quinta-feira, 8 de outubro de 2020

EDDIE VAN HALEN: Requiém para um Guitar Hero

Somos naturalmente mal acostumados à perda de nossos heróis. Quando eles partem deste mundo, simplesmente não acreditamos. Em nossa imaginação, no relato do mito, nossos heróis são como seres invencíveis, divinizados, com superpoderes, altamente poderosos, e que não poderiam jamais sucumbir. Daí o espanto, a comoção e a toda a tristeza mundial dos fãs ao saber da morte do guitarrista Eddie Van Halen, comunicada por seu filho, Wolfgang, no Instagram, no último dia 6 de outubro.


Eddie Van Halen morreu  aos 65 anos, de complicações decorrentes de um câncer de garganta. Fumante compulsivo na juventude, era natural vê-lo nos shows fumando um cigarro, enquanto dedilhava loucamente sua guitarra, fabricada por ele mesmo. Van Halen parecia tão elétrico quanto suas guitarras, e parecia difícil ou quase inimaginável vê-lo sucumbir, principalmente diante de um câncer.

Mas por detrás dos ídolos, existem as pessoas, e estas são humanas, frágeis e falíveis, e, assim, Eddie Van Halen corresponde a mais um da triste lista das lendas do rock, que perde a luta contra o câncer e falece não na juventude, como ocorreu com Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Brian Jones, Jim Morrison e Kurt Cobain;  mas sim na terceira idade, vitimadas pela mesma doença cancerígena. É longa a lista, que vai de George Harrisson dos Beatles, Ronnie James Dio, Lou Reed, o baixista Chris Squire do Yes, até Lemmy Kilmister do Motorhead,  passando pelo tecladista Jon Lord do Deep Purple, David Bowie, o baterista Neil Peart do Rush, recentemente, e, agora, Eddie Van Halen. É todo um século XX, da minha geração X, que vai embora. E com eles um pouco de um pedaço da história da música.

Edward Lodewijk Van Halen nasceu na Holanda, em Amsterdã, em 1955, no dia 26 de janeiro (mesma data de nascimento da minha mãe). Filho de um pianista, sua família migrou para os Estados Unidos quando ele tinha seis anos de idade, e, já naturalizado americano, vivendo na cidade de Pasadena, na ensolarada Califórnia, que tanto amou, juntamente com seu irmão Alex, Eddie formou, no final dos anos setenta do século passado, uma das maiores bandas de hard rock da história.

Em 1978, o cenário do rock'n roll estava praticamente morto na América. Se há pouco Elvis Presley havia morrido, obeso e decadente, de ataque cardíaco, após  uma overdose de barbitúricos um ano antes, o punk devastava o continente europeu, o Led Zeppelin já passava por uma série de tragédias pessoais e encerrava suas turnês ao vivo, o Aerosmith estava se separando, com excesso de drogas e brigas internas, e o Lynyrd Skynyrd deixou de ser uma enorme promessa de country rock, após a carreira da banda, outrora promissora, ter sido literalmente destroçada e interrompida precocemente, em um trágico acidente de avião, onde morreu metade da banda e seu principal frontleader. Nesse cenário, nada animador, coube a um rapaz cabeludo e magricelo, hiperativo, que trocou ainda na infância o piano pela guitarra elétrica, para formar um grupo que viria ressuscitar o rock norte-americano, revolucionar o toque de guitarra, e fazer voltar a alegria dos grandes shows de arena. Com a banda batizada com o sobrenome de família, o Van Halen deixou de ser apenas um grupo, para se tornar um conceito, uma febre, uma onda, uma ideologia.  Há pouco mais de quarenta anos atrás, 10 entre 10 adolescentes da área urbana, como eu, já tinham ouvido falar ou ao menos escutado algum dos riffs e das músicas eletrizantes da banda californiana. Hits inconfundíveis como Unchained, Runnin with The Devil, Eruption, Jamie's Cryin', Ain't Talkin' Bout Love e Dance the Night Away faziam com que adolescentes californianos, dos Estados Unidos e depois do mundo inteiro, saíssem da praia direto para as lojas de discos. O grupo novo que surgia fazia também, ao seu estilo, um tributo às velhas gerações do rock, regravando covers em versões totalmente eletrizantes, canções como You really got Me, do Kinks e Pretty Woman, do Roy Orbison.


Foi juntamente com o nascimento da MTV, que o Van Halen, já uma banda profundamente respeitada no meio musical na década anterior e na entrada da década de 80, com três discos (os ótimos Van Halen, de 1978, Van Halen II de 1979 e  Women and Children First, de 1980), chegou ao auge no mesmo ano de lançamento do nome do seu quinto álbum, 1984 (o célebre disco com a capa politicamente incorreta de um anjo querubim segurando um cigarro). É nesse disco que a banda se popularizou nas rádios FMs, nas coletâneas de rock em vinil e em clipes na televisão a clássica música Jump. Nessa canção, fui apresentado ao endiabrado e atlético vocalista loiro, David Lee Roth, ao baterista possante Alex Van Halen, ao baixinho, corpulento e animado baixista Mike Anthony, e, claro, ao todo poderoso guitarrista, principal compositor e band leader, Eddie Van Halen. A célebre entrada triunfal dos teclados tocados por Eddie, que era uma virtuose tanto no piano quanto nas cordas, seguido da batida rítmica de uma música que até hoje é tocada em estádios pelo mundo todo, não me dá vontade de fazer outra coisa, senão do que "jump", literalmente pular ao som de um dos rocks mais animados que já escutei em toda minha vida.


