Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma da
extrema-direita. Em milhares de espaços, seja nos protestos de rua ou nas redes
sociais, nos comentários dos meios de comunicação ou nos escaninhos de juízes,
procuradores e tribunais, um manto de extremismo político golpista e ignorância
parece tomar conta das instituições nacionais, num momento de aguda crise da
República.
A crise não foi fomentada agora. Ela começou bem
antes, como uma crise de mercado lá nos tempos do governo Bush, que na fase
áurea do primeiro mandato de Lula, não passava de uma "
marolinha". Chegou no governo de Dilma Rousseff, suas dificuldades de
lidar com o Parlamento, rodeada de aliados conspiradores, a começar pelo seu
vice-presidente, Michel Temer, que não demorou para apeá-la do poder, logo após
Dilma ter obtido a reeleição, mediante um controvertido processo de
impeachment. É! Faz um ano que a esquerda brasileira, petista ou não, gritava a
plenos pulmões:"é golpe!"; e não adiantou uma multidão de
sindicalistas, militantes estudantis ou dos movimentos sociais, intelectuais e
funcionários públicos com salários atrasados invadirem às ruas, vestidos de
vermelho, ameaçando uma greve geral que nunca ocorreu de verdade, e que apesar
dos carros de som e bandeiras, interrompeu o trânsito das grandes cidades em
dia de semana, sem conseguir resultados efetivos. Tais protestos acabaram se
tornando rarefeitos até desaparecer por completo, permanecendo a multidão muda
diante de um asqueroso presidente que, para se livrar de processos, corrompe com
maior cara de pau deputados venais, sem compromisso ideológico algum, a não ser
com seus próprios interesses, fazendo uma sessão da Câmara dos Deputados
parecer um filme de horror. Onde estão nossos manifestantes? Cadê a greve
geral? Onde estão aqueles dias que abalaram o mundo? A revolução, para onde
foi? Os derradeiros protestos dos movimentos sociais em Brasília pareciam mais
uma manifestação de nostalgia aos saudosos anos oitenta pós-ditadura, do que um
processo de ruptura revolucionária que levaria à queda de um governo golpista.
Os tempos são outros.
A crise prosseguiu e se alimentou do descrédito,
da perda de identidade dos partidos e legendas políticas. Afundado no
pragmatismo político até o pescoço e incapaz de realizar profundas mudanças
sociais e institucionais que acenassem com uma ruptura, Lula e o petismo no
governo preferiram aliar-se aos mais poderosos, a reforçar velhas e espúrias
táticas de poder pautadas no fisiologismo, no patrimonialismo e na corrupção.
De um dia para outro, através das autoritárias e polêmicas medidas judiciais
adotadas pelo arrogante juiz federal Sérgio Moro, nos rumos da chamada Operação
Lavajato, políticos e empresários até então intocáveis conheceram o xilindró e
a execração política. Tido inicialmente como um movimento que tendia a só
criminalizar o PT, num lapso de parcialidade, o maremoto judicial que redefiniu
a política brasileira acabou atingindo todos os partidos, quando próceres do
PSDB, principal adversário dos petistas e partido nêmesis do petismo (porque
não dizer seu irmão siamês), também foi atingido por denúncias e processos,
senão por iniciativa de procuradores de Curitiba, ao menos por meio de decisões
no Supremo Tribunal Federal. Enfim, Aécio Neves, outrora galante
adversário de Dilma na campanha presidencial e até então queridinho de 10 entre
10 celebridades artísticas antenadas com a classe média conservadora e
arrivista, também conheceu a desgraça; da pior forma e pior do que Dilma; pois,
assim como a ex-presidente, o senador de Minas Gerais foi flagrado em áudios
comprometedores, divulgados em rede nacional, proferindo frases impublicáveis,
e praticamente reconhecendo a prática de crimes, que hoje seus advogados
insistem em dizer aos mais incautos que não existiram. E o badalado
"coxismo" dos batedores de panela da era Dilma, onde ficou?
Ao brincar com o título deste artigo, fiz uma
brincadeira com o título do livro do renomado pensador de esquerda francês,
Alan Badiou. Em seu livro, "A Hipótese Comunista", Badiou reflete
que, não obstante o fim da União Soviética (com uma Revolução Russa que
completa 100 anos este mês), a queda do Muro de Berlim em 1989 e o
fortalecimento do neoliberalismo, com o atual processo de globalização que se
consolidou neste século, é cedo dizer o capitalismo triunfou de vez, seria o
fim da história e deveríamos sepultar todas nossas utopias de esquerda, por ter
sido tudo mera enganação autoritária. O próprio termo "comunista"
ganharia no século XXI conotações bem diversas daquela da época da Comuna de
Paris, no século XIX, ou da Revolução bolchevique de 1917. Comunista seria,
antes de tudo, mais um atributo do que um substantivo ou uma qualificação
política. Um atributo ou adjetivo moral, intelectual e estético, para alguém
que acredita efetivamente num projeto de transformação comum de toda a
humanidade.
