COMO ME DOI VER O SUL ASSIM
por Fernando Alves
Como me doi ver o Sul assim
Dos pontos cardeais, no coração, o que ficou em mim
Do carmesim das miçangas vendidas nos briques do meu parque Farroupilha, da estrada, das pontes, dos montes aos montes.
Do cheiro do mate, da erva fervida e sugada, das letras saudosas do Ramil
Num passo bem fundo na relva, num alegrete dito em falsete, de tantas pelotas chutadas ao pé do laranjal!
Senão baianas, uruguaianas, de um sul da Santa Maria, ao pé de uma Santa Cruz.
De um sul afro, negro, gringo, polaco, colono europeu e ameríndio.
Tão sul, tão céu, tão sol, tão azul, tão límpido em minha memória, como nas calçadas do Quintana.
Sim! No sul eu também passei, e fui passarinho!
Foi minha Canaã. Lá já montei meu ninho.
Fui chimango, mas também fui maragato!
Fui Colorado na beira de um rio, mas também vi os grandes pelearem do outro lado, em suas arenas! Entre gols, aplausos e vaias dos gratos aos ingratos!
Fui gasômetro, num Guaíba estrelado na passagem de ano.
Vi gaitas tocando, com pandeiros ribombando.
Vi templos, terreiros, centros espirituais e catedrais!
Vi brigas de rua, mas presenciei confraternizações entre rivais!
Vi gente simples e complexa, num sotaque que ainda me resta. Fiz festa, junto ao júbilo dos vitoriosos, como também estive à mesa, compartilhando misérias com os derrotados.
No sul, tive dúvidas, mas também muitas certezas!
Em minhas caminhadas, esbarrei em muitas veredas.
Como nos passeios no Bonfim, ou na boêmia sem fim de um nirvana. De seus piuchados, piqueteiros ou lunáticos. De suas prendas vistosas, das tradicionalistas entre saias e vestidos, às sorumbáticas de voluptuosas botas.
De amigos saudosos, até os esquecidos, que se te esquecem não esquecem o porquê de serem esquecidos.
Duma Cidade Baixa que sabia ser tão Alta em atitude, cultivando do vício a virtude de seus tipos humanos em esquinas, ora doces, ora rudes.
Nas caminhadas pelo Gramado, ou num trem para uma São Leopoldo, tão Nova Germânia, tão Novo Hamburgo. Tão Caxias, de gladiadores tornados pacificadores, com suas localidades, povoados, ribanceiras, liberdades.
Ou do frio invernal ou calor infernal,
Do tédio e do movimento em ruas bucólicas, outrora caóticas.
Num porto, mais nem tanto alegre, mas, que dentro de mim, o barco sempre atraca e segue.
Segue pelos vales, outrora esverdeados, agora assombrados pela chuva, por uma natureza que se inflama e chama.
Desfaz-se a conversa em temporal: eis-me aqui, final dos tempos! Preso no vendaval.
Como se Deus lançasse o castigo
Ao gaudério pelo duro, só se restasse um rio escuro,
Que transborda, as mentiras que ninguém lhe contou.
Que homens não podem ser maiores do que Deus
Nem os mais belos, nem os mais ricos, nem os mais patriotas!
Apesar dos engravatados e suas negativas! Negam a chuva! Negam as dores! Negam uma natureza que açoita!
Das mais altas torres, sentem-se protegidos na sua hipocrisia!
Mas quem seria? Senão o vento e a tempestade iminente a desafiar.
Tamanha chuva não poupa nem os caudilhos!
O que fizeram aos teus filhos, ó meu querido e singelo sul?!
Que pena! Quão idiotas, fomos nós e todos, ao brincar com fogo no chão da fábrica, ao invés de cuidar do pasto.
Quem diria, que do fogo das chaminés, que fura as nuvens, surgia a vingança de um vento ferido e gélido, sob relâmpagos e trovoadas.
O talvez finalmente se fez!
No pasto o gado se agita e os cavalos fogem.
Um minuano triste não é mais o mesmo, pois veio cedo, com recados de má sorte.
Hoje, no meu sul, a correnteza transforma o rio em lápide.
As crianças se assombram e os cães latem.
Está na hora de partir.
Nunca o partir foi sinônimo de fugir.
Mas sim o medo de sumir
É o que faz parte do duro verbo partir.
Alguns apenas com a roupa do corpo e um lamento
Outros, prostram-se sós em telhados, sofrimento.
Pranteiam do Taquari ao Jacuí, de um Rio dos Sinos, que badalam, até minha querida Rio Pardo!
Ali, onde jazem insepultos sentimentos de uma terra ora sepultada
A dureza da dúvida sobre o óbvio é não ter como ter dúvida do óbvio de sofrer.
Dizem que o gaúcho tem a saudade gravada nos olhos
Saudade essa que não cansa, submersa
Altivez imersa é do meu cantar a lembrança
Pois as lembranças não são levadas pelas águas
Saudade não alaga, não afoga, não se cobre de lama.
Mas invade o peito;
Faz-me virar à noite pranteado pela cama,
inundando-me de dor, suado, mas sem calor.
E o odor do mate na minha cuia de chimarrão não vai embora!
A tempestade que assombra, fez-se senhora!
Enquanto isso, a noite cai!
As águas recuam, como num último lamento traduzido em recado: não volte, o que só pode voltar!
O rio caudaloso não me cala! Aquilo que tenta me calar, multiplica-se!
Continuo a cantar, lágrimas copiosas como a chuva, e no meu canto, digo!
Como me doi, ver-te, Sul! Sem mim!