Estreia essa semana nos cinemas, a animação "Moana", dos estúdios Disney, dirigido pelos bem sucedidos diretores de animações, Ron Clemens e John Musker. O desenho deverá encantar crianças e adultos, pois se passa na Oceania, onde a heroína, uma morena de cabelos cacheados, faz-se acompanhar de um semideus grande, forte e gorducho, o indolente Maui (dublado pela voz do ator Dwayne Johnson), em paradisíacas paisagens oceânicas, que lembram as ilhas de Fiji, Samoa e Bora Bora, recriadas perfeitamente após uma pesquisa geográfica com afinco, além de apresentar um vilão que, na verdade, é um acidente natural (um vulcão).
Entretanto, antes de estrear, o filme já gerou controvérsias nas democráticas, mas nem sempre esclarecidas redes sociais, com muitas críticas ao personagem heroico do filme, o semideus Maui, pelo simples fato dele ser gordo. Maui é alto, cabeludo e todo tatuado, mas, sobretudo, corajoso e um tanto engraçado. Apesar dessas qualidades, alguns "vigilantes do peso" virtuais apenas viram um cara gordão no meio da tela.
O dramaturgo Nelson Rodrigues dizia que sempre preferia em suas peças, colocar como vilões os magros, e fazia uma defesa pública dos gordos; pois, entre suas tiradas históricas, pode-se colher as seguintes expressões: "O gordo só é cruel na mesa, diante do prato, com o
guardanapo a pender-lhe do pescoço", ou em relação aos magros: "É preciso ver os magros
com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de
rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas
que conheci são, fatalmente, magros."
Rodrigueanismos a parte, os comentários maldosos acerca da silhueta do herói do desenho da Disney, a meu ver, tem relação com um velho elemento cultural: o preconceito estético. Numa sociedade que prioriza a forma, a perfeição do corpo, e, principalmente, cultua um ideal de saúde representado por um corpo magro, esbelto, e, de preferência musculoso, aqueles que apresentam um semblante mais roliço tornam-se párias, os marginalizados da beleza. Se são crianças, sofrem a mais cruel das provações sociais: o bullying. Quando criança, no efeito sanfona que sempre permeou a vida (e o formato) de minha trajetória, eu sofria uma dupla estigmatização: ser gordo e usar óculos; ou seja, um alvo fácil para meus algozes "perfeitinhos" e magrinhos.
Existe muita ignorância em relação à forma física de cada um, e aos padrões de beleza associados ou não a uma camada maior ou menor de tecido adiposo. Ora, na Renascença, nos diversos quadros de Renoir, as mulheres bonitas eram retratadas com uns quilos a mais, pois o padrão de beleza estava associado à ociosidade dos ricos, que, por isso, mais bem alimentados, contrastavam com a esqualidez da camada mais pobre do campesinato.
Hoje em dia, inclusive, proliferam a moda das modelos plus size, representada por mulheres muito bonitas, mas com uma desproporção acentuada entre a altura e o peso do corpo. Mesmo assim, no mercado de trabalho, é comum ainda encontrar resquícios de preconceito estético nas contratações por algumas empresas privadas. Quem nunca se sentiu excluído, por ter uns quilinhos a mais, quando viu nos cartazes de ofertas de empregos, a crucial expressão: "requisito da boa aparência"?!
Eu mesmo vivi e ainda vivo no meu cotidiano cenas de preconceito explícito quanto a minha forma física, e percebo que a ignorância acerca da democracia estética atinge também o discurso médico. Como diria o filósofo Michel Foucault, o discurso médico também é uma das formas de saber, e saber é poder, pois o conhecimento também pode ser utilizado como uma forma de opressão. Na teoria de Foucault, o saber dos doutos podia se manifestar como um poder estabelecido sobre os corpos. Desta forma, senti a força dessa opressão corporal ao me dirigir, por exemplo, a um gastroenterologista para resolver um problema de estômago, ou a um otorrinolaringolista, para tratar de um problema de sinusite. Foi até engraçado, pois ambos, sem sequer medir a minha pressão arterial ou me examinar com um estecoscópio, ao me ver entrando na sala, e olhar para meu corpanzil, já sentenciaram: "seu problema está relacionado com o aumento de peso, o senhor precisa emagrecer". Ora, consulto anualmente um cardiologista, faço todos os testes e exames, e, graças a Deus, pelo menos até o momento, minhas taxas estão todas equilibradas e não apresento nenhum problema sério de saúde, a não ser uma hipertensão arterial, que é herdada de família, e que, passei a desenvolver, aos 30 anos, quando era............. magro!!!
