Quando eu nasci, há cinco anos o Brasil era governado por militares. Em 31 de março de 1964 o presidente democraticamente eleito, João Goulart, havia sido deposto e em seu lugar assumiu uma junta militar composta pelos comandantes das 3 Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), colocando como primeiro presidente militar, imposto e não eleito pelo povo, o general Castelo Branco. De 1964 até 1985, ano em que o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves como novo presidente da república ( o primeiro civil presidente após vinte anos), o país, assim como quase toda a América Latina, viveu sob o regime dos quartéis.
Sou, portanto, um "filho da revolução"(como dizia na música Geração Coca Cola, da banda de rock Legião Urbana), pois assim foi chamado um ato político que, na verdade, não foi revolucionário, mas sim um golpe de Estado. Eu havia aprendido ainda bem cedo, nos livros de história, antes de entrar na universidade, que revoluções se faziam com amplo apoio popular e com o protagonismo de partidos políticos e sindicatos, não de exércitos. Entretanto, o golpe de 64 teve, sim, apoio popular, mas o apoio maciço das elites econômicas e de uma classe média conservadora, católica e histérica, com medo do "perigo vermelho" que representava a ameaça comunista. Para os mais jovens, que nasceram depois da redemocratização, pouco se sabe sobre a chamada "Guerra Fria", mas era nesse clima político internacional que viveram milhões de jovens como eu, naquela época, vendo o mundo dividido entre duas grandes (e armadas) potências ideológicas: os Estados Unidos da América, representando o mundo capitalista, de um lado; e a União Soviética, representando os países socialistas do outro lado.
Era um mundo bem diferente há 50, 40 ou 30 anos atrás. O Brasil vivenciado pelos meus pais, em 1964, era um país em alta crise econômica, com protestos e manifestações nas ruas, vindo de diversos segmentos da população, inclusive dos próprios militares. Foi um período de incertezas, e de luta ideológica no campo político entre dois extremismos: o de esquerda e o direita. No meio disso havia uma elite política e econômica conservadora, populista, e uma imprensa cada vez mais comprometida com os interesses do grande capital. Entretanto, o país vivia seu período mais longo de normalidade democrática, com uma sucessão de presidentes eleitos pelo voto popular desde o fim do Estado Novo, nos anos quarenta, ate os anos sessenta, com a eleição de Jânio Quadros, último presidente civil eleito no período, que logo renunciou após meses de um controvertido governo, e que culminou com a posse (nunca aceita pelos militares), de seu vice, o gaúcho João Goulart, um presidente que acabou sendo deposto por aquilo que veio a ser chamado de Revolução (mas que na verdade era golpe).
Meu pai era militar, um jovem marinheiro de 20 anos de idade, quando o golpe aconteceu. Se na caserna, jovens marinheiros se ouriçavam e sargentos do exército protestavam contra o tratamento dado pelos seus superiores, na cúpula das Forças Armadas generais conspiravam contra o governo, esperando a hora certa de atacar e derrubar o presidente do poder. Enquanto isso, o presidente "Jango" (apelido que lhe tornou célebre) antipatizava-se ainda mais com a elite militar, ao dar apoio aos praças rebelados, e cultivava o ódio dos latifundiários, ao defender um radical projeto de reforma agrária. "Reforma agrária??" Pensavam os conservadores." Mas isso não é coisa de comunista??". Foi por ser considerado comunista (não obstante também ser latifundário e de origem elitista), que Goulart foi deposto, numa paranoia ideológica que identificava a todo momento um subversivo no lugar de um presidente. De um lado, Jango, um presidente que fez um governo fraco, titubeante, com uma base de apoio dúbia, dependendo (e muito) dos partidos de esquerda e sindicatos, de setores nem tão mobilizados assim da sociedade civil, e de um contingente pequeno, mas ativo, de militantes estudantis e intelectuais. Do outro, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar em Minas Gerais, um militar impetuoso, arrogante, impulsivo e autoritário, que só pensava em si mesmo, um produto do radicalismo ideológico de sua época; mas com sua estabanada atitude de partir com suas tropas em 31 de março em direção ao Rio de Janeiro, com o propósito de terminar com a baderna e "acabar com a ameaça do comunismo", acabou ganhando a adesão de toda uma cúpula militar que já pensava a mesma coisa: derrubar o presidente do poder e assumir para si o comando da nação por mais de vinte anos. Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici e Ernesto Geisel foram os reais presidentes, os chefes de Estado, vitoriosos na "Revolução"; mas foi Mourão seu grande idealizador e também o mais injustiçado, deixado para trás na disputa de poder entre os colegas, que o deixaram de fora da divisão de poder. Estava montado o cenário do autoritarismo fardado no Brasil e o compromisso de subjugação do povo brasileiro aos interesses de um patronato, voltado para os seus próprios interesses, na base da tortura, da censura e da ausência de representação política.