Seguiram-se outros sucessos, como Panama, outra canção onde a guitarra de Eddie se destaca com um riff inconfundível, bem a marca de seu criador, I'll wait, Hot for Teacher e tantas outras. Em 1986, o Van Halen troca de vocalista, e entra como cantor o mais talentoso que o antecessor e multi-instrumentista Sammy Hagar. A fase com Hagar no Van Halen, para os fãs da banda, pode ser comparada as duas clássicas formações do Black Sabatth, com dois lendários vocalistas: Ozzy Osbourne e Ronnie James Dio. O Van Halen com Hagar cantando parecia mais melódico e pop, do que a fase rebelde com Lee Roth, mas em todas as fases, o que importava mesmo era sempre a guitarra de Eddie Van Halen. Se no Queen, a voz e liderança de Freddie Mercury era o que marcou a banda, no Van Halen o que valia era a performance, carisma, técnica e estilo do seu guitarrista. Se Neil Peart, no Rush, era simplesmente um baterista excepcional, um virtuose de seu instrumento acima de qualquer média, Eddie Van Halen não era diferente, sendo considerado o maior guitarrista de rock do mundo, após Jimmy Hendrix.


Como não dizer que o cara era bom, se foi ele quem ensinou Joe Satriani a tocar? Ao desenvolver a técnica do tapping (estilo de tocar em que o músico percute as notas da guitarra ao invés de só dedilhar) que não foi inventada por ele, mas foi sofisticada, Eddie Van Halen levou o rock a outro patamar. Ele dizia que, assim como Carlos Santana, tocar guitarra para ele era o ato mais sublime de prazer e alegria de uma vida, e ele fazia música para as pessoas com satisfação, pois o que importava era que elas sentissem algo ao ouví-lo tocar: de alegria, tristeza, ou mesmo tesão. Ele chegou a criar sua própria guitarra, unindo a sonoridade das duas maiores e mais icônicas fabricantes de guitarras do mundo: a Gibson e a Fender, criando a sua Frankenstrat. Com ela ele tocou em centenas de shows, e sua forma de tocar, valendo-se até de uma furadeira elétrica para produzir show, rendeu um lugar para ele e sua banda no prestigiado Rock'n roll of fame.


É claro que, como eu disse há pouco, todo o grande artista tem os seus fantasmas, e os de Eddie Van Halen foram o álcool, o cigarro e o vício em drogas pesadas como a cocaína. Tudo isso é contado na biografia não autorizada, Eruption, de Paul Brannigan, lançada em 2016, ainda não traduzida em português. Nela, também pode se ver que o controle criativo da banda deu a Eddie muita inimizades, com músicos sendo unânimes em afirmar que, trabalhar com ele com tranquilidade era quase impossível. O ex-vocalista, David Lee Roth, muito mais um ator de formação do que cantor, apesar de ser considerado até hoje, por muitos fãs, como o verdadeiro e maior cantor da banda, disse que Eddie Van Halen nunca gostou dele, e, mesmo tendo se reunido em turnê pela última vez em que se apresentaram ao vivo em 2015, no que resultou no álbum Tokyo in Dome-Live Concert, mesmo após a reunião, após os shows, eles nunca se ligaram. A saída do baixista Mike Anthony, após décadas na banda, sendo substituído pelo filho do guitarrista, Wolfgang, também não foi das menos traumáticas. Gênios podem ser muitas vezes incompreendidos, ou, simplesmente, são uns chatos mesmo, e talvez esse tenha sido o caso do genial (porém mortal) Eddie Van Halen.


De qualquer forma, fica para a história os solos de guitarra de Eddie Van Halen, seu sorriso, enquanto empunha nos braços seu instrumento musical, tocando absurdamente rápido e com extrema técnica, diante da caída de queixo de uma multidão inteira, enquanto se divertia nos dedilhados, brincando com as cordas como se aquilo fosse a coisa mais fácil do mundo. Eddie Van Halen foi, sem dúvida, o herói da guitarra definitivo, e depois dele, muitas, mas muitas gerações de guitarristas deverão se inspirar. Fico aqui, na minha nostalgia, ao me recordar dos momentos felizes que a música do Van Halen me propiciou, sabendo que as canções ficam, e ainda vão animar muita gente por muito tempo, pois o rock não morreu, e nem nunca morrerá. Ao som de Dreams, para mim Eddie Van Halen tornou-se um anjo, a nos convidar a voar higher and higher, leave it all  behind.

sábado, 21 de março de 2020

EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS: Suportar o insuportável

Começo essas linhas com uma sensação de incômodo emocional. Creio que para uma pessoa medianamente sã, não passa batido tanta preocupação, assombro, pânico e, finalmente, tristeza, diante de uma pandemia que estremeceu o planeta, após vinte anos de um ainda jovem século XXI. Do dia pra noite, uma simples sigla médica, o COVID-19, tornou-se familiar ao mundo inteiro, com consequências terríveis.