Vivi um efeito sanfona a vida toda, alternando momentos de extrema magreza e excesso de peso. Tenho 1,74 m, mas me recordo que, em 2005, quando tive uma súbita perda de peso, por conta de um doença, cheguei a pesar 82 kg, e todas as pessoas, especialmente colegas de trabalho e alunos em sala de aula comentavam nos corredores que eu deveria estar gravemente enfermo, e até mesmo portando o vírus da AIDS, tamanha era minha magreza e abatimento. Talvez por conta de minha estatura larga, não posso perder peso em excesso, e talvez por conta disso meu peso ideal sempre esteve entre 90 a 95 kg. E se me perguntarem hoje? Sim, estou acima do peso. Tenho mais de 100 kg, apesar de correr toda semana e fazer academia ao menos duas vezes por semana. É pouco? Com certeza. E tendo deixado de fumar há mais de 5 anos, passado dos 40 anos, onde o metabolismo necessariamente se modifica e se torna menos acelerado, preciso, sim, fechar a boca, adotando uma dieta mais regrada e baixa em calorias, além de fazer mais exercícios. Entretanto, busco isso não para atingir um ideal estético, pois sou feliz como sou, e na minha autoestima, ainda acho-me um cara maduro bastante atraente. Perder peso para mim é apenas uma forma de aumentar minha qualidade de vida, tornar-me mais ágil e menos suscetível a doenças com o decorrer da idade, e, também, uma forma de aproveitar melhor minhas calças preferidas. Mas enquanto aqueles que acham que o Maui do desenho da Moana é um monstro gordo e não deveria estar lá?
Numa sociedade que cultua a magreza,as plus size destacam-se |
Meus pais, como muita gente que ocupa as redes sociais, estão alienados por um modelo cultural baseado em uma ideologia: a ideologia da perfeição corporal, e isso não deixa de ser autoritário, beirando as vias do totalitarismo político. Ora, o tipo ariano, exortado por Hitler, na Alemanha nazista, não era apenas o ideal de indivíduo loiro, nórdico, da pele branca e sem manchas, mas também do tipo atlético, magro, esbelto e sem barriga, que representa uma suposta raça superior. Você já pensou se os nazi-fascistas tivessem ganhado a II Guerra Mundial, e além de homossexuais, deficientes físicos e mentais, negros, judeus e ciganos, eles também eliminassem, nas câmaras de gás, os gordinhos? Creio que metade da população dos Estados Unidos da América, alimentada a base do fast food, desaparecia do planeta, seria varrida do mapa, juntamente com seus copos de milk shake, seus pacotes de batatas fritas e seus sanduíches com bacon.
É importante salientar que minha crítica neste post não é um ataque recalcado aos magros, não faz apologia da gordura e nem estabelece um autoritarismo às avessas: ao pretender que todos fiquem gordos ou acima do peso, no lugar daqueles que estão magros, e ficam "se achando". Minha crítica acerca do preconceito estético é apenas um libelo, na tentativa de conscientizar aqueles que reconhecem seu preconceito, de que a beleza das pessoas não é só interior, é verdade, mas ela vai muito além das barrigas de tanquinho, e supera camadas e camadas de gordurinha que você possa ter na barriga, no quadril, ou abaixo do pescoço. Na verdade, olhar o outro de outra forma, além do seu peso, envolve entender que todos os padrões estéticos que adotamos, num determinado momento, são datados historicamente, e ser mais magro ou menos gordo não é o critério principal para você se relacionar com ninguém, seja para manter uma amizade ou para contrair um casamento. O que parece gordo para você, pode parecer belo para o outro, ou que é magro, para alguns, pode simbolizar muitas coisas, menos a beleza.
Em tempo: no tocante ao personagem Mauí, do filme da Disney, importante acrescentar um dado antropológico: entre os povos da Oceania, os tipos mais largos e arredondados pertenciam à nobreza, a classe dos guerreiros, pois os lutadores eram mais bem avantajados, pois precisam se alimentar mais, e, portanto, as crianças que forem assistir a animação podem, sim, ter um herói gordo, e Maui representa um desses tipos de heróis. Que meu filho, ao buscá-lo na escola, possa vislumbrar chegando um desses heróis, e não apenas um cara barrigudo, que tomou cervejas demais!!