Foi preciso vir um músico norte-americano, sexagenário, conhecido por expor a alma e a cultura do povo de seu país, para que o povo brasileiro fizesse a justíssima homenagem a um de seus maiores expoentes do rock nacional, falecido há quase três décadas. Foi na abertura de seu show no último sábado, dia 22 de setembro, no Rock in Rio, que Bruce Springsteen comoveu o Brasil e os fãs de rock no mundo inteiro, homenageando Raul Seixas, cantando em alto e bom som, num simpático português cheio de sotaque, mas com muita boa vontade: Sociedade Alternativa, do saudoso maluco beleza. Coube a um músico egresso da era hippie fazer um bonito reconhecimento de outro músico, de um país diferente, mas oriundo da mesma época. Como que jogando pra galera, Bruce Springsteen soube, já no primeiro ato, conquistar a plateia, que hipnotizada e ganha pelo experiente músico, acompanhou o cantor norte-americano por mais de duas horas e meia de show, incluindo-se o bis, o que fez os organizadores do festival praticamente despejarem o cara do palco com sua banda ( a competente The E Street Banda, formada por 17 músicos), deixando uma multidão enlouquecida de mais de 100 mil pessoas, que praticamente madrugaram com o músico, cantando junto antigos sucessos, canções dos álbuns mais recentes ou mesmo raridades, desenterradas do baú dos anos setenta. Para os críticos, em sua imensa maioria, a apresentação de Springsteen e seu grupo foi, disparada, a melhor apresentação dessa quinta edição nacional do Rock in Rio.
Mas por que Bruce Springsteen foi tão bem? Afinal de contas, com o fim da era do CD, os jabás nas rádios locais e a decadência da MTV, suas músicas não são mais tão conhecidas do grande público como eram anos atrás. Seus discos aqui pelo Brasil não alcançaram recordes de vendagem e nenhuma de suas canções virou tema de novela. Mesmo assim, uma plateia gigantesca foi reverenciar o cara no sábado à noite, como atração principal de um festival que tinha pesos pesados do rock e do pop, como a banda britânica Iron Maiden (que também arrasou, como de costume, no dia posterior), o eterno ídolo Bon Jovi, a esfuziante Beyoncé e os superstars das garotinhas, Justin Timberlake e John Mayer. Apesar das outras atrações concorrerem entre si, foi o show de Springsteen que reuniu o maior número de gente; ou seja, gregos e troianos, metaleiros e mauricinhos se juntaram para ouvir o velho músico norte-americano. Então, retomo a pergunta: o que faz de Bruce Springsteen ser tão bom? A resposta talvez esteja nos anos oitenta.
Em 1984, enquanto músicas como Jump do Van Halen estouravam nas rádios, ouvíamos bandas como Barão Vermelho, Paralamas, RPM e Legião Urbana no rock nacional, e Michael Jackson era, consagradamente, o rei do pop, apareceu um clipe muito bacana na MTV com um cantor boa pinta, com jeito de galã e mistura de caminhoneiro norte-americano com ator de filme de ação yankee, que no auge da virilidade e juventude cantava no palco Dancing in the Dark, chamando uma garota bonita da plateia, no final da canção, para dançar junto com ele, num dos primeiros clipes a ser difundidos mundialmente pelo canal de música norte-americano. Logo depois, estreava nacionalmente nas bancas de jornal a famosa Revista Bizz, da Editora Abril, que trazia na capa, em sua edição nº 1 ele de novo, o cara que se tornou mundialmente famoso através da canção Born in USA, no auge da Guerra Fria entre EUA e União Soviética e os filmes de Rambo, do ator Silvester Stallone. Nascia assim, no meio dos anos oitenta, o mito Bruce Springsteen! Depois, para fechar com chave de ouro aquela época, viria a consagração também no cinema, no começo da década de 90, com a música Streets of Philadelphia, trilha sonora do filme Philadelphia que deu o primeiro Oscar de melhor ator a Tom Hanks, além de ganhar o prêmio de melhor canção original.
Mas, independente do cenário político e do panfletarismo do governo do presidente Reagan nos anos oitenta, espinafrando os soviéticos valendo-se da música do cantor, Bruce Springsteen não era um produto dos anos oitenta. Na verdade, ele tinha nascido bem antes, no elogiado disco Born to Run, de 1975. Lá é que surgia, no terceiro álbum do músico, o estilo que seria a marca da música de Springsteen: um rock saudosista com um rhitym blues bem marcado, uma leve pegada country, numa miscelânea das influências do soul na música negra e do rock branco calcado no rockabilly, de bandas que surgiam e se desfaziam em regiões do interior norte-americano, além de uma certa inspiração folk, principalmente nas letras, certamente com fundamento em outro grande músico e lenda da música não só americana como mundial, que, assim como Springsteen, cantava a realidade nua e crua do American Dream e de uma nação afundada em guerras e desigualdade social, principalmente depois do Vietnam: estamos falando de Bob Dylan.
