terça-feira, 10 de julho de 2018

No show do Depeche Mode

O Depeche Mode é um dos pouquíssimos grupos de rock eletrônico dos anos oitenta que ainda permanece relevante até hoje. Tive o privilégio de assistir o único show no Brasil, da última turnê da banda, no Allianz Park, em São Paulo, no dia 27 de março. Um dia atípico, uma terça-feira de trânsito enlouquecido, como é de hábito na metrópole paulistana, pra completar com uma forte chuva que começou à tarde e durou praticamente a noite toda. No começo da tarde, quando eu e minha esposa saímos do hotel, pegamos uma tempestade, com direito a ruas alagadas, até chegar próximo a Barra Funda e permanecemos por uma hora ilhados dentro do estacionamento de um shopping, aguardando que a chuva passasse e a inundação das ruas entupidas de água e carros não chegasse aos nossos pés. Por fim, no começo da noite, sob a forma de uma fina garoa que caía sobre o estádio, pudemos finalmente chegar ao local do show.

Mas, mesmo com as intempéries climáticas, quem disse que não foi emocionante, um tanto bucólico e pitoresco, ver o que David Gahan, Martin L. Gore e Andy Fletcher ainda conseguem fazer?? Engana-se quem pensa que o show foi uma reprodução daqueles eventos caça-níqueis, onde rockeiros cinquentões ou sessentões voltam à ativa, cantando somente sucessos antigos, em busca de alguns trocados. Durante esses trinta e poucos anos, o Depeche Mode permaneceu ativo, lançando periodicamente vários discos, tornando-se, assim como o New Order, uma competente banda de rock eletrônico, com elementos de Devo e influências de Kraftwerk e David Bowie, mas com um certo tom soturno que se igualava somente à capacidade dançante de suas canções. O show em São Paulo foi da turnê do mais recente disco, Spirit, e também de um dos mais políticos. Em Going Backwards, canção do disco novo que abriu o show e é exaustivamente tocada em rádios on line ou em plataformas como o Spotify, os vocais de Gahan declamaram versos declaradamente de protesto e desilusão com a era Trump e todo o retrocesso da democracia e dos direitos, com o aumento dos extremismos (não só na Europa, mas inclusive no Brasil), o Brexit e outras desgraças mundiais, corroborando que a globalização parece não ter dado muito certo. Ao cantar em seguida a clássica It's no good, o Depeche sacudiu a plateia com uma das canções da fase já consagrada do grupo, mas que também revelava a decadência pessoal de seus integrantes, alguns a experimentar o fundo do poço ou algo bem mais profundo do que isso, como sofreu Dave Gahan, que escapou da morte por um triz, seja por ter ficado desacordado por mais de um minuto por conta de uma overdose de heroína que quase o matou, uma tentativa de suicídio ou a descoberta e o tratamento de um câncer, que acabou por se curar. É! Se acredita ou não em Deus, o vocalista do Depeche Mode tornou-se um afortunado, com direito a um recomeço, à construção de uma família com esposa e filha, a sobriedade e o retorno ao grupo de amigos ingleses que começaram como uma espécie de boy band de tecladinhos, nos anos oitenta, até fazerem o mundo descobrir que eram bem mais do que isso, a começar pela densidade de suas letras, que não eram nada bobinhas. De fato, o Depeche Mode tornou-se uma banda de respeito, a ponto de se tornar antológica.

A terceira canção do setlist, também do último álbum, Where's the revolution também repousa na forte crítica política e social, caçoando dos falsos ou velhos militantes, que nos protestos de outrora, diante de tanta injustiça e barbárie renovada no mundo, parece que só acordaram agora lentamente, começando a retirar suas bandeiras e faixas do armário. A canção fala em perder ou não o trem da história: 
The train is coming
The train is coming
The train is coming
The train is coming
So get on board
Get on board
Get on board
Get on board


