domingo, 7 de maio de 2017

PERSONAGEM: Lembranças de Belchior

O cantor Belchior faleceu no último domingo, dia 30 de abril, em Santa Cruz do Sul, uma bela e pacata cidade do Rio Grande do Sul, de colonização alemã, onde trabalhei e conheci minha esposa. Foi sintomático que ele tenha morrido da forma como sempre se apresentou para seu público: sereno, plácido, como uma certa melancolia nas letras de suas músicas e clima de despedida, deitado em um sofá e coberto de edredons para se aquecer do frio sulista, quando seu coração de poeta parou enquanto dormia, durante uma noite de outono. Ele tinha 70 anos.

Antônio Carlos Belchior Fontenelle Fernandes (seu nome de batismo) nasceu em Sobral, no Ceará, em 26 de outubro de 1946. Se no rock dos anos sessenta, os Estados Unidos da América viveram a British Invasion, com artistas da Inglaterra que predominaram no período, como Beatles, Stones ou The Who, no Brasil dos anos setenta, a cena musical de metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo foi surpreendida pela "invasão nordestina", de músicos talentosos, criativos, oriundos da região nordeste do país e que se tornaram consagrados, como Zé Ramalho, Amelinha, Alceu Valença, e Ednardo. Belchior fazia parte dessa estirpe. Foi juntamente com Fagner, conterrâneo seu, que Belchior saiu do Ceará, largou um curso de medicina (antes teria tentado ser monge, num mosteiro católico), no final de 1969, e dirigiu-se num ônibus até a cidade grande, onde, poucos anos depois, conheceria a já consagrada cantora Elis Regina, que regravaria uma de suas canções mais famosas: "Como nossos pais", um hino para toda uma geração que, tardiamente no Brasil, conhecia o movimento hippie, e simbolizaria as utopias rebeldes da juventude.

Belchior é um típico músico dos anos setenta. Pode-se dizer que ele é da geração "desbunde", do típico verbo "desbundar", que hoje encontra-se historicamente em desuso. A palavra significava literalmente tirar a bunda da cadeira, rejeitar a inércia, o ócio e a letargia que nos obrigava simplesmente a "ser como os nossos pais", e convidava o jovem romântico a ser um aventureiro, a colocar a mochila nas costas e conhecer o mundo, como "um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior". 

ALUCINAÇÃO:um dos discos emblemáticos do cantor.
Foi nessa vida aventureira que Belchior conheceu as dificuldades iniciais do ostracismo na vida artística, conheceu o sucesso, após ter sido regravado por uma cantora famosa, ter ganhado espaço midiático e ter lançado ao menos três discos símbolos, apreciados pela crítica e por um público cult, cativo, ansioso por novidade, que logo encontrou no músico cearense seu novo bardo, que saía das praias nordestinas para conhecer a fria e cinzenta selva de pedra da metrópole. Foi no período em que morava no Rio de Janeiro, e depois São Paulo, que Belchior parecia estar mais inspirado, e tanto na brisa do mar carioca quanto na garoa paulista escreveu algumas das canções e versos mais emblemáticos de sua prolífica carreira. Assim, aquele garoto nordestino pobre de "Na hora do Almoço", de 1971, passou a se tornar o homem maduro, de descobertas da vida adulta e romântico, com " A camisa toda suja de batom", ou o homem contemplativo e filosófico, que aguardava "uma nova mudança que pode acontecer", onde "precisamos todos rejuvenescer".

Sobre a obra de Belchior uns dizem que ele era a versão do nosso Bob Dylan nordestino. Eu prefiro achar que o músico assemelhava-se mais a Lou Reed, por conta de sua crônica seca da vida social, dos amores, seja por uma mulher, seja por um lugar, causa ou cidade. Suas músicas transcenderam o tempo e se eternizaram, e até mesmo um bloco de carnaval em Belo Horizonte (o "Volta Belchior"), celebra anualmente suas músicas. De personalidade um tanto esquiva, sem ser doentia como João Gilberto, após um reluzente sucesso nos anos setenta e na primeira metade dos oitenta, a nova indústria musical que surgiu parecia não mais agradar o cantor cearense, fazendo aparições cada vez mais raras e lançando menos discos, compondo menos. Nesse período, em pouco tempo, sua imagem desapareceu das televisões e ele se limitou a viver de promover os seus shows pelo Brasil.

Nesse tempo, a lembrança que tenho mais positiva e pessoal de Belchior ocorreu em dois episódios, no começo dos anos 90 e no começo dos anos 2000. Em 1990 eu acabara de entrar na universidade, Belchior já era uma lenda, e lembro de ter ido ao Teatro Alberto Maranhão e ter  assistido ao "Projeto Seis e Meia", numa noite de terça-feira, onde músicos famosos apresentavam-se na cidade com ingressos a preços populares. Lembro que, como estudante recém entrado na universidade, pagando meia entrada, fui curioso assistir a um show de Belchior a convite de uma amiga de turma, e assisti ao vivo o cantor com seu indefectível bigode, ainda no auge da forma artística, cantando seus maiores sucessos na voz e violão. Dez anos depois, no ano 2000, eu estava em Brasília, numa conexão de voo para Natal, retornando de uma seleção de mestrado em São Paulo e lembro-me de ter encontrado no saguão do aeroporto, um sujeito magro, de cabelos negros e vasto bigode, bem vestido com uma camisa de manga larga e botões e um colete preto por cima, sentado numa das poltronas, enquanto lia um livro de capa dura. Só podia ser ele, era Belchior!! Perdi toda a vergonha de fã e me aproximei do cara, tomando o maior cuidado para não parecer abusivo. Quando ele levantou a cabeça e me olhou não pude deixar de dar um sorriso envergonhado e perguntar pro cara, meio constrangido, se ele era mesmo o Belchior. Como ele respondeu afirmativamente, começamos uma curta, mas animada conversa.