Vivo um roteiro de um daqueles filmes apocalípticos de terror e ficção científica. A diferença é que, desta vez, faltam apenas os zumbis; mas está tudo ali, numa sequência de fatos que comprovam uma humanidade devastada por uma catástrofe global: isolamento social; estabelecimentos como escolas, bancos, restaurantes, bares, cinemas, academias e igrejas completamente fechados; ruas e praças desertas; gente assustada dentro de carros com lenços ou máscaras hospitalares nos rostos; desemprego e incertezas quanto ao recebimento futuro de salários; aeroportos e fronteiras obstruídos; noticiário na tv e na internet somente tratando do mesmo assunto calamitoso; redes de solidariedade entre pessoas na vizinhança, cantando nas janelas de prédios, rezando ou protestando contra um governo; ausência do Estado, ou quando muito sua presença mal e porcamente, revelando a dificuldade de governantes e gestores públicos em lidar com um mal invisível, desconhecido. Ufa!! Será que o coronavírus veio mesmo para destruir a civilização, ou ao menos o que entendíamos dela, para, depois, erguer-se outra? Será que foi uma enfermidade originada inicialmente na China, a responsável por extinguir de vez a globalização? Ou será que servirá para fortalecê-la?

Vivo, pela primeira vez, uma realidade que eu então só concebia nos filmes, e que deve ser inédita também para meus pais e para as novas gerações que nunca tinham sofrido os efeitos tão intensos de uma pandemia. Como um observador de primeira ordem, infelizmente, sou de uma categoria de indivíduos que está diretamente exposta ao contágio: a dos profissionais da segurança e da saúde pública. Como trabalho em escala de plantão, num serviço essencial de atendimento ao público, não tenho como trabalhar ou permanecer em isolamento, como milhares de pessoas, que voluntariamente se trancaram em casa, ou porque foram pra lá porque seus empregos fecharam. Isso significa que não tenho a menor possibilidade de ter contato físico com meus pais já idosos e fragilizados da saúde. É doloroso! Mas já imagino ter que passar meses sem vê-los pessoalmente, e perder datas importantes, como aniversários, páscoa, dias das mães e dos pais, cujos festejos terão de ser adiados. É da vida! Diante de uma doença com tão elevada carga de contágio e um óbito gigantesco entre os mais velhos e mais frágeis, não me resta outra opção, por questões de sobrevivência. Não se trata apenas de um ato de isolamento, mas também de um ato de amor. Já imaginou o sentimento de culpa, por ter sido você o responsável por contaminar seus pais ou filhos? Sem dúvida, é um desgaste emocional de proporções tão agudas quanto os efeitos maléficos de uma febre, tosse seca ou falta de ar, comuns nos sintomas do coronavírus.

Por falar em amor, imagino que, se podemos pensar o lado otimista de toda catástrofe, podemos perceber o que há de melhor dentro do que há de pior. De ver beleza mesmo na ruína. É ver o quanto as pessoas podem parecer egoístas de um lado: recusar um abraço, um beijo, um aperto de mão em quem merece ou necessita, por medo do contágio; como também podem ser altamente solidárias do outro: enviar livros digitais ou canções pela web, cantar juntos ou fazer orações simultâneas, cada um na janela ou sacada de seu apartamento, ou mesmo simplesmente compartilhar sentimentos nas redes sociais por meio de mensagens de whatsapp, facebook e twitter, ou fazer como eu eu faço, escrevendo neste blog esta pequena crônica da pandemia. Todo o exercício mental é possível e devido, como forma de passar o tempo, diante da falta de opções no dia em que a Terra parou (parodiando a célebre canção de Raul Seixas). 

O que me passa pela cabeça nesses dias difíceis e permeia os sentimentos é a indagação de como suportar. Não se trata de suportar o isolamento, suportar a ansiedade ou medo pelo risco de ficar doente, suportar a possibilidade de que senão você, mas seus entes queridos possam ficar enfermos, suportar as consequências econômicas nefastas de um período tão longo de suspensão das atividades do comércio, indústria e setor de serviços. Trata-se de suportar a incompetência, negligência ou mesmo cumplicidade com a pandemia de gestores, daqueles que são legalmente responsáveis pelo nosso bem-estar, e foram eleitos ou são pagos pelo erário público para resolver o problema, custe o que custar.

Todos aqueles que me conhecem sabem de minhas posições políticas e opções ideológicas. Mesmo aqueles que não conhecem, percebem facilmente ou ao menos desconfiam ao ler meus textos, ou ver minhas manifestações ao vivo nas redes sociais ou em um programa de rádio que participo. Não escondo, portanto, de ninguém, que não gosto de quem nos governa nacionalmente, assim como não gosto de seus familiares e apoiadores, numa oligarquia política acompanhada de um séquito extremista. Faz parte da democracia! Assim como eu podia perceber o asco que alguns integrantes conservadores da classe média tinham de Lula e seu partido, nos tempos áureos da governança petista, eu agora posso perceber o quase irracional e furibundo sentimento de repulsa que muitos liberais e progressistas como eu, tem, da figura do senhor Jair Bolsonaro. 

A diferença é que o ódio que há décadas muita gente nutria por Lula traduzia-se num ódio de classe, e a esquerda brasileira contribuiu, é verdade, para intensificar esse ódio, por meio do discurso do nós X a elite. O bolsonarismo, por sua vez, tira a classe social da dicotomia e no seu lugar coloca a pátria, num velho ufanismo e enrugada xenofobia militarista, saudosa da ditadura. Os verdadeiros patriotas, que apoiam o presidente e sua agenda são, portanto, os que vestem o verde-amarelo, como se todo dia de protesto político fosse dia de jogo da seleção brasileira, e com o uniforme canarinho deu-se o direito (na democracia que tanto defendo), a que babacas ou ignorantes assumidos ocupem as ruas, a praça pública, mesmo em plena evolução da pandemia, para defender absurdos, como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal ou a volta do AI-5. Quer pandemia pior que um vírus mental? 

