sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

COMPORTAMENTO: Por que os artistas se matam tanto?

Era para eu ter escrito essa postagem há alguns meses atrás este ano, logo após ter tomado conhecimento do trágico suicídio do cantor norte-americano Chris Cornell, após um show de sua banda, uma das lendas do grunge, o Soundargen. Eis que no mês seguinte, no aniversário da morte de Cornell fui surpreendido por outro suicídio: a morte de Chester Bennington, vocalista do Linkin Park, morto, assim como Cornell, por enforcamento. O cantor do Soundgarden tinha 52 anos e três filhos, e Bennington, 43, e quatro filhos. Ambos experimentaram o sucesso, venderam milhares de discos com suas bandas, suas vozes eram reconhecidas nas rádios do mundo todo e ninguém pode dizer que algum deles estivesse atolado em dívidas ou passando necessidades materiais. "Foi as drogas!", muitos dirão, até porque ambos os vocalistas tiveram um passado nebuloso de uso de drogas pesadas. "Foi a depressão!", outros podem dizer, uma vez que tanto Cornell quanto Bennington lutavam há anos com seus demônios internos, tiveram infâncias difíceis em disfuncionais famílias proletárias da costa oeste americana, e, geralmente, relatavam toda sua dor e seu pranto nas letras de suas músicas. Será que foi apenas isso?

Na verdade, entre a vontade e a ação, senti-me tocado a finalmente escrever umas linhas de texto neste blog, quando, passando numa livraria, vi alguns textos do poeta russo Vladimir Maiakovski, e me surpreendi com uma foto dele morto, aos 32 anos, jovem, bonito, elegante em seu terno branco, mas com uma expressão de lamento, com os olhos fechados e a boca aberta num último gesto, como que ao proferir o último grito, enquanto uma mancha de sangue escorria de seu casaco, revelando que o artista havia dado um tiro no próprio peito. Entre Maiakovski na Rússia da década de trinta, Torquato Neto no Brasil dos anos setenta e Cornell a Bennington em pleno século XXI, pude notar a semelhança de que todos eram jovens, todos tinham família, todos tinham sua obra, mas diante de um mundo que, para eles, era tão caótico, parece que não conseguiram segurar a onda.

Ao mesmo tempo, ao escrever este texto me recordo da frase atrevida de Gene Simmons, vocalista e baixista da antológica banda Kiss. Quando Kurt Cobain, do Nirvana, matou-se, em 1994, Simmons publicou uma nota na imprensa, onde só lamentava que o cantor do grunge não tivesse deixado um bilhete, deixando toda sua fortuna para ele. Apesar da indelicadeza típica de um membro do Kiss, Simmons comentou logo após a polêmica frase que não admitia que alguém não segurasse a onda do sucesso e da fama, já que era aquilo que ele (bom rockeiro capitalista e eleitor do Partido Republicano) sempre quis quando resolveu ser músico nos anos setenta, quando, segundo ele, nos tempos de pobreza tinha uma banda miserável que não dava grana sequer pra comprar um bife.

Na verdade, Simmons e Cobain são de universos e gerações distintos da cena do rock, e apesar de ambos terem contribuído, ao seu modo, para a história da música, o suicídio de Cobain tem muito mais haver com outros personagens célebres da vida musical, como os próprios Cornell e Bennington, seus contemporâneos. Somados a eles, nessa macabra estatística, podemos citar o cantor Ian Curtis, líder e vocalista do lendário Joy Division, banda inglesa pós-punk do final da década de setenta, que se enforcou aos 23 anos, há mais de trinta anos, quando sua banda já tinha se tornado antológica, dias antes de embarcar para aquela que seria a primeira turnê norte-americana do grupo de Manchester. Epilético, com acesso a álcool e drogas, e uma vida doméstica complicada, Curtis foi mais um que sucumbiu, pendurado em uma corda, a ingressar na triste lista de bons artistas que tiraram a própria vida. Assim como os vocalistas do Soundgarden e do Linkin Park, Ian Curtis também tinha família, deixando uma filha orfã. Seriam essas pessoas todos uns fracos egoístas, que, deliberadamente, deixam filhos sem pais??

Mas o que leva essas à solução final e mais trágica? Fora os efeitos deletérios da dependência química e o consequente mal estar físico e psicológico, o que levaria esses bem sucedidos músicos a não ver mais sentido em respirar e tirar a própria vida? Creio que seria muito simplismo dizer que gestos tão tristes como esses seria apenas um ato de egoísmo. Na verdade, se formos contabilizar aqueles que se foram como integrantes de uma geração perdida, concebida na segunda metade do século passado, alguns anos após o surgimento do rock, teremos uma tese sociológica e literária sobre esse fato: trata-se de uma geração de mal do século.