Mas no que reside o "coxismo", que
também pode ser definido como um atributo político e não apenas um pitoresco
apelido dado pelos militantes de esquerda brasileiros aos seus algozes de
direita, adversários preferenciais no jogo de palavras tão típico de nosso
jocoso idioma português?
A própria palavra "coxinha" merece
algumas considerações etimológicas, levando-se em conta que o termo atribuído a
Reginas Duartes, Lucianos Hucks e Alexandres Frotas da vida, não se refere
apenas ao saboroso acepipe de padaria que se constitui no terror da dieta de
muitos. Estabelece a crônica política que o termo tem origem em São Paulo e se
encontrava associado historicamente à violência policial, especialmente da
Polícia Militar paulista, orientada durante anos por governos tucanos do PSDB.
Mas como é isso?
É simples e ao mesmo tempo curiosa a origem do
nome. É sabido que até por seu enorme contingente, a Polícia de São Paulo é uma
das mais mal pagas do país. Numa metrópole violenta e com um altíssimo custo de
vida, era comum muitos policiais fardados, trabalharem além do expediente com
suas viaturas, prestando assistência a comerciantes, donos de bares,
lanchonetes e cantinas, de bairros tradicionais como Pompeia e Vila Madalena,
afugentando durante a noite mendigos, pedintes ou quaisquer indivíduos
considerados suspeitos de se aproximar desses locais, valendo-se da
truculência, seja por meio de ameaças ou por meio de agressões físicas mesmo,
algumas até resultando em morte. Como meio de pagamento, por terem
"desaparecido" com os indesejáveis que afastavam a freguesia, muitos
desses policiais recebiam dos seus contratantes um prato de coxinhas, como
forma de agrado, pelos "bons serviços prestados".
Nas primeiras manifestações populares de junho de
2013, quando começaram a irromper no país uma série de protestos de rua,
reunindo milhares de pessoas, estimuladas pelas redes sociais, em São Paulo e
no Rio de Janeiro surgiram rapidamente notícias de abusos de autoridade e atos
de violência policial, revelando num primeiro momento uma corporação ainda
despreparada para grandes tumultos em vias públicas, resultando em atos de
destruição, reações de vandalismo de manifestantes e atos de agressão até em
jornalistas. Foi nesse contexto que aquelas pessoas, mais reacionárias, que
apoiavam a ação da polícia, elogiando as agressões na internet, por
considera-las atos de manutenção da ordem, para combater a ação de
"esquerdistas", passaram a ser rotuladas pelos agredidos de
"coxinhas". A palavra "coxinha deixou, então, de ser empregada
para uma única categoria social (os policiais militares do governo Alckmin) e
passou a ser atribuída a todas as pessoas compreendidas dentro de certo
espectro político e ideológico
Importante salientar que as "marchas de junho",
como foram definidas as manifestações populares de 2013, não eram integradas
apenas por militantes de esquerda, e, ao contrário, na sua primeira versão
representavam uma massa informe composta de gente de todas as matizes e
preferências ideológicas. Foi justamente no cerne da crise que se sucedeu e
recrudesceu no governo de Dilma Rousseff, a partir da descoberta de casos de
corrupção na Petrobras e com o surgimento da Lavajato, que as manifestações de
rua geraram um dos representantes máximos da estética coxinha e da Nova Direita
brasileira: o MBL.