Agora, eu interrompo um pouco meu relato dos anos sob o comando dos militares, para falar de um mito do folclore judaico: o Golem. Vocês sabem o que é um Golem? Um Golem é uma criatura feita de argila, à imagem do homem, que é animada por um rabino que lhe confere vida proferindo uma fórmula sagrada. Este ser ganha vida e aumenta de tamanho a cada dia, devendo servir unicamente ao seu senhor, o rabino que o criou. O problema é que na história do Golem, um ser solitário, carente de afeto, ocorre algo que o seu criador não imaginava. Ele se apaixona pela filha do rabino e sofre por isso. O rabino só criou o Golem para que este atacasse seus inimigos não judeus, mas o ser criado acaba se voltando contra o seu criador, e além de matar qualquer um, inclusive judeus, o Golem acaba matando também o rabino que lhe deu vida. Na literatura esta história acabou inspirando pessoas como Mary Shelley, escritora britânica que nos século XIX inventou o monstro de Frankestein, e que tem muitas relações com esse mito judaico. Na arrogância de querer assumir o lugar Deus como único criador, tornando-se também criadores, os homens acabam por criar seus próprios monstros, que se viram contra eles.
Na metáfora moderna do Golem, nós podemos dizer que todas aquelas pessoas conservadoras, carolas de classe média, que lotaram as ruas dos grandes centros urbanos em 1964, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, na "Marcha de Deus pela Família", acabaram criando seu próprio Golem: a ditadura militar. Sob o pretexto de proteger o país dos comunistas e manter a ordem e os bons costumes, os mesmos grupos que pregavam a solução autoritária da intervenção militar, também sentiram na pele a bota autoritária do Estado, com o surgimento de um regime de exceção. No clima de histeria da Guerra Fria, João Goulart foi confundido com um comunista, e o simples fato de querer conceder voto aos analfabetos foi o suficiente para que centenas de pessoas, com uma visão altamente elitista de sociedade, saíssem às ruas para reclamar contra alguém que queria apenas desestabilizar o tradicional quadro social da sociedade brasileira, de manutenção de privilégios de uma elite e da profunda desigualdade social que gerava multidões de excluídos. Jango representava uma ameaça não porque ele fosse a mudança, mas sim porque inspirava a mudança, e num contexto de ânimos e ideologias acirradas, de um lado ou de outro ele teria que pender, e foi o que aconteceu. Assim como anos depois, com Salvador Allende, no Chile, no Brasil um presidente democraticamente eleito foi deposto, por defender reformas de base que buscariam atingir as desigualdades, promovendo uma maior igualdade de classe, ideia totalmente refratada por quem não queria ver a ascensão social daqueles que um dia já foram seus empregados.
Com o golpe de 64 e a publicação do Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso Nacional e extinguiu por completo as liberdades políticas no Brasil, iniciou-se uma "era das trevas" na história nacional, onde opositores do regime eram sumariamente extintos, por meio da tortura ou mediante escaramuças policiais que terminavam em tiroteio e morte, como aconteceu nas mortes de líderes considerados subversivos e terroristas que aderiram à luta armada, como Carlos Lamarca e Mariguella nos anos sessenta, ou no extermínio completo de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), na Guerrilha do Araguaia e no assassinato dos dirigentes de seu comitê central, na Chacina da Lapa, nos anos setenta. Milhares de estudantes, sindicalistas e militantes de movimentos sociais foram reprimidos nas ruas e dentro dos quartéis. Foram anos difíceis não apenas no aspecto dos direitos humanos e da liberdade de expressão, mas também no aspecto econômico, com um maior e crescente endividamento externo do país devido ao chamado "Milagre Econômico" do governo de Médici, ao pregar uma modernização que só acentuou a desigualdade social no país, e resultou num violentíssimo surto inflacionário e recessão. Na época dos militares, não existia, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS), com saúde pública para todos os brasileiros na rede pública, prevalecendo em seu lugar apenas as distantes e limitadas filas do INAMPS, que não atendiam a todos os casos. A corrupção no serviço público era endêmica, principalmente porque não havia órgãos gestores responsáveis por fiscalização e controle, com gastos públicos elevados e uma total falta de transparência na divulgação do uso de recursos públicos. O Ministério Público, ainda vinculado ao Poder Executivo, era totalmente amordaçado, sem que promotores de justiça possuíssem qualquer garantia constitucional no exercício de suas funções, fazendo com que muitas vezes promotores, como Hélio Bicudo, não conseguissem levar adiante suas denúncias de tortura e crimes praticados por agentes de Estado, pela proteção legal dada pelo regime aos seus próprios torturadores. No âmbito das artes e da universidade, milhares de artistas, intelectuais e professores tiveram que sair do país, seja porque não conseguiam emprego, seja porque eram perseguidos por suas ideias e opiniões, proibidas de serem comentadas no ambiente universitário, sob pena de perda do emprego de professores e expulsão de alunos, além de uma posterior (e certa) prisão, num ambiente em que a democracia passava de longe. Vivíamos um simulacro de democracia, com presidentes militares vestidos de terno no lugar da farda, sob o discurso da revolução arrebatadora promovida pelos generais, que finalmente teria imposto a ordem, como se uma ordem constitucional não existisse antes no país.
