Começo essas linhas com uma sensação de incômodo emocional. Creio que para uma pessoa medianamente sã, não passa batido tanta preocupação, assombro, pânico e, finalmente, tristeza, diante de uma pandemia que estremeceu o planeta, após vinte anos de um ainda jovem século XXI. Do dia pra noite, uma simples sigla médica, o COVID-19, tornou-se familiar ao mundo inteiro, com consequências terríveis.
Vivo um roteiro de um daqueles filmes apocalípticos de terror e ficção científica. A diferença é que, desta vez, faltam apenas os zumbis; mas está tudo ali, numa sequência de fatos que comprovam uma humanidade devastada por uma catástrofe global: isolamento social; estabelecimentos como escolas, bancos, restaurantes, bares, cinemas, academias e igrejas completamente fechados; ruas e praças desertas; gente assustada dentro de carros com lenços ou máscaras hospitalares nos rostos; desemprego e incertezas quanto ao recebimento futuro de salários; aeroportos e fronteiras obstruídos; noticiário na tv e na internet somente tratando do mesmo assunto calamitoso; redes de solidariedade entre pessoas na vizinhança, cantando nas janelas de prédios, rezando ou protestando contra um governo; ausência do Estado, ou quando muito sua presença mal e porcamente, revelando a dificuldade de governantes e gestores públicos em lidar com um mal invisível, desconhecido. Ufa!! Será que o coronavírus veio mesmo para destruir a civilização, ou ao menos o que entendíamos dela, para, depois, erguer-se outra? Será que foi uma enfermidade originada inicialmente na China, a responsável por extinguir de vez a globalização? Ou será que servirá para fortalecê-la?
Vivo, pela primeira vez, uma realidade que eu então só concebia nos filmes, e que deve ser inédita também para meus pais e para as novas gerações que nunca tinham sofrido os efeitos tão intensos de uma pandemia. Como um observador de primeira ordem, infelizmente, sou de uma categoria de indivíduos que está diretamente exposta ao contágio: a dos profissionais da segurança e da saúde pública. Como trabalho em escala de plantão, num serviço essencial de atendimento ao público, não tenho como trabalhar ou permanecer em isolamento, como milhares de pessoas, que voluntariamente se trancaram em casa, ou porque foram pra lá porque seus empregos fecharam. Isso significa que não tenho a menor possibilidade de ter contato físico com meus pais já idosos e fragilizados da saúde. É doloroso! Mas já imagino ter que passar meses sem vê-los pessoalmente, e perder datas importantes, como aniversários, páscoa, dias das mães e dos pais, cujos festejos terão de ser adiados. É da vida! Diante de uma doença com tão elevada carga de contágio e um óbito gigantesco entre os mais velhos e mais frágeis, não me resta outra opção, por questões de sobrevivência. Não se trata apenas de um ato de isolamento, mas também de um ato de amor. Já imaginou o sentimento de culpa, por ter sido você o responsável por contaminar seus pais ou filhos? Sem dúvida, é um desgaste emocional de proporções tão agudas quanto os efeitos maléficos de uma febre, tosse seca ou falta de ar, comuns nos sintomas do coronavírus.
Por falar em amor, imagino que, se podemos pensar o lado otimista de toda catástrofe, podemos perceber o que há de melhor dentro do que há de pior. De ver beleza mesmo na ruína. É ver o quanto as pessoas podem parecer egoístas de um lado: recusar um abraço, um beijo, um aperto de mão em quem merece ou necessita, por medo do contágio; como também podem ser altamente solidárias do outro: enviar livros digitais ou canções pela web, cantar juntos ou fazer orações simultâneas, cada um na janela ou sacada de seu apartamento, ou mesmo simplesmente compartilhar sentimentos nas redes sociais por meio de mensagens de whatsapp, facebook e twitter, ou fazer como eu eu faço, escrevendo neste blog esta pequena crônica da pandemia. Todo o exercício mental é possível e devido, como forma de passar o tempo, diante da falta de opções no dia em que a Terra parou (parodiando a célebre canção de Raul Seixas).
O que me passa pela cabeça nesses dias difíceis e permeia os sentimentos é a indagação de como suportar. Não se trata de suportar o isolamento, suportar a ansiedade ou medo pelo risco de ficar doente, suportar a possibilidade de que senão você, mas seus entes queridos possam ficar enfermos, suportar as consequências econômicas nefastas de um período tão longo de suspensão das atividades do comércio, indústria e setor de serviços. Trata-se de suportar a incompetência, negligência ou mesmo cumplicidade com a pandemia de gestores, daqueles que são legalmente responsáveis pelo nosso bem-estar, e foram eleitos ou são pagos pelo erário público para resolver o problema, custe o que custar.
Todos aqueles que me conhecem sabem de minhas posições políticas e opções ideológicas. Mesmo aqueles que não conhecem, percebem facilmente ou ao menos desconfiam ao ler meus textos, ou ver minhas manifestações ao vivo nas redes sociais ou em um programa de rádio que participo. Não escondo, portanto, de ninguém, que não gosto de quem nos governa nacionalmente, assim como não gosto de seus familiares e apoiadores, numa oligarquia política acompanhada de um séquito extremista. Faz parte da democracia! Assim como eu podia perceber o asco que alguns integrantes conservadores da classe média tinham de Lula e seu partido, nos tempos áureos da governança petista, eu agora posso perceber o quase irracional e furibundo sentimento de repulsa que muitos liberais e progressistas como eu, tem, da figura do senhor Jair Bolsonaro.