O Movimento Brasil Livre, representado
nacionalmente por um de seus líderes, o estudante paulistano Kim Kataguiri, é
uma espécie de lado negro ou cara-metade invertida da União Nacional de
Estudantes. Formado em sua maioria por jovens de classe média identificados com
o neoliberalismo, o grupo não tem consistência ou firmeza programática, vale-se
muito mais de jargões caros aos oposicionistas do petismo, e sua falta de
consistência ou profundidade teórica é substituída pelo seu alto poder de
articulação e polarização em momentos cruciais da política e da cultura
nacional, como forma de mobilizar a opinião pública, especialmente a de linha
conservadora e de direita. Um exemplo disso foi a recente polêmica envolvendo
discussões sobre gênero e homoafetividade, que resultou na retirada da
exposição "Queermuseu" no Santander Cultural em Porto Alegre e a
mobilização contra uma exposição no Museu de Arte de São Paulo, onde um artista
nu reproduzia uma tela retratando bichos, e teve uma foto sua reproduzida
nas redes sociais, ao ser tocado nos pés por uma criança, o que gerou acusações
moralistas de incentivo à pedofilia. O MBL vale-se da agenda política voltada
desde o pensamento neoliberal até o agronegócio, passando pelo fundamentalismo
religioso, a fim de abrir espaço para sua pauta oportunista de Estado mínimo. O
que confere maior identidade aos seus raivosos militantes, que espalham
impropérios contra seus adversários nas redes sociais, é seu arraigado antipetismo
e antiesquerdismo, características básicas de tudo o que se define por
"coxinha".
Em síntese, ser "coxinha" implica,
portanto, num compromisso de classe com as elites políticas e econômicas
dominantes, num arrivismo social típico de integrantes da classe média que tem
a ambição da ascensão de se tornarem ricos e poderosos. Sobretudo nas passeatas
setorizadas que apoiavam o impeachment de Dilma Roussef e a prisão do líder
maior do Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, os militantes que se apresentavam como patriotas nas passeatas, vestindo
camisas verde e amarelas como se estivessem num jogo da Copa do Mundo, em
vários domingos nos centros urbanos (diferentemente de seus adversários
"vermelhos", que protestavam em dias de semana), passaram a
simbolizar o típico comportamento, linguagem e formas de ser de um
"coxinha". O coxismo dos integrantes de coletivos como o MBL e
o "Revoltados on line" ficou marcado por frases de efeito
pseudomoralistas de combate à corrupção, ao mesmo tempo em que seus líderes
tinham suas manifestações financiadas por políticos e partidos que assumiram o
poder com a derrocada de Madame Roussef, e que acabaram também sendo
processados e condenados por corrupção. A prisão de Eduardo Cunha, ex-presidente
da Câmara que iniciou o processo de impeachment da ex-presidente e a atual
situação jurídica de Michel Temer, o presidente golpista mais impopular da
história republicana recente (com somente 3% de aprovação), além de ser o
primeiro mandatário em exercício na Presidência a ser denunciado criminalmente,
ambos do PMDB, revelam o quanto jovens militantes da Nova Direita mostraram-se
incoerentes na sua cruzada moralizadora, uma vez que todos esses citados
senhores, ao menos uma vez foram apoiados pelo MBL.
A novidade atual, para os remanescentes dos
festejos coxinhas após a dramática queda de Dilma, é o surgimento de candidatos
que outrora eram uma anedota política e agora ganharam contornos de seriedade,
como o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro, truculento defensor da
ditadura e de torturadores, que ocupa atualmente o segundo lugar nas intenções
de voto na candidatura à presidência. Cita-se também dentro do esquema
ideológico preferencial dos coxinhas para o ano que vem, a possível candidatura
do atual prefeito de São Paulo, João Dória, um playboy, novato na política e
ex-apresentador de televisão, que ao largar seu mentor, o governador e também
candidato ao palácio presidencial, Geraldo Alckmin, revelou todo o seu
oportunismo ao abandonar a gestão da metrópole que o elegeu, visitando o país
em ostensiva campanha eleitoral, distribuindo biscoitos oriundos de alimentos
vencidos para os mais pobres, além de ordenar uma confusa, abusiva e
inexpressiva expulsão de usuários de droga na "Cracolândia" paulistana,
além de tentar imitar o presidente norte-americano Donald Trump, no uso
histriônico das redes sociais, publicando vídeos insultando seus desafetos.
O coxismo é, entretanto, um subproduto da
esquerda brasileira, e não um produto genuíno de uma direita organizada
no Brasil. Na verdade, no período recente da história da república, quando Lula
chegou ao poder, superando os tucanos após três eleições mal sucedidas, o que
se viu foi uma reorganização ou arregimentação de setores reacionários que
sempre estiveram presentes na sociedade brasileira, mas permaneceram
adormecidos nos anos politicamente corretos de uma unidade nacional, forjada em
tempos fortuitos de prosperidade e avanços sociais, com crédito no bolso,
geração de empregos e filhos de trabalhadores pobres chegando nas
universidades, criando um clima de otimismo externado na propaganda ufanista
dos tempos áureos da presidência lulista, onde se lia o jargão governamental,
de que "sou brasileiro e não desisto nunca".