A diferença do ódio bolsonarista do ódio petista é que, por não se tratar de um ódio a uma classe social específica, o ódio do extremismo de direita brasileiro é direcionado ao outro, a todo aquele que é diferente. É um ódio para todo aquele que não professe o credo conservador, reacionário, ufanista, fanático religioso ou olavista do bolsonarismo; ou seja, ódio contra jornalistas, feministas, negros, indígenas, ambientalistas, homossexuais, sindicalistas, artistas, professores e estudantes universitários, além de militantes de esquerda e de causa progressistas. 

Imagine, portanto, um ódio desses a obliterar a mente de um presidente da república, aquele que é responsável pelos destinos de uma nação, diante de um vírus avassalador, que contamina milhares, matando centenas, num piscar de olhos? Na Itália, novo epicentro global da doença, a ausência de cuidados de contenção nos primeiros dias de contaminação custou caro ao povo italiano, registrando-se mais casos, em termos absolutos, do que a China, onde se iniciou a pandemia. Imagine então uma doença se alastrando em seus primeiros dias num país com um presidente populista, mal avaliado, que parece estar sempre em campanha a governar somente para seu eleitorado, cometendo o gesto irresponsável de cumprimentar uma multidão de apoiadores, enquanto seu ministro da saúde já pregava uma semana antes que contatos físicos deviam ser evitados. Imagine, depois do coronavírus já definitivamente espalhado no Brasil, o filho deputado desse mesmo presidente se valer das redes sociais para insultar a China (isso mesmo! A China!), criando uma crise diplomática sem necessidade, como para desviar o foco da atenção do problema do governo em lidar com a pandemia, tão e simplesmente para criar assunto nas redes e demonstrar o quanto a linha política do governo é subalterna aos Estados Unidos, e ao seu presidente topetudo tão populista quanto. Imagine, ainda, um presidente comprar briga com os governadores, já que o país se trata de uma federação de estados, cada um com sua autonomia administrativa, depois que os chefes do executivo local decidiram tomar medidas para contenção do vírus, já que o presidente titubeante não as tomou. Imagine como suportar isso!!

Difícil de suportar os Bolsonaro e a ideologia política populista que os acompanha. Difícil suportar nesse governo seu ministério, uma verdadeira legião do mal de tipos caricatos, medíocres, mesquinhos, hipócritas ou culturalmente toscos, como os ministros da fazenda, justiça, educação, direitos humanos, meio ambiente e relações exteriores, só pra citar como exemplos iniciais, poupando, por enquanto, uma controvertida e famosa atriz transformada em secretária de cultura. Difícil suportar os males causados por um coronavírus diante de um governo que não elegi, não confio, não dou credibilidade, e, o pior, temo que possa contribuir para que a doença se alastre ainda mais. O exercício de viver no Brasil, desde a eleição de 2018, já era, antes da chegada do coronavírus, um ato de suportabilidade que prescindia de máscaras, luvas, muito álcool gel e equipamento de proteção. Com a chegada do Covid-19 parece que o quadro apocalíptico que já vivíamos (e que alguns incautos não percebiam), apenas se agigantou. O que esperar do futuro, se o coronavírus pode ir embora dos nossos organismos, mas o estrago institucional trazido pelo bolsonarismo e sua mediocridade política pode comprometer muito mais os alicerces da economia, da cultura, das relações sociais e das regras de civilidade entre os brasileiros que sobreviverão à pandemia? 

Não tenho respostas prontas e acabadas. Não tenho sequer respostas, pois persiste a minha indagação: como suportar? É claro que na minha crença cristã, que muito me dá a esperança, se Deus nos trouxe a pandemia, como uma espécie de castigo divino, talvez Bolsonaro e seus asseclas sejam o nosso castigo político. Se não aprendemos a lavar as mãos corretamente durante anos, e fomos obrigados a aprender tardiamente um hábito tão basilar de higiene pessoal, para evitar doenças, talvez aprender a votar seja o próximo estágio de nossa evolução, após o cataclismo que nos atingiu. Enquanto isso, sigo vivendo (ou sobrevivendo), sigo suportando. Senão por mim, pelo futuro do meu filho. Senão pela minha saúde (física e mental), ao menos pela minha dignidade. Por isso escrevo, por isso desabafo. E se essas linhas que acabaram extensas puderam ao menos te distrair no teu isolamento, enquanto o vírus ainda persiste, pelo menos fiz meu papel. Tenhamos todos a força suficiente para suportar!! Nos vemos no final da pandemia! Assim espero!