Na metáfora moderna do Golem, nós podemos dizer que todas aquelas pessoas conservadoras, carolas de classe média, que lotaram as ruas dos grandes centros urbanos em 1964, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, na "Marcha de Deus pela Família", acabaram criando seu próprio Golem: a ditadura militar. Sob o pretexto de proteger o país dos comunistas e manter a ordem e os bons costumes, os mesmos grupos que pregavam a solução autoritária da intervenção militar, também sentiram na pele a bota autoritária do Estado, com o surgimento de um regime de exceção. No clima de histeria da Guerra Fria, João Goulart foi confundido com um comunista, e o simples fato de querer conceder voto aos analfabetos foi o suficiente para que centenas de pessoas, com uma visão altamente elitista de sociedade, saíssem às ruas para reclamar contra alguém que queria apenas desestabilizar o tradicional quadro social da sociedade brasileira, de manutenção de privilégios de uma elite e da profunda desigualdade social que gerava multidões de excluídos. Jango representava uma ameaça não porque ele fosse a mudança, mas sim porque inspirava a mudança, e num contexto de ânimos e ideologias acirradas, de um lado ou de outro ele teria que pender, e foi o que aconteceu. Assim como anos depois, com Salvador Allende, no Chile, no Brasil um presidente democraticamente eleito foi deposto, por defender reformas de base que buscariam atingir as desigualdades, promovendo uma maior igualdade de classe, ideia totalmente refratada por quem não queria ver a ascensão social daqueles que um dia já foram seus empregados.
Com o golpe de 64 e a publicação do Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso Nacional e extinguiu por completo as liberdades políticas no Brasil, iniciou-se uma "era das trevas" na história nacional, onde opositores do regime eram sumariamente extintos, por meio da tortura ou mediante escaramuças policiais que terminavam em tiroteio e morte, como aconteceu nas mortes de líderes considerados subversivos e terroristas que aderiram à luta armada, como Carlos Lamarca e Mariguella nos anos sessenta, ou no extermínio completo de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), na Guerrilha do Araguaia e no assassinato dos dirigentes de seu comitê central, na Chacina da Lapa, nos anos setenta. Milhares de estudantes, sindicalistas e militantes de movimentos sociais foram reprimidos nas ruas e dentro dos quartéis. Foram anos difíceis não apenas no aspecto dos direitos humanos e da liberdade de expressão, mas também no aspecto econômico, com um maior e crescente endividamento externo do país devido ao chamado "Milagre Econômico" do governo de Médici, ao pregar uma modernização que só acentuou a desigualdade social no país, e resultou num violentíssimo surto inflacionário e recessão. Na época dos militares, não existia, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS), com saúde pública para todos os brasileiros na rede pública, prevalecendo em seu lugar apenas as distantes e limitadas filas do INAMPS, que não atendiam a todos os casos. A corrupção no serviço público era endêmica, principalmente porque não havia órgãos gestores responsáveis por fiscalização e controle, com gastos públicos elevados e uma total falta de transparência na divulgação do uso de recursos públicos. O Ministério Público, ainda vinculado ao Poder Executivo, era totalmente amordaçado, sem que promotores de justiça possuíssem qualquer garantia constitucional no exercício de suas funções, fazendo com que muitas vezes promotores, como Hélio Bicudo, não conseguissem levar adiante suas denúncias de tortura e crimes praticados por agentes de Estado, pela proteção legal dada pelo regime aos seus próprios torturadores. No âmbito das artes e da universidade, milhares de artistas, intelectuais e professores tiveram que sair do país, seja porque não conseguiam emprego, seja porque eram perseguidos por suas ideias e opiniões, proibidas de serem comentadas no ambiente universitário, sob pena de perda do emprego de professores e expulsão de alunos, além de uma posterior (e certa) prisão, num ambiente em que a democracia passava de longe. Vivíamos um simulacro de democracia, com presidentes militares vestidos de terno no lugar da farda, sob o discurso da revolução arrebatadora promovida pelos generais, que finalmente teria imposto a ordem, como se uma ordem constitucional não existisse antes no país.