O show seguiu com mais e mais músicas da discografia da banda, desde as mais clássicas até as dos discos mais recentes. Quem é que não dançou uma vez na vida (ou várias) ao som da célebre Enjoy the Silence, talvez a música mais famosa dos caras, do disco Violator, até hoje o mais vendido desses senhores da região inglesa de Essex, cujo vinil eu comprei saindo das lojas, no longínquo ano de 1990? O mais legal além das músicas foi ver o corpo esguio de Gahan rodopiando no palco como um bailarino,  enquanto cantava a clássica e dançante World in my Eyes, revelando a disposição física de um homem que já chegou aos 55 anos, com suas jaquetas e coletes estilosos, como um dândi moderno. A simpatia e carisma de Martin L. Gore, o loiro guitarrista e maior compositor do grupo, com seu famoso sorriso tímido, cantando à capela junto com a plateia algumas das mais belas e profundas baladas que o Depeche já criou, não podia deixar de ocorrer na noite. Enquanto isso, como uma esfinge, o terceiro e ilustre membro da formação clássica, Andrew Fletcher, permanecia compenetrado, com seus óculos escuros, ao fundo, fazendo toda a base musical e tradicional que marca o som da banda, conduzindo ondas sonoras como o comandante musical de um navio, ao som de seu teclado. O som dos caras naquele show me fez voltar em flashbacks a 1988, quando eu, então um moleque adolescente de 17 anos, recém conhecendo a noite, fui conhecer e escutar pela primeira vez o som dos caras no antigo bar Chernobyl e na boate Vicious, que ficava nas proximidades, na Praia do Meio, em uma Natal onde os jornalistas do caderno de cultura gostavam de chamar de "Londres nordestina", por conta da juventude universitária da época, muitos do bairro vizinho de Petrópolis, que colecionavam discos e gostavam de escutar rock inglês e música eletrônica europeia. Lembro-me naquela época da sedução quase hipnótica de escutar na penumbra a gótica Behind the Wheel, com sua célebre entradinha do som de uma calota rodopiando, seguida de uma irresistível batida techno que me obrigava a dançar nem que fosse com minha própria sombra.


Outras músicas se seguiram num setlist com mais de vinte canções. Duas horas de somzeira garantida ou seu dinheiro de volta. Como não sapatear ao som da quase marcial Walking in my shoes? Afinal, com sua letra menos sombria do que profética, cujo refrão aparece como um conselho ou provérbio, ouve-se e percebe-se nas letras quase um relato autobiográfico da sofrida vida do vocalista inglês:


Now I'm not looking for absolution
Forgiveness for the things i do
But before you come to any conclusions
Try walking in my shoes
Try walking in my shoes

You'll stumble in my footsteps
Keep the same appointments i kept
If you try walking in my shoes
If you try walking in my shoes
Por fim, no bis, Never Let me Down, um dos primeiros singles oitentistas da banda pareceu fechar a noite, trazendo três décadas atrás de volta, nos primórdios de uma MTV que não existe mais. Mesmo debaixo de uma capa de chuva que me limitava os movimentos, eu podia sentir que, naquele show, eu tinha voltado a ser aquele menino de 17 anos chegando aos poucos na vida adulta e deixando a timidez de lado para dar os primeiros passos desengonçados numa pista de dança. Foi bom ouvir no antigo e novo repertório do Depeche Mode como a banda amadureceu, assim como seus jovens fãs de três décadas atrás.

É bem verdade que, para os mais puristas, o som do Depeche Mode saiu, nos últimos anos, do techno mais dançante para um eletrônico industrial mais pesado, um tanto quanto melancólico, mas com profunda qualidade técnica e poesia, porém pouco pop e muito mais intimista e autoral. É como se a meia idade e os anos de excesso repercutissem no som da banda; mas com sabedoria. Uma das principais características da música do Depeche Mode de 1980, quando surgiu, até hoje, é que eles não perderam um elemento principal em seu som: a sensualidade. Mesmo na reflexiva Cover me, do último álbum, que tem um clipe muito bacana, homenageando claramente David Bowie, com Gahan como um starman, vestido de astronauta, sentado no banco de uma praça, com seu olhar meio que entre o exausto ou o perdido e contemplativo, percebe-se elegância e até um certo erotismo na poesia e som eletrônico, propositadamente psicodélico da canção. É como se Eros e Tanatos fossem chamados para dançar, quando rola um som do Depeche Mode. Desta forma, eles se tornaram senão o único, talvez um dos pouquíssimos grupos na história do rock que souberam conjugar melancolia com tesão ao mesmo tempo. 

Fiz parte, portanto, de um seleto grupo de brasileiros de diversas gerações que foram a São Paulo assistir o show, encantados pela sonoridade de um grupo que, para mim, já havia se tornado lenda. Experiência edificante, com direito a muitos selfies no ambiente urbano paulista, cenário ideal para a apresentação da mescla de sensualidade e dor que para mim representa o Depeche Mode, na sua poesia eletrônica que agrada até mesmo o silêncio. Afinal: 
All I ever wanted
All I ever needed
Is here in my arms
Words are very unnecessary
They can only do harm

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