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CRÔNICA: Nem Regina, nem Malu, nem Helena

Regina é atriz. Disseram-me que Regina vai assumir um ministério. Ministério, não!! Palavra pomposa, que remete a uma missão divina (ministério de Deus, por exemplo), mas sim uma Secretaria. Talvez, no português moderno, não se confunde o termo citado com outro, com a função que se vale da mesma palavra, mas com acento, lembrando uma profissão antiga dos escritórios e gabinetes, que não se limita a receber telefonemas, anotar nomes numa agenda, receber pessoas para conversar com uma autoridade ou levar numa reunião café com uns bolinhos. De qualquer forma, Regina agora é Secretária. Não de qualquer um, mas do povo brasileiro. E seu ingresso no cargo não é em qualquer um, mas na (outrora) respeitada área da Cultura. Há tanto espaço para Regina???
Conheci outra Regina, que foi namorada de um país. Eu mesmo me enamorei dela quando criança. Via minha mãe, diante da TV, encantada com os personagens que ela fazia nas novelas, enquanto brincava com meus carrinhos de brinquedo na sala. Regina era uma heroína de folhetim: ora a donzela injustiçada, ora a vingadora destemida, que encerrava cada história dando a volta por cima, casando-se com seu príncipe encantado. A Regina dessa época era uma bonequinha, cujos sonhos eu teimo em não esquecer.
Mas, depois, à medida que fui crescendo e meu país também, a Regina mudou de nome. Na entrada da adolescência, Regina agora era Malu! E que Malu!! Vivendo eu num condomínio residencial de famílias de militares "bem" casados, na felicidade monogâmica de meu idílio de classe média, com pai e mãe em casa, Malu desafiava a família patriarcal, como mulher independente, sem marido, com filhos, "desquitada". Sim! Porque a palavra " desquite" era quase um tabu, e falar em divórcio, então, apesar de aprovado no Congresso alguns anos antes, por um certo senador Nelson Carneiro, ainda era um bicho de sete cabeças. Foi a primeira vez que ouvi falar na palavra "feminismo". Foi vendo na TV uma Malu premiada, contemporizando com um sujeito cubano, barbudo e de uniforme, chamado Fidel Castro, é que percebi, nos meus olhos de moleque de uns 12 anos, que meu país estava mudando. Vi essa mudança mais de perto na capa de uma revista, já que a televisão não mostrava, um comício enorme, cheio de gente importante, chamado de Diretas Já, que pedia o fim da ditadura, com uma Malu bonita e sorridente como sempre, mas aguerrida como sua personagem na TV, ao lado de um professor que foi candidato a Prefeito de São Paulo, chamado Fernando Henrique, e de um certo metalúrgico, nordestino, de barba e voz grossa, chamado Lula.
Aí, o tempo passou rápido, e a Regina que virou Malu transformou-se em outro personagem: Malu virou Porcina. 
Lembro-me bem da risada que meus pais nordestinos davam ao ver na tela uma viúva perua, cheia de adereços, que imitava o sotaque deles. Mas também me lembrei de momentos tristes, quando estava no corredor de um hospital militar em Brasília, enquanto meu pai padecia num leito, adoentado, recuperando-se de um princípio de AVC que quase o matou. Apesar do ambiente, lembro-me da TV ligada, na recepção, e de como enfermeiros e médicos paravam de vez em quando para ver e gargalhar com cenas da Viúva Porcina na novela, num momento em que a dor e a doença davam lugar à diversão.
O tempo continuou passando, fui crescendo, tornei-me um jovem adulto e universitário. E aquela Regina, que um dia foi Malu, transformou-se em Porcina, e, num curto período, viveu ao som de lambada uma "Rainha da Sucata", chamada Maria do Carmo, e, agora ,era Helena. Por uma década, até o final de um século, vi uma Regina ser chamada de Helena, assim como Virgílio em Troia uma vez chamou por uma princesa do mesmo nome. O nome belo registrado para meninas que nasciam em todo o território nacional, durante uma década, tinha sua inspiração numa heroína agora madura, mas igualmente trágica. Como não chorar diante da história inusitada da mãe quarentona, que engravida juntamente com a filha, e num roteiro dramático bem novelesco, troca no berçário da maternidade seu filho vivo recém nascido pelo da filha, morto ao nascer, a fim de que ela não sofra tamanha perda e luto?Ahhh, Helena (ou será Regina?)!! Como você sabia de emoção e interpretação!!E como suas atuações, na TV ou no teatro, fizeram-lhe rivalizar com a maior atriz que esse país já teve: como a indicada ao Oscar Fernanda Montenegro!
Pois esse meu Brasil, que continuou mudando a cada novela, viu uma Helena se tornar Regina de novo, quando aquele sindicalista e torneiro mecânico dos comícios de décadas atrás, viu chances reais e conseguiu, historicamente, ser eleito Presidente da República. Estranhou-me quando, na véspera da eleição, uma Regina apareceu na TV, no programa do candidato adversário, dizendo que tinha medo, caso a oposição ganhasse. Que medo haveria de existir?? De que país ou governo deveríamos ter medo de mudar, se uma Regina ousou ser Malu, num tempo que os militares ainda governavam, e se de uma ditadura tínhamos saído há décadas, para abraçar uma opção democrática, sufragada nas urnas? Naquele momento, percebi que a Malu não ia mais voltar! Que a Helena pragmática, de classe média, que sacrifica egoisticamente a ética para proteger a própria filha na novela, havia assumido de vez uma personalidade pública, que transpunha, em muito, os folhetins.
Mas a história não parou aí. Num Brasil em constante transformação, quando eu pensava que tínhamos chegado a um certo "fim da história", como havia alardeado antes um economista com sobrenome japonês, passamos por uma ilusão trabalhista, um fenômeno de otimismo e commodities chamado Luiz Inácio Lula da Silva, e vimos com sua sucessora, uma das piores crises desde o Estado novo ou os sequiosos anos que antecederam o golpe civil-militar. Por fim,com manifestações que lotaram as ruas do país depois de um controvertido processo de impeachment, vi uma agora idosa Regina aparecer de novo, celebrando a deposição de uma presidente democraticamente eleita. Até aí, tudo bem!! Mas......e depois??!!!!
Deparo-me hoje, num Brasil que restabeleceu pelas urnas o autoritarismo, de ministros (ministros, não, secretários!), que reproduzem na maior cara de pau discursos de ministros da propaganda nazista, e de como equivocadas ministras evangélicas pregam a abstinência sexual como panaceia para a saúde pública, ou de ministros da Educação, que além de escrever errado, tem ojeriza a professores e universidades e fazem um simples exame nacional de cursos se tornar um vexame nacional. Percebo, nisso tudo, que a Regina do passado agora quer ser mais Regina do que nunca. Mas, Regina do governo! Regina de uma alternativa criptofascista.
Pergunto-me se essa Regina tem alguma coisa haver com a Regina dos novelões que eu via com minha mãe, há mais de quarenta anos, ou com a Malu forte vigorosa e independente de minha adolescência, ou mesmo com a Helena pueril de minha vida adulta. Pergunto-me do direito sagrado, inalienável e constitucionalmente assegurado a cada um, como liberdade individual, que é o direito de mudar, mesmo que seja pra pior! Mas, sobretudo, pergunto-me em plenos e tenebrosos tempos de bolsonarismo: é isso mesmo???
Diante da resposta e aceitação de Regina a um projeto de governo e poder que só me faz vomitar, lembro-me de uma celebre frase do dramaturgo Konstantin Stanislawsky sobre a profissão do ator: "aprendam a amar a arte em vocês mesmos e não vocês mesmo na arte!". Diante de uma atriz que há décadas nos encantou e que agora não se sabe se é uma atriz protagonizando uma burocrata ou uma burocrata protagonizando uma atriz, será que Regina ama a si própria ou a sua arte?? Desse roteiro, num filme de terror chamado governo Bolsonaro, ainda se espera um final feliz, como todo final de novela!!



