Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
sexta-feira, 7 de junho de 2024
COMO ME DOÍ VER O SUL ASSIM
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
SOBRE DESFILES E CARAPUÇAS
Na sua obra sobre linguagem e estética, "As palavras e as coisas", o pensador francês Michel Foucault indicava que até o final do século XVI, a arte e o saber eram baseados, sobretudo, na semelhança. Como num espelho, tudo que era visto e dito deveria representar indubitavelmente a realidade. Os símbolos, quase esquecidos, seguiam uma relação de conveniência; ou seja, buscava-se, no conhecimento sobre as coisas, uma identificação com aquilo que fosse conveniente aos seus valores e suas paixões. Hoje em dia, em termos de "dissonância cognitiva"(termo utilizado pela primeira vez, na psicologia, em 1954, pelo norte-americano Leon Fastinger), em ambientes socialmente polarizados, a arte, como por exemplo, as fantasias e adereços de um desfile de Carnaval, podem geram interpretações distintas, que, muitas vezes, se não destoam da realidade, criam novas realidades, ao sabor da narrativa populista e popularesca daqueles que, como diz o dito popular, querem ver "pelo em ovo"!
Não podia ser diferente acerca da, no mínimo excêntrica (porque não dizer maldosamente oportunista) manifestação do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo-SINDPESP, por meio de uma nota de repúdio à apresentação da Escola de Samba Vai-Vai, no Carnaval deste ano. O motivo da revolta foi a passagem de um carro alegórico durante o desfile da escola no Anhembi, que apresentava a figura de um policial militar fardado e de chifres, enquanto era tocado samba-enredo "Sobrevivendo ao Inferno", baseado numa canção do grupo de hip-hop paulistano, Racionais MC.
Seria de causa espanto, se já não fosse recorrente personalidades nas redes sociais ou entidades de classe quererem tomar as dores dos operadores da segurança pública, alegando o SINDPESP, no caso da Vai-Vai, que o samba-enredo agredia os profissionais das polícias, produzindo um verdadeiro escárnio com esses agentes da lei. Não demorou para que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, apoiador do ex-presidente Bolsonaro, saísse em defesa da nota do sindicato, defendendo, também, o que era pedido na nota: uma retratação pública da Escola de Samba paulista.
Ora, não obstante uma entidade representativa de delegados ter tomado o lugar de associações de praças e oficiais da Polícia Militar, retratados expressivamente no desfile carnavalesco, há no meio policial brasileiro centenas de profissionais que não se sentiram ofendidos com o desfile da Vai-Vai, dentre eles eu, que também componho (com orgulho) os efetivos policiais. Por um simples motivo: uma polícia que persegue, espanca, tortura e mata pretos e pobres da periferia não me representa!
Assim, no retorno ao significado das palavras em relação às coisas, ao mesmo tempo que os ilustres representantes da entidade de classe citada compreenderam como um ataque a polícia brasileira a utilização da figura de um capacete policial com chifres, outros podem compreender a imagem do carro alegórico como simbolização do genocídio negro, historicamente retratado em letra e prosa na literatura (e nos relatórios de violência policial no Brasil). Acerca disso, nas redes sociais, diversos policiais, integrantes do Movimento Policiais Antifascismo, entenderam como mais uma perseguição ao povo negro e pobre a nota do SINDPESP exigindo retratação da Vai-Vai, atacando a falsa vitimização do suposto escárnio à figura do policial, como pretexto para disseminar mais preconceito e desinformação quanto ao genocídio do povo negro. Agindo desta forma, estes policiais militantes agiram na contramão de parlamentares, egressos do meio policial, que comumente aderem ao discurso do tiro, arma e bomba, como uma forma de fortalecer o discurso polarizado da extrema-direita, tão bem representada pelo bolsonarismo.
Faz parte do discurso autoritário e da narrativa protofascista o culto à autoridade a qualquer custo. Desta forma, mesmo num desfile carnavalesco, onde deve prevalecer a liberdade de expressão e pensamento, pois se trata de um evento que lida com a arte e a linguagem, por meio da música, dança e imagens simbólicas das fantasias e alegorias, para os defensores dos discursos de lei e ordem, qualquer crítica à autoridade do poder do Estado, mesmo que legítima, por se referir aos excessos e abusos históricos de agentes armados contra a população periférica, é visto com um escárnio, um injusto ataque contra abnegados servidores e servidoras que expõem a risco suas vidas todos os dias, no combate à criminalidade. Ora, não confundamos as coisas. Em tempos de ignorância, pós-verdade e fake news, com um emburrecimento progressivo do senso comum, não nos deixemos levar pela confusão de narrativas.
A violência do crime afeta tanto as Polícias quanto à sociedade, principalmente a população periférica. Sobretudo por meio do crime organizado e a violência armada das facções e milícias, anualmente milhares de homens e mulheres, em sua imensa maiores, jovens, negros e pardos, são feridos ou mortos, seja na condição de vítimas da ação de criminosos, seja na condição de policiais em serviço, atingidos por essa mesma violência. Em momento algum, a defesa da vida e a integridade física de policiais confronta-se com a crítica a violência arbitrária do Estado, na ação de agentes que abusam de sua autoridade e praticam todo tipo de agressões e torturas, sob o pretexto de combater o crime. Desta forma, não se ver representado com chifres numa escola de samba significa que, em momento algum, concebo o bom policial como referido na crítica a violência do Estado por meio da arte, mas sim, somente o mau policial. Por que eu defenderia, portanto, maus policiais?
A relação entre coisas e as palavras que a definem encontra, agora, um novo léxico, numa expressão em português que, de expressão a simbolizar um tecido, passou a representar uma gíria que muito se adequa a aqueles que preferem se valer do discurso dissonante, de que a realidade é somente aquilo que eles querem ver, e não aquilo que realmente é. Assim, carapuça deixa de ser apenas um gorro, para simbolizar algo que é enfiado na cabeça de alguns integrantes do meio policial brasileiro, que há muito tempo já vestiram carapuças autoritárias que representam um velho, anacrônico e repressivo modelo de polícia, e, quando não, representam um mau governo felizmente derrubado pelo voto democrático, apesar dessas carapuças também representarem o golpismo. Entre o capacete do policial com chifres do desfile da Vai Vai, que, para deputados do PL, demonizam a Polícia, e aqueles que vestem a carapuça do protofascismo, prefiro o colorido da democracia e as imagens cintilantes de um Carnaval, que após uma triste pandemia, realizou-se novamente no Brasil, mostrando uma triste realidade de brutalidade através da arte, mesmo que isto mexa com os brios daqueles que deveriam reconhecer e não estimular tal brutalidade.