me um cara maduro bastante atraente. Perder peso para mim é apenas uma forma de aumentar minha qualidade de vida, tornar-me mais ágil e menos suscetível a doenças com o decorrer da idade, e, também, uma forma de aproveitar melhor minhas calças preferidas. Mas enquanto aqueles que acham que o Maui do desenho da Moana é um monstro gordo e não deveria estar lá?

Numa sociedade que cultua a magreza,as plus size destacam-se
Eu digo que o preconceito estético começa em nossas casas, dentro da nossa própria família. É na família que ele começa quando nossos pais nos criticam, e uma forma menos delicada de dizer que estamos comendo demais ou além da conta, é dizer que estamos gordos (ou, com menos sensibilidade ainda, dizer que vamos nos transformar numas baleias). Sou de uma família de pessoas de corpo avantajado como herança genética, a começar pelo meu pai, e, mesmo assim, desde criança, até a vida adulta, ouvi meus pais caçoarem de mim toda vez que eu aumentava de peso, dizendo que eu estava virando algum animal qualquer, de um zoológico de bichos de perfil nada esquálido. Não faziam (ou não fazem) isso por maldade, mas por uma forma de alertar os filhos sobre os problemas de saúde associados ao sobrepeso. Entretanto, ainda me resta um fio de mágoa ao escutar comentários acerca do tamanho de minha barriga, cultivada há mais de dez anos entre barris de chope da melhor qualidade, quando advirto a eles que faço exercícios e que minha saúde esta ok. Então, por que tanta falação?

Meus pais, como muita gente que ocupa as redes sociais, estão alienados por um modelo cultural baseado em uma ideologia: a ideologia da perfeição corporal, e isso não deixa de ser autoritário, beirando as vias do totalitarismo político. Ora, o tipo ariano, exortado por Hitler, na Alemanha nazista, não era apenas o ideal de indivíduo loiro, nórdico, da pele branca e sem manchas, mas também do tipo atlético, magro, esbelto e sem barriga, que representa uma suposta raça superior. Você já pensou se os nazi-fascistas tivessem ganhado a II Guerra Mundial, e além de homossexuais, deficientes físicos e mentais, negros, judeus e ciganos, eles também eliminassem, nas câmaras de gás, os gordinhos? Creio que metade da população dos Estados Unidos da América, alimentada a base do fast food, desaparecia do planeta, seria varrida do mapa, juntamente com seus copos de milk shake, seus pacotes de batatas fritas e seus sanduíches com bacon.


É importante salientar que minha crítica neste post não é um ataque recalcado aos magros, não faz apologia da gordura e nem estabelece um autoritarismo às avessas: ao pretender que todos fiquem gordos ou acima do peso, no lugar daqueles que estão magros, e ficam "se achando". Minha crítica acerca do preconceito estético é apenas um libelo, na tentativa de conscientizar aqueles que reconhecem seu preconceito, de que a beleza das pessoas não é só interior, é verdade, mas ela vai muito além das barrigas de tanquinho, e supera camadas e camadas de gordurinha que você possa ter na barriga, no quadril, ou abaixo do pescoço. Na verdade, olhar o outro de outra forma, além do seu peso, envolve entender que todos os padrões estéticos que adotamos, num determinado momento, são datados historicamente, e ser mais magro ou menos gordo não é o critério principal para você se relacionar com ninguém, seja para manter uma amizade ou para contrair um casamento. O que parece gordo para você, pode parecer belo para o outro, ou que é magro, para alguns, pode simbolizar muitas coisas, menos a beleza.

Em tempo: no tocante ao personagem Mauí, do filme da Disney, importante acrescentar um dado antropológico: entre os povos da Oceania, os tipos mais largos e arredondados pertenciam à nobreza, a classe dos guerreiros, pois os lutadores eram mais bem avantajados, pois precisam se alimentar mais, e, portanto, as crianças que forem assistir a animação podem, sim, ter um herói gordo, e Maui representa um desses tipos de heróis. Que meu filho, ao buscá-lo na escola, possa vislumbrar chegando um desses heróis, e não apenas um cara barrigudo, que tomou cervejas demais!!

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