sábado, 11 de janeiro de 2020

R.I.P-Morreu Neil Peart, do Rush

Eu não esperava começar a escrever no início de 2020, após meses de problemas pessoais e um bloqueio criativo, sobre a morte de um dos maiores ídolos da música popular mundial. Mas não faria sentido para mim ficar sem me expressar, diante da morte do músico Neil Peart, letrista e baterista da banda canadense Rush.
Se houver no céu uma nuvem composta de pecadores redimidos por sua arte, pelos maiores bateristas da história do rock, ela deve conter, com certeza, com figuras como o beberrão John Bonham, do Led Zeppelin, ou o viciado em cocaína e ansiolíticos, Keith Moon, do The Who, ambos falecidos muito jovens. Mais bem comportado, Peart, que agora é outro membro ilustre desses espíritos que ascendem, teve trajetória diferente. Vitimado por um câncer no cérebro, o baterista do Rush acabou sucumbindo à doença no último dia 7 de janeiro, sendo que sua morte só foi anunciada publicamente três dias depois, num fatídico dia 10.
Se eu fosse brincar com os números e elaborar um top ten do porquê gostar do Rush e a razão da minha estima (além de profunda tristeza) com a morte do citado músico, preciso relembrar 10 coisas que fizeram com que o Rush e Neil Peart ficassem pra sempre nos corações e mentes da minha geração e de outras que se propuseram a curtir o som da banda, além de experiências muito pessoais e bacanas, que fizeram com que o grupo de rock canadense se tornasse parte da minha trajetória de vida.

1.Virtuosismo: o Rush fez história e ficou conhecido mundialmente por sua virtuose.  Não é à toa que a banda é referência para estudantes de música e instrumentistas, no mundo inteiro. Tendo músicos habilidosíssimos, que abusavam de arpejos, acordes, melodias apuradas, que iam do hard rock ao progressivo, passando a flertar com o eletrônico no decorrer dos anos, mas com uma originalidade absurda em sua sonoridade, o Rush firmou de vez seu lugar no panteão dos deuses do rock; muito por contar com o talento vocal e habilidade no contrabaixo de Geddy Lee, a virtuose da guitarra com Alex Lifeson, que transformava os efeitos elétricos do pedal de sua guitar em verdadeiras criações sinfonicas e não apenas num realce nós riffs das cordas de um violão, uma Fender ou Gibson. Entretanto, o som do Rush não seria completo e não ficaria na história, não fosse a participação de Peart. Escute-se, por exemplo, a antológica  Tom Sawyer, do álbum Moving Pictures, de 1981, até hoje a canção de maior sucesso comercial do Rush. Não obstante não fazer parte da trilha sonora do famoso seriado Profissão Perigo, a mistura de hard rock com som psicodélico, ficou conhecida no Brasil como vinheta de apresentação das aventuras do personagem MacGyver, nos meus já longuincos anos oitenta. Foi pela primeira vez, no começo de minha adolescência, que eu tinha contato com o Rush. Resultado: paixão absoluta. Em Tom Sawyer você já consegue vislumbrar o estilo original, complexo e altamente diferenciado de Niel Peart: a intensidade das batidas combinadas com extrema agilidade e rapidez, com alterações rítmicas e mudanças de compasso quase impossíveis de se fazer, em viradas épicas. A partir dali comecei a ouvir os discos e conhecer a trajetória da banda e de seu idílico baterista. 