A diferença é que o ódio que há décadas muita gente nutria por Lula traduzia-se num ódio de classe, e a esquerda brasileira contribuiu, é verdade, para intensificar esse ódio, por meio do discurso do nós X a elite. O bolsonarismo, por sua vez, tira a classe social da dicotomia e no seu lugar coloca a pátria, num velho ufanismo e enrugada xenofobia militarista, saudosa da ditadura. Os verdadeiros patriotas, que apoiam o presidente e sua agenda são, portanto, os que vestem o verde-amarelo, como se todo dia de protesto político fosse dia de jogo da seleção brasileira, e com o uniforme canarinho deu-se o direito (na democracia que tanto defendo), a que babacas ou ignorantes assumidos ocupem as ruas, a praça pública, mesmo em plena evolução da pandemia, para defender absurdos, como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal ou a volta do AI-5. Quer pandemia pior que um vírus mental?
A diferença do ódio bolsonarista do ódio petista é que, por não se tratar de um ódio a uma classe social específica, o ódio do extremismo de direita brasileiro é direcionado ao outro, a todo aquele que é diferente. É um ódio para todo aquele que não professe o credo conservador, reacionário, ufanista, fanático religioso ou olavista do bolsonarismo; ou seja, ódio contra jornalistas, feministas, negros, indígenas, ambientalistas, homossexuais, sindicalistas, artistas, professores e estudantes universitários, além de militantes de esquerda e de causa progressistas.
Imagine, portanto, um ódio desses a obliterar a mente de um presidente da república, aquele que é responsável pelos destinos de uma nação, diante de um vírus avassalador, que contamina milhares, matando centenas, num piscar de olhos? Na Itália, novo epicentro global da doença, a ausência de cuidados de contenção nos primeiros dias de contaminação custou caro ao povo italiano, registrando-se mais casos, em termos absolutos, do que a China, onde se iniciou a pandemia. Imagine então uma doença se alastrando em seus primeiros dias num país com um presidente populista, mal avaliado, que parece estar sempre em campanha a governar somente para seu eleitorado, cometendo o gesto irresponsável de cumprimentar uma multidão de apoiadores, enquanto seu ministro da saúde já pregava uma semana antes que contatos físicos deviam ser evitados. Imagine, depois do coronavírus já definitivamente espalhado no Brasil, o filho deputado desse mesmo presidente se valer das redes sociais para insultar a China (isso mesmo! A China!), criando uma crise diplomática sem necessidade, como para desviar o foco da atenção do problema do governo em lidar com a pandemia, tão e simplesmente para criar assunto nas redes e demonstrar o quanto a linha política do governo é subalterna aos Estados Unidos, e ao seu presidente topetudo tão populista quanto. Imagine, ainda, um presidente comprar briga com os governadores, já que o país se trata de uma federação de estados, cada um com sua autonomia administrativa, depois que os chefes do executivo local decidiram tomar medidas para contenção do vírus, já que o presidente titubeante não as tomou. Imagine como suportar isso!!
Difícil de suportar os Bolsonaro e a ideologia política populista que os acompanha. Difícil suportar nesse governo seu ministério, uma verdadeira legião do mal de tipos caricatos, medíocres, mesquinhos, hipócritas ou culturalmente toscos, como os ministros da fazenda, justiça, educação, direitos humanos, meio ambiente e relações exteriores, só pra citar como exemplos iniciais, poupando, por enquanto, uma controvertida e famosa atriz transformada em secretária de cultura. Difícil suportar os males causados por um coronavírus diante de um governo que não elegi, não confio, não dou credibilidade, e, o pior, temo que possa contribuir para que a doença se alastre ainda mais. O exercício de viver no Brasil, desde a eleição de 2018, já era, antes da chegada do coronavírus, um ato de suportabilidade que prescindia de máscaras, luvas, muito álcool gel e equipamento de proteção. Com a chegada do Covid-19 parece que o quadro apocalíptico que já vivíamos (e que alguns incautos não percebiam), apenas se agigantou. O que esperar do futuro, se o coronavírus pode ir embora dos nossos organismos, mas o estrago institucional trazido pelo bolsonarismo e sua mediocridade política pode comprometer muito mais os alicerces da economia, da cultura, das relações sociais e das regras de civilidade entre os brasileiros que sobreviverão à pandemia?
Não tenho respostas prontas e acabadas. Não tenho sequer respostas, pois persiste a minha indagação: como suportar? É claro que na minha crença cristã, que muito me dá a esperança, se Deus nos trouxe a pandemia, como uma espécie de castigo divino, talvez Bolsonaro e seus asseclas sejam o nosso castigo político. Se não aprendemos a lavar as mãos corretamente durante anos, e fomos obrigados a aprender tardiamente um hábito tão basilar de higiene pessoal, para evitar doenças, talvez aprender a votar seja o próximo estágio de nossa evolução, após o cataclismo que nos atingiu. Enquanto isso, sigo vivendo (ou sobrevivendo), sigo suportando. Senão por mim, pelo futuro do meu filho. Senão pela minha saúde (física e mental), ao menos pela minha dignidade. Por isso escrevo, por isso desabafo. E se essas linhas que acabaram extensas puderam ao menos te distrair no teu isolamento, enquanto o vírus ainda persiste, pelo menos fiz meu papel. Tenhamos todos a força suficiente para suportar!! Nos vemos no final da pandemia! Assim espero!