Por falar em raízes,uma das grandes características de Bruce Springsteen como artista e o que o fez ser tão especial é sua completa simplicidade, desinibição e empatia com o público. Como um showman feito para agradar, munido apenas de um violão e de uma gaita, o cara consegue encantar plateias gigantescas em estádios, sem banda de apoio, como se estivesse tocando dentro de um barzinho, ou na varanda da casa de algum conhecido. É folclórica a história que contam nos backstages que, quando os músicos nervosos de sua banda preparam-se para entrar no palco, é comum Bruce dizer a sua turma que as pessoas lá fora são como o pessoal de New Jersey que os está esperando; ou seja, "estamos em casa". Isso identifica bem o caráter do músico que acha que, onde quer que se encontre, todos que vem para escutar suas canções são amigos de sua cidade natal, amigos da música, independente do idioma ou da posição geográfica, fazendo com que o rock seja o que seja: uma celebração multicultural, que, mesmo cantada em inglês, consegue animar as mais diferentes nações. É por isso que considero Bruce Springsteen um dos músicos mais globalizados do planeta.
Quando surgiu há quase quarenta anos, as gravadoras procuravam um cantor que fosse uma alternativa a Bob Dylan. Na verdade, se Dylan incorporava um som mais intelectualizado, universitário e estandarte da geração hippie que viveu intensamente os anos sessenta, competia a Bruce Springsteen incorporar os valores dos anos setenta, sendo mais do que uma mistura de Dylan com Elvis. Seu talento como compositor já era mais do que comprovado, com pérolas, citadas pela crítica musical mundial até hoje, como Born to Run, Rosalita (Come out Tonight) ou Thunder Road e Jungleland que são considerados clássicos. Depois chegaram os anos oitenta, e a partir de canções como Hungry Heart, do celebrado disco The River, de 1980, o músico norte-americano chegou, enfim, ao estrelato.
Seguiu-se o antológico disco Born in Usa, de 1984, da música homônima já citada, que transformou o cantor em ícone, como representante máximo de uma geração. Apesar da propaganda do governo, Bruce sempre foi um democrata, avesso ao discurso belicista e neoliberal do Partido Republicano, e odiou a forma como sua música foi usada como propaganda anticomunista no governo de Reagan, apesar de seu sucesso estrondoso nas rádios e shows do mundo inteiro. Foi nessa época que Michael Jackson reconheceu Springsteen como celebridade, e o convidou para participar, juntamente com outros notáveis da música mundial, do célebre clipe da canção We are The World, cuja arrecadação da venda do disco compacto serviu como donativos para conter a fome das crianças na África. Identificado com causas sociais, esse é outro traço do caráter de Bruce Springsteen que o torna um artista tão atraente e tão simpático às massas. Filho de um motorista de ônibus e de uma secretária, o músico era um típico working class hero, egresso da comunidade proletária e operária do meio oeste americano, que, agora, em tempos de crise econômica, consome com voracidade as músicas e as letras dos últimos discos de Springsteen, que relatam exatamente o drama das famílias pobres norte-americanas que perderam suas casas e empregos, na última crise imobiliária iniciada antes de 2008, ainda no governo de George W. Bush.
Desde antes da ditadura militar, para o bem e para o mal, o americanismo foi muito pronunciado na sociedade brasileira, principalmente através da música, pois fomos influenciados no século XX pelo jazz feito pelos norte-americanos, no surgimento da bossa nova por aqui, assim como a Jovem Guarda foi uma cópia quase que fiel na música do movimento mundial que tomava os jovens de assalto, na formação de uma nova musicalidade chamada Rock'n Roll. Era o tempo em que Beatles, e, principalmente Elvis Presley dominavam corações e mentes no mundo inteiro, e não poderia ser diferente no Brasil. Entretanto, foi através de músicos como o baiano Raul Seixas, na década de setenta, que o rock ganhou ares cult, com músicas mais bem trabalhadas e letras mais viajantes, críticas e literariamente bem escritas. Foi nessa época que surgiu o rock de Bruce Springsteen, e não foi à toa que seu som casou tão bem com a homenagem feita a Seixas no Rock in Rio, já que ambos, em síntese, beberam da mesma matriz cultural. É dessa matriz que vieram bandas de rock nacional que tocam até hoje, como o Barão Vermelho, e é por isso que gerações e mais gerações, com um público cada vez mais novo, de maneira impressionante lotam shows, ocupando estádios, e participando com curiosidade e afeto de shows de veteranos como Springsteen.
Agora, com canções novas do último e excelente disco, Wreckin Ball, Bruce Springsteen brilhou onipresente no último sábado no Rio de Janeiro, tornando mais bonita a Cidade Maravilhosa com sua apresentação memorável no Rock in Rio. Lamentei não poder ter assistido pessoalmente ao seu show, mas fiquei gratificado ao ver uma bela apresentação ao vivo na TV, reproduzida exaustivamente no Youtube, e que mostra como, aos 63 anos, o músico norte-americano ainda está em plena forma, cantando seus hits com alegria, assim como fazia nos saudosos anos oitenta. É bonito de se ver quando antigos músicos não perdem a boa forma, e no caso de Springsteen, a forma ainda está bem presente na maratona de shows que começaram no início do ano, culminaram no Rock in Rio e não tem data pra acabar. Bruce Springsteen conseguiu extrair todo o lado bom do norte-americano, mostrando em suas letras o quanto esse povo pode ser tão parecido e cheio de problemas como é o povo de outras nações. Como cantor do povo o cara mostrou a que veio, e para o público encantado do Rio de Janeiro ele mostrou que, assim como sua música, ele "nasceu para correr". Congratulations, Mr. Bruce Springsteen! E viva a sociedade alternativa!!