Entretanto, como um efeito colateral da ressaca
econômica que se sucedeu com a sucessão de Lula por Dilma, o advento galopante
do desemprego, a desaceleração da economia com o retorno do susto inflacionário
e uma persistente recessão, que quebrou estados com governantes endividados e
enrolados em práticas de corrupção, o que se viu no Brasil, principalmente com
os protestos de 2013, foi a formação rápida e contínua de um contingente
despolitizado, mas oportunista, que se valendo de jargões reacionários da velha
direita, pré-golpe de 1964, começaram a pregar uma volta ao passado, como se o
tempo da ditadura ou de governos alinhados com o neoliberalismo fossem melhores
do que os vividos sob a égide de governos da esquerda.
O que une, portanto, os coxinhas neoliberais com
os conservadores é menos um projeto teórico fundado num ideal político
específico de sociedade, mas muito mais um esboço de sociedade onde o Estado
somente atuaria na sua faceta policial, suprimindo liberdades (ao menos dos
mais pobres), sob o pretexto de um combate implacável à corrupção e a
criminalidade. Nos demais aspectos, o "milagre econômico" resultaria
num novo laissez faire, onde os ricos teriam preservado o direito de
ficar mais ricos, e os pobres somente seriam pobres porque não tiveram
competência para se tornarem ricos. Jogadores de futebol que disputaram e
venceram Copas do Mundo, como o hoje senador Romário e Ronaldo
"Fenômeno", assim como o craque da seleção brasileira e aspirante a
melhor do mundo, Neymar (todos eleitores de Aécio Neves), seriam as
celebridades máximas de representatividade do ideal de prosperidade coxinha.
Finalizando essa análise da Nova Direita
apelidada de coxinha, segundo a filósofa do século XX, Hannah Arendt, o totalitarismo
vale-se de uma propaganda que seduz, sobretudo, a ralé. Por ralé não se entenda
uma categoria social específica, determinada pela sua condição econômica, mas
sim todo um segmento de pessoas alinhadas às camadas médias da sociedade,
dentre os formadores de opinião, que presos ao senso comum e às soluções fáceis
das crises políticas, acabam por chancelar o discurso e candidaturas fascistas,
que não tem o menor pudor de rasgar diplomas legais que assegurem direitos
democráticos e a supressão de liberdades, em prol de um discurso de segurança e
prosperidade. Foi assim que alemães e italianos seguiram, respectivamente, o
nazifascismo na Europa do século passado, causando uma II Guerra Mundial, e
parece ser assim o caminho da direita brasileira, ao propor desde o fechamento
de museus por conta de seu fundamentalismo religioso ou moral burguesa,
supostamente judaico-cristã, passando pela alusão à candidaturas de personagens
com o perfil de Bolsonaro, até mesmo a proteção de generais saudosos de tanques
e baionetas fechando parlamentos, que pregam abertamente o desrespeito à
Constituição, sem sofrer punição alguma, durante reuniões gravadas de maçons.
Tudo isso pode-se revelar o destino final do coxismo.
A esquerda brasileira é confusa, contraditória,
até mesmo ingênua em alguns momentos e autora de crassos erros históricos; mas
sempre se preocupou em discutir teoricamente seus ajustes de curso. A direita no Brasil,
entretanto, ao menos no período republicano, sempre foi anti-intelectual, pragmática e oportunista ao extremo,
sem um referencial que lhe desse profundidade, nem que fosse por meio de um
ideário religioso, católico, conservador e tradicionalista. Na verdade, os
opositores da esquerda em sua maioria (com honrosas exceções) preferiram um
processo midiático de colagem para desacreditar seus rivais ideológicos na esquerda política, onde as falhas e
erros graves de muitos de seus líderes (inclusive por práticas de atos de
corrupção), foram superdimensionadas pela militância de direita, a fim de pregar neles o rótulo de
"pais da corrupção", ou autores de "tudo de ruim que acontece na
vida nacional". Diferente da Europa com sua Democracia Cristã ou nos
Estados Unidos, por meio do Partido Democrata, a direita brasileira, assim como
todas as suas congêneres latino-americanas, sempre foi mais oligárquica,
agrária, fisiológica e reativa, do que uma direita técnica, propositiva,
liberalista e gerencial. Esse ainda é o grande problema do debate político no
Brasil e um obstáculo enorme a sua incipiente democracia. Ao invés do saudável
debate entre opostos, ainda veremos durante um bom tempo verdadeiras brigas
verbais (quando não físicas) entre integrantes de uma esquerda despreparada e
membros de uma direita burra e valentona. Talvez esse seja o grande legado da
militância coxinha.