Hoje, quando militares da reserva vão até a Comissão da Verdade, instalada pelo governo federal atual, para investigar denúncias de tortura, assassinatos e desrespeito aos direitos humanos no período da ditadura, vemos que, em alguns casos, alguns deles não titubeiam e não demonstram o menor remorso ou arrependimento ao relatar seus crimes cometidos no período, protegidos pela Lei de Anistia. Ao menos para os defensores dos chamados "anos de chumbo", as confissões desses senhores dão um soco no estômago dos seus ouvintes, face os detalhes sombrios e sanguinários de tortura e desaparecimento de cadáveres, que mais se assemelha ao roteiro de um filme de terror. Sobram dúvidas, também, se os principais líderes civis do período pré-64 (Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e o próprio João Goulart), não teriam sido assassinados e sua suposta morte natural seria falsa, tendo em vista que estes eram os principais líderes populares, com altos índices de aprovação popular entre os políticos civis durante o governo dos militares, e quem efetivamente ameaçava sua hegemonia, seja entre conservadores quanto no eleitorado progressista.
A ditadura não deixa saudade, apesar de ter muito a nos ensinar, pois com ela, caso tenhamos aprendido algo, foi o de somente saber que nunca mais temos que passar novamente por uma peripécia do tipo autoritária, baseada no conservadorismo e na ignorância, ao considerar que os males da democracia (corrupção da classe política, protestos violentos, manifestações de insatisfação social diárias e uma mídia abusiva e apelativa) só são resolvidos por meio da força das baionetas. Em lugar algum do planeta uma solução do tipo militarizado foi a saída. Pululam a cada dia mais provas e demonstrações que, desde a ascensão do nazifascismo na Europa nas primeiras décadas do século XX, até o advento das ditaduras militares latino-americanas na segunda metade do século passado, os povos desses países só cultivaram ódio, decadência econômica e destruição. Por que voltar a tudo isso, retrocedendo relógio da história? Acredito que, assim como os alemães, que não esquecem seu passado nazista, apenas para lembrar que não querem vê-lo novamente nunca mais, acredito que também no Brasil temos que aprender com a história da ditadura, para que nesta data em que o golpe completa 50 anos, não tenhamos mais aventureiros em cima de tanques querendo impor suas opiniões com canhões, ao invés de eleições. Este não é um legado que eu queira eventualmente passar para os meus filhos, se eu assim os tiver. Que fique no passado nossa experiência ditatorial, mas que fique na lembrança e jamais sejam esquecidos, aqueles que morreram contra ela, em busca da democracia.
A ditadura não deixa saudade, apesar de ter muito a nos ensinar, pois com ela, caso tenhamos aprendido algo, foi o de somente saber que nunca mais temos que passar novamente por uma peripécia do tipo autoritária, baseada no conservadorismo e na ignorância, ao considerar que os males da democracia (corrupção da classe política, protestos violentos, manifestações de insatisfação social diárias e uma mídia abusiva e apelativa) só são resolvidos por meio da força das baionetas. Em lugar algum do planeta uma solução do tipo militarizado foi a saída. Pululam a cada dia mais provas e demonstrações que, desde a ascensão do nazifascismo na Europa nas primeiras décadas do século XX, até o advento das ditaduras militares latino-americanas na segunda metade do século passado, os povos desses países só cultivaram ódio, decadência econômica e destruição. Por que voltar a tudo isso, retrocedendo relógio da história? Acredito que, assim como os alemães, que não esquecem seu passado nazista, apenas para lembrar que não querem vê-lo novamente nunca mais, acredito que também no Brasil temos que aprender com a história da ditadura, para que nesta data em que o golpe completa 50 anos, não tenhamos mais aventureiros em cima de tanques querendo impor suas opiniões com canhões, ao invés de eleições. Este não é um legado que eu queira eventualmente passar para os meus filhos, se eu assim os tiver. Que fique no passado nossa experiência ditatorial, mas que fique na lembrança e jamais sejam esquecidos, aqueles que morreram contra ela, em busca da democracia.