2. Superação: a história de vida de Neil Peart poderia muito bem servir como testemunho em qualquer igreja ou servir de tema para exposição de palestras de autoajuda. Talvez não só pelo talento musical, como também pelas tragédias pessoais, que a vida do Rush e de seu baterista estejam indissolúvelmente ligadas. A banda quase acabou, no comecinho deste século, quando Neil perdeu a única filha, Selena, de 19 anos, morta em um acidente de carro, quando ia para a faculdade, no Canadá. Meses após foi a vez da própria esposa do baterista falecer, após 23 anos de casamento, vítima de um câncer repentino. Já seria motivo para um homem comum enlouquecer ou perder a fé, e, diante de tanto sofrimento, Peart pediu um tempo aos seus companheiros de banda, e saiu numa motocicleta percorrendo as estradas dos Estados Unidos, de uma América profunda, em busca de si mesmo. Foi numa dessas andanças que ele parou na casa de campo de um amigo fotógrafo, e lá conheceu a bela e jovem assistente do amigo, que se tornaria sua nova esposa. Um ano depois nasceria a segunda filha do baterista do Rush: Olivia. Nessa mesma época, Neil Peart decide retornar ao seu grupo com força total e produzem Vapor Trails, um dos melhores discos do Rush produzido em anos, que resultou numa turnê global, que chegou ao Brasil pela primeira vez, quando eu tive o privilégio, de assistir ao vivo, um show dessa icônica banda. Sorte minha!! Quer superação maior do que essa?

3.Humildade: diferentemente de outros astros da música, Neil Peart e seus companheiros de banda eram avessos ao estrelato, tinham uma relação muito próxima e sempre simpática com os fãs e apresentavam um estilo mais família, totalmente comprometido com a música, diferente dos Beatles e do engajamento político de um John Lennon, ou dos escândalos com drogas, algazarras em hotéis e mulheres, como celebrizou-se a carreira dos Rolling Stones. O Rush com Neil Peart era uma banda global, invejada por muitos, e Pearl sabia disso. Mas nem por conta disso os caras se achavam os fodões.  Por vezes, em entrevistas, com sua personalidade contida, Neil Peart evitava contar vantagem, apesar de ser considerado por todas as revistas especializadas como um dos maiores bateristas do mundo. Pearl admirava os bateristas de jazz, que, para ele, eram verdadeiros mestres. Além de ter o saudoso John Bonham como referência, Peart dizia se inspirar no baterista da era do Swing, Buddy Rich, conhecido pela intensa habilidade e rapidez no mundo jazzistico. Quando ia receber prêmios de música, por sua contribuição cultural, muitas vezes ele fazia piadas consigo próprio para descontrair, tão deslocado que ele se sentia por não se achar merecedor do título de hors concours em termos de musicalidade; ou seja, incomparável, insubstituível.

4.Compromisso: a dedicação de Peart e de seus companheiros de banda com a música era inegável, traduzida em diversos álbuns, com composições longuíssimas, de músicas com até 12 minutos de duração, diversos álbuns ao vivo e uma intensidade de trabalho que rendeu a Peart sérios problemas de saúde, além de um câncer, face o esforço repetitivo na bateria e a passagem da idade, desenvolvendo uma tendinite crônica e inflamações nos ombros, que às vezes o impossibilitava de tocar. Imagina-se o quanto foi difícil para Peart a decisão da banda em encerrar suas atividades em 2016, quando ele já havia sido diagnosticado com a doença que o mataria, e numa lacônica nota, o vocalista e baixista Geddy Lee limitou-se a dizer que o Rush já tinha dado sua contribuição no mundo da música por mais de 40 anos, e agora era hora de descansar. Um descanso merecido junto à família para quem se comprometeu tanto, com sua música, seus fãs e admiradores.

5.Apego à literatura e à ficção científica: para um bom nerd ou geek (como chamam hoje), gostar de Rush é se assumir publicamente como aquele garota ou garota meio intelectualizado, muitas vezes vítima de bullyng, desengonçado na adolescência, que, assim como fez um magricelo e narigudo Geddy Lee e um corpulento e alto Alex Lifeson, decidiram montar uma banda, aproveitando os recursos que tinham, saindo das ruas de um subúrbio em Ontário para se tornarem algumas das maiores lendas que o rock conheceu. É sabido que Neil Peart era tão importante para o grupo, porque ele não era apenas um exímio ou miraculoso baterista, mas também o principal letrista, compositor da banda. Enquanto que Lee e Lifeson preocupavam-se com a parte mais instrumental, Peart intoduziu nas canções do Rush componentes líricos e até mesmo pessoais, mesclando isso ao seu gosto pela literatura, apego à ficção científica e mesmo singelos relatos autobiográficos, como a magnética Red Barchetta, cuja letra,  tratando do poético sonho de um adolescente de pilotar na estrada o carro vermelho do tio, servia como pretexto para se falar sobre passagem do tempo e desilusão. Apreciador da velocidade, carros e motos, Peart compôs a letra da canção Ghost Rider, como forma de exorcizar o passado traumático de tragédias familiares, simbolizando como redenção a combinação de asfalto, tempo e pilotagem.