Historicamente, o mal do século é um movimento do século XIX, que se desenvolveu nas letras e nas artes de uma Europa e, posteriormente, de uma América que vivia a ressaca do romantismo. Segundo a definição de Massaud, o mal do século pode ser definido como uma estética de: “Pessimismo extremo, em face do passado e do futuro, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza, culto do mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico, ausência da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito, “vago das paixões”, desencanto em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentimento vital, depressão profunda, abulia, resultando em males físicos, mentais ou imaginários que levam à morte precoce ou ao suicídio”.

Tivemos no Brasil diversos representantes dessa estirpe, como Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, mas talvez Goethe seja um dos maiores expoentes desse movimento artístico, com seu clássico romance: "O sofrimento do jovem Werther", que  incitou uma onda de suicídios em toda a Europa, devido ao destino do seu protagonista, chegando a ser mesmo considerada durante anos uma obra maldita ou proibida. Pois é, meus amigos! Tristeza não é sentimento fácil e pior ainda é falar dele ou cantar sobre isso. Se, há dois séculos atrás, um coletivo de jovens artistas via o fracasso da revolução industrial, com a pujança capitalista dos grandes proprietários de um lado, a confrontar com a miséria e a exploração de milhares de assalariados e desempregados do outro lado, num cenário de guerras, perseguições e conflitos, na segunda metade do século XX, após os primeiros alegres acordes da guitarra de Chuck Berry, os rebolados de Elvis, e a rebeldia intrépida da invasão britânica, que trouxe os Beatles e os Rolling Stones, o rock das décadas seguintes nunca foi o mesmo, sacudido pelo som pesado e sombrio do Led Zeppelin e Black Sabbath ou de discos falando sobre discos voadores ou  gnomos, no rock progressivo de bandas como Genesis ou Pink Floyd.Era o fim da flower generation e as mensagens de paz, amor e esperança do movimento hippie, cuja inocência foi encerrada abruptamente pela chacina da família Manson. Era tempo agora da música popular, especialmente o rock, voltar-se em suas letras para um lado mais sombrio, escuro, depressivo, como que chegando ao fundo da alma, explorando toda a tristeza e o desencanto com aqueles tempos. Para contribuir para o clima geral de pessimismo traduzido em musicalidade, poemas e estilo, surgiu o punk, e com ele atitudes totalmente niilistas, de "não estar nem aí pra todo o mundo" ou de "foda-se o mundo", por meio dos rocks de protesto do Sex Pistols ou do The Clash.

Foi ouvindo as músicas desses grupos que surgiram cantores como Kurt Cobain, Chris Cornell e Chester Bennington.  Já imersos numa cultura pessimista de autodestruição, esses artistas foram criados em ambientes que apenas pulverizaram em forma de arte sentimentos que já estavam sendo carregados com eles desde tenra idade. No caso de Cornell, sabe-se que era um garoto solitário, filho de um farmacêutico e de uma contadora, que abandonou a escola na adolescência após uma forte depressão que o impossibilitava, inclusive, de sair de casa. Chris gostava de leitura e tinha apreço especial pelos poemas de Silvia Plath (outra artista que se suicidou jovem). Nesse sentido, a música foi a válvula de escape natural para quem já alimentava muitos monstros internos, e tais criaturas já eram descritas, de forma semelhante ou em mensagens cifradas em letras de música sobre o desencantamento do mundo e das pessoas, diante de uma sociedade industrial e tecnológica em crise, como nas músicas do Joy Division. Chester Bannington, por sua vez, teve também sua cota de dor transmitida por meio das letras de suas músicas. Vítima de bullying e abuso sexual na infância, Chester buscou durante anos no álcool e nas drogas as fugas para seus dramas pessoais, e sempre teve o vocalista do Soundgarden, quase dez anos mais velho, como grande ídolo e referência, já que provinham do mesmo ambiente. Desta forma, é mais aceitável para alguns reconhecer que o suicídio do amigo músico foi o catalisador final de um processo mórbido que já havia se iniciado há anos no inconsciente do músico norte-americano, e que culminou com sua morte, da mesma forma que seu ídolo, cerca de um mês antes. No contexto de músicas que falavam do absurdo da indiferença, do reconhecimento da impotência, da exaustão de ser quem é, e da tristeza quanto à insensibilidade do mundo, não é tão estranho pensar agora que intérpretes que levam sua arte a sério, podem levá-la até às ultimas consequências, transformando em realidade, o que antes era apenas esboçado nas letras de suas músicas.

Encerro, assim, estas linhas, ao tratar da trágica morte desses célebres artistas, reproduzindo em português os versos do refrão da canção Numb, umas das clássicas do Linkin Park, cantada na saudosa e lancinante voz de Chester Bennigton, que eu espero tenha encontrado a paz que nunca encontrou em vida, junto ao seu amigo Chris Cornell, desejando eu que mais almas tão atormentadas não nos deixem tão cedo, ao menos não antes de deixarem algo de bonito, que talvez não consigam ver em suas próprias vidas, como a beleza de suas canções.

Eu me tornei tão indiferente
Não posso sentir você aí
Me tornei tão cansado
Muito mais consciente
Estou me tornando isto
Tudo o que eu quero fazer
É ser mais como eu sou
E menos como você é

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