O autógrafo do artista no meu livro.
Havia falado a Belchior que dez anos antes eu havia assistido ao show dele no teatro, e ele não apenas lembrava do lugar, como também dos músicos e pessoas de Natal que ele conheceu no período. Disse que, assim como em outras regiões do Brasil, o Rio Grande do Norte tinha bons músicos, e ele ficou surpreso, quando eu lhe disse que além de formado em Direito, eu também tinha sido músico amador, e formado em 1995 uma banda de rock. Disse-lhe que também escrevia poesia, e que gostava de filosofia, ocasião em que ele afirmou que tinha percebido meu gosto por esse ramo de conhecimento, quando me viu carregando em uma das mãos um livro que tinha acabado de comprar sobre Direito e Linguagem. Ele me perguntou se eu gostava de literatura, e, ao responder que sim, aproveitei a deixa, e meu lado tiete falou mais alto que o acadêmico, e pedi a Belchior que autografasse o livro que eu havia comprado. Eu sabia que ele também tinha como hobby a caligrafia, e foi numa letra rebuscada que ele fez uma singela dedicatória, a um jovem que ele nunca tinha visto antes, mas que numa conversa de dez minutos já considerava uma companhia de viagem: "Para Fernando. Amigo sempre! Abraços do Belchior 2000". Desta forma, nos despedimos. Ele voltou para o seu livro e eu para o meu, enquanto caminhava em direção ao avião, emocionado, olhando aquela pequena dedicatória de um dos personagens históricos da música popular brasileira. Fiquei pensando na sua música: "Foi por medo de avião", e no seu gosto por Beatles, além da certeza de eu ter segurado, num aperto, a mão amistosa de Belchior.

Charge de Lucas Loureiro
Percebi que estava diante de um cara humilde, avesso a fama e badalações, que, por educação, tolerância ou uma calma extrema, não se incomodou com um fã chato que lhe pediu uma dedicatória num livro. Na verdade, no pouco tempo em que estive no saguão do aeroporto junto com ele, não vi ninguém reconhecê-lo, ou se reconheciam, ninguém se importava em cumprimentar o ilustre artista. Situação bem diferente quando, cinco anos depois do encontro no aeroporto, junto com a mulher ele desapareceu, sem deixar rastros, numa saída de cena polêmica, onde deixou um carro abandonado num estacionamento, além de familiares, empregados e credores, gerando uma repercussão midiática tão ou mais divulgada do que sua obra. Descobriu-se anos depois que o músico tinha ido viver no Uruguai, totalmente falido, com as contas bloqueadas por conta de decisões judiciais em processos movidos por pensão alimentícia ou dívidas trabalhistas. Sem poder recolher os direitos autorais de seus discos, Belchior vivia de favor na casa de amigos, que sempre admiraram a sua arte, perambulando como um nômade de cidade em cidade, caminhando sua "légua tirana". No fim das contas, aquele Belchior que eu vi no aeroporto já tinha retornado a ser aquele mesmo nordestino pobre de outrora, um viajante, sem dinheiro no banco, e, que, nas "paralelas" da estrada da vida escolheu seu próprio destino, sem demonstrar mágoa ou arrependimento.

Eis que Belchior transformou seu exílio na sua última grande obra. Do noticiário até programas humorísticos, parecia que o sumiço do músico ficara tão lendário quanto seu mais famoso disco: "Alucinação". Milhares de pessoas, habitantes da simpática e pacata cidade de Santa Cruz do Sul, ficaram surpresos, ao saber da morte do cantor no noticiário, pois não tinham a menor ideia de que vivia recluso e oculto na cidade um morador tão ilustre. Quando foi anunciada sua morte, o governador do Ceará apressou-se em providenciar que o corpo fosse transportado para seu estado, velado em Sobral, a terra natal do cantor, e fosse, enfim, enterrado em Fortaleza, com ares de funeral de um chefe de Estado. Quem dera todo esse reconhecimento oficial fosse feito ainda em vida, as homenagens fossem suficientes para pagar as contas e os credores, e num Brasil atordoado por uma crise política galopante, Belchior ainda pudesse estar aqui conosco, compondo e cantando canções de protesto, que, com certeza, como ele cantava em "Fotografia 3 X 4", poderiam servir de alento para aquele "que ficou desnorteado, como era comum em seu tempo, que ficou apaixonado e violento, como todos vocês".

Sepultamento do cantor.Justa homenagem no Ceará.
Vendo pela televisão o corpo de Belchior num caixão, em sua última despedida, com seu longo bigode pintado de preto ainda se destacando, não pude deixar de observar que, mesmo morto, ele continuava a me inspirar um ar filosófico. Das lições que aprendi, ouvindo as músicas de Belchior foi que, como cristão e socialista, mesmo que a realidade lute contra, constatei que, apesar de tudo, "AMAR E MUDAR AS COISAS ME INTERESSAM MAIS!". Meus aplausos para Belchior!! Na estante o livro ainda está ali, bem perto, lembrando-me do quanto o músico falecido ainda continua próximo.

Gates e Jobs

Gates e Jobs
Os dois top guns da informática num papo para o cafézinho

GAZA

GAZA
Até quando teremos que ver isso?