6.Suntuosidade: era impressionante como apenas três carinhas, numa formação básica de banda de garagem (guitarra, baixo e bateria), conseguiram fazer no palco um verdadeiro rock de arena, lotando estádios pelo mundo todo e produzindo diversos álbuns ao vivo, aproveitando-se com inteligência da tecnologia existente. Recordo-me quando fui assistir o show da banda no Brasil, em São Paulo, no ano de 2002, no estádio do Morumbi, da turnê do disco Vapor Trails, a mesma turnê que produziu o antológico álbum ao vivo, Rush in Rio. Era a primeira vez que os canadenses vinham ao Brasil, e além de poder presenciar esse momento histórico, guardo nos olhos e na memória a chuva fina, uma verdadeira garoa que descia sobre a metrópole paulistana e que deixava o público com mais frio e molhado, valendo-se apenas de uma capinha plástica de chuva. O clima adverso não foi suficiente para dispersar cerca de 100 mil pessoas que estavam no local, contando não apenas as arquibancadas donde eu estava, mas uma multidão que se espalhava pelo gramado. Era um mar de gente que, hipnoticamente, ficou três horas e meia ouvindo o som dos caras, levando pelo menos mais uma hora pra sair do local com um sorriso no rosto, sem se incomodar com o trânsito, o congestionamento e a superpopulação paulistana.

7. Harmonia: a música do Rush traduz-se numa completude, numa harmonia musical que deve muito ao talento e criatividade de Neil Peart. Como não viajar ao som da saga instrumental de La Vila Strangiato, ou sentir que se está ouvindo uma pujante sinfonia de Wagner, onde no lugar de valquírias, descem dos céus entre relâmpagos bárbaros, ao som da estrepitante YYZ?! O Rush, banda formada em 1969, já começou como um grupo competente, mas só atingiu os céus da glória com o ingresso de Peart, em 1974. A partir dali, a grandiloquencia das pretensões rítmicas da dupla Lee/Lifeson iria encontrar sua devida materialização com o talento nas baquetas de Neil Peart. 

8.Rock de verdade: desde Fly by Night, o primeiro e clássico disco da banda, com uma coruja do ártico na capa, passando por Moving Pictures, até chegar ao derradeiro Clockwork Angels, o Rush, com Neil Peart, diante do esvaziamento de fãs do gênero, nos últimos anos, pode ser definido (apesar das críticas de alguns), como rock clássico. Se eu for colocar, nesse estilo genérico, um mundão de gente, claro que posso incluir o Led Zeppelin, a british invasion dos Beatles, Stones e The Who, e, claro, bandas seminais como Queen e Pink Floyd. A lista é grande, e, claro, o Rush está nela; mas, repito, tal fama só se deu por conta de Neil Peart. Prova disso é que as radios rock do mundo inteiro jamais terão sua programação respeitada se não incluírem as músicas do Rush, especialmente aquelas que foram celebrizadas com o baterista recentemente morto nos créditos. O Rush de Neil Peart demostrou para populares e a acadêmicos que rock pode ser de qualidade, riqueza musical, qualidade técnica e lirismo, somando-se com uma capacidade única de conseguir impressionar. Um exemplo cabal disso é escutar a formidável  Spirit of Rádio, do álbum Permanent Waves. Como não vbrae e imaginar uma multidão vibrando naquela mistura rítmica de rock de arena com reggae?! O Rush de Neil Peart foi isso: uma banda impressionante, de um músico impressionante. Assim como foi o Barão Vermelho com Cazuza, o Legião Urbana com Renato Russo, o Sodastereo com Gustavo Cerati e o Queen com Freddie Mercury. É a prova de que gênios morrem e suas bandas acabam, mas o legado do rock não finda jamais.

9.Respeito: como epílogo de minha homenagem a mais um ídolo que vai cedo, manifesto meu profundo respeito não apenas ao célebre músico canadense que partiu, aos seus familiares, companheiros de banda e amigos, mas principalmente aos fãs do Rush, em todo o globo, com um especial carinho aos fãs brasileiros. A música do Rush, e a bateria infalível de seu principal integrante, merecem respeito não apenas por serem caras que tocaram muito, mas muito bem, mas principalmente por terem inaugurado uma cultura própria no rock, tornando-se lendas da música por sua criatividade e profunda originalidade. Esses músicos e seu integrante morto são respeitados por serem artistas com "A" maiúsculo, e, diante de tanta porcaria que se escuta hoje, principalmente nas rádios brasileiras, o Rush de Neil Peart tem uma história que nós temos que curvar a cabeça em reverência, com certeza.

10.Gratidão: por fim, sou grato, muito grato a Deus por ter colocado no mundo há mais de duzentos anos um Mozart, e ter me dado a benção de conhecer um semelhante, ao vivo, no começo do século XXI, realizando um sonho de juventude, de ver tocar pessoalmente um daqueles músicos que eu adorava ouvir no meu quarto, na minha vitrolinha de vinil, que muita coisa tocou! Obrigado, Neil Peart! Por ter existido! E agradeço aos anjos, por terem recebido aquele que pode tocar uma batera celestial magistral, no Dia do Juízo Final, quando as nuvens se abrindo, tocando, (por que não), a entrada de Bastille Day, do álbum Carres of Steel! Valeu, Neil!!!

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