O filme Drive, do diretor Nicholas Winding Refn, injustamente exibido nos cinemas brasileiros tardiamente, e somente em algumas cidades (o eixo sul-sudeste que o diga), tendo o prolífico ator Ryan Gosling como protagonista, foi considerado uma mistura de Taxi Driver com Cães de Aluguel. Quanta injustiça! Quanta precipitação! Na verdade, Drive está mais perto do cinema europeu e dos velhos filmes de perseguição a carros dos anos setenta, com pitadas de romance de Antonioni e um pouco de Bertolucci. Em relação a este último cineasta, o filme rende até algumas homenagens a filmes como O Último Tango em Paris, não pelas cenas de sexo ou diálogos revolucionários (que não tem em profusão), mas sim pela interpretação do personagem de Gosling, cujo jeito taciturno lembra-me muito a atuação de Marlon Brando.
Em Drive podemos ver uma série de referências. Sim! Até porque cinema moderno, nos dias de hoje, é um baú de referências. Um pouco como é a vida acadêmica dos universitários com seus textos, artigos, dissertações e teses que contém mais referências do que pura originalidade. Desde o Nascimento de uma Nação de Grifith, desafio qualquer cinéfilo a me dizer que existe filme sem referências ou homenagens. No caso de Drive vemos como estradas e carros são apenas o pano de fundo do drama existencial de quem percorre essas ruas, em busca de dinheiro e perigo. O personagem é um piloto profissional que trabalha como dublê de filmes de perseguição e mecânico de carros durante o dia, e faz bicos servindo como motorista em fugas de assaltos pela noite. Em sua vida solitária de poucas palavras, sempre ajustada no relógio a cada fuga espetacular, o protagonista conhece uma moça que vive com o filho num apartamento vizinho, e diante da ameaça de criminosos contra o marido da moça, recém saído da prisão, nosso herói se vê obrigado a ajudá-los num pacto ético de honra e amor.
A estória do filme é contada de forma serena, apesar da explosão de violência que está por vir e nos choca, de tão estilizadamente sangrenta, pois foi feita pra chocar! O motorista sem nome interpretado por Gosling parece ter sido retirado de um livro de Albert Camus. É um herói existencialista, sorumbático, quieto, mas cujo charme, através de sua serenidade ao guiar um carro de fugas após um assalto durante a noite, tanto como trabalhar como dublê durante o dia, completa-se com o indefectível palitinho nos dentes. Entretanto, assim como parece quase um monge budista na direção de um veloz veículo, o motorista errante pode também ser uma máquina de violência, cujo catalisador é ativado a partir de qualquer ameaça à vida e segurança de seus novos entes queridos ( a cena do martelo dentro de um bordel já ficou antológica e quando você assistir ao filme vai perceber isso). Drive começa a remover os clichês ou ao menos reposicioná-los, quando em sua primeira parte sai da seara do filme policial e se transforma num romance. No caso, no comovente e platônico romance do protagonista com Irene, a personagem de Carey Mulligan, que faz a contraparte do filme. É ela que completa a estória, que seria inverossímil se não tivesse a sua participação. Assim, Drive conta uma história de amor, como toda fábula moderna, mas fala mais uma vez daqueles amores impossíveis (ou até que poderiam existir com muito esforço), em que um personagem solitário conduz a narrativa, seja pelos atos ou pelas curtas palavras que já traduzem uma bomba de sentimentos.
As palavras, diferentemente dos filmes de Tarantino, não são usadas à exaustão, mas, ao contrário, são usadas economicamente, como as do personagem de Gosling, cuja quietude esconde um paiol de pólvora prestes a explodir. O motorista errante de Gosling pode dizer que vai arrebentar os dentes de um incauto se ele continuar falando ao seu lado, dentro de um Café, com uma polidez tão grande quanto alguém que pede somente mais um pouco de açúçar. São desses personagens introvertidos, mas significativos (como foi, outrora, Clint Eastwood nos faroestes de Sérgio Leone), que o cinema constrói seus heróis.E é da atuação de bons atores como Gosling que se constroem bons filmes.
Drive é vibrante pois foi construído sem esforço para ser um filme cool. E bota cool nisso! A começar pela fotografia, trilha sonora com direito a um lounge eletrônicamente bem transado, cenas bem coreografadas e a jaqueta com desenho de escorpião nas costas, que deverá ficar para a história do cinema. Ryan Gosling é definitivamente um dos grandes e talentosíssimos atores da nova geração, sem os estrelismos de seus colegas trintões, como seu xarás, Ryan Reynolds ou Ryan Phillipe. Todos sabem que Gosling é bonito, o arquétipo do galã, e acima de tudo bom ator, mas ele não precisa ser másculo como Brad Pitt, elegante como George Clooney, ou tentar salvar o mundo como Tom Cruise; pois, diferente dos galãs veteranos, o jovem ator canadense já consegue imprimir sua própria marca. É um achado a sua composição do motorista errante e sem nome, que encontra a redenção ao conhecer e se apaixonar pela fragilizada, mas encantadora vizinha, esposa de um presidiário, que tem um filho pequeno tão apaixonante e frágil quanto.
O filme ainda tem um par de vilões respeitosamente representado pelos veteranos Albert Brooks e pelo eterno "Hellboy", Ron Pearlman, que não fazem feio como gângsters judeus, integrantes da máfia local, que matam e aleijam tão trivialmente como quem corta um pedaço de bife no almoço. É bem verdade que o universo da vilania é modestamente aproveitado no filme (até pelo possível medo do diretor de recorrer aos clichês do gênero), mas a atuação econômica dos vilões não estraga a beleza de Drive, que foi candidatíssimo a filme cult do ano passado. Tive a oportunidade de observar isso ao viajar a Paris, em 2011, e ter visto o filme estrear por lá, nos cinemas parisienses. Tem coisa mais cult do que ver um filme estrear em Paris?? Infelizmente, como eu disse, no nosso caso, nós, brasileiros, recebemos com imenso atraso uma pequena obra-prima, que ainda por cima ficou relegada às locadoras de video ou à pirataria correlata no Nordeste, onde há pouquíssimos entendidos em cinema que sabem orientar a clientela na hora de encontrar um bom filme. Fazer o quê?! De qualquer forma, assistir Drive é uma grata experiência para quem gosta de cinema, e ainda acredita em vida inteligente dentro da telona. Se for assistir na telinha, feche as cortinas, apague a luz do quarto ou da sala e viaje no carro do protagonista, dirigindo pela highway de uma Los Angeles pós-moderna, sem destino certo, mas rumando para o horizonte. Como diria a música do Smiths: Driving in your car, I never, never, want to go home.... Bom filme, pessoal!!