quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CRÔNICA: Nem Regina, nem Malu, nem Helena

Regina é atriz. Disseram-me que Regina vai assumir um ministério. Ministério, não!! Palavra pomposa, que remete a uma missão divina (ministério de Deus, por exemplo), mas sim uma Secretaria. Talvez, no português moderno, não se confunde o termo citado com outro, com a função que se vale da mesma palavra, mas com acento, lembrando uma profissão antiga dos escritórios e gabinetes, que não se limita a receber telefonemas, anotar nomes numa agenda, receber pessoas para conversar com uma autoridade ou levar numa reunião café com uns bolinhos. De qualquer forma, Regina agora é Secretária. Não de qualquer um, mas do povo brasileiro. E seu ingresso no cargo não é em qualquer um, mas na (outrora) respeitada área da Cultura. Há tanto espaço para Regina???
Conheci outra Regina, que foi namorada de um país. Eu mesmo me enamorei dela quando criança. Via minha mãe, diante da TV, encantada com os personagens que ela fazia nas novelas, enquanto brincava com meus carrinhos de brinquedo na sala. Regina era uma heroína de folhetim: ora a donzela injustiçada, ora a vingadora destemida, que encerrava cada história dando a volta por cima, casando-se com seu príncipe encantado. A Regina dessa época era uma bonequinha, cujos sonhos eu teimo em não esquecer.
Mas, depois, à medida que fui crescendo e meu país também, a Regina mudou de nome. Na entrada da adolescência, Regina agora era Malu! E que Malu!! Vivendo eu num condomínio residencial de famílias de militares "bem" casados, na felicidade monogâmica de meu idílio de classe média, com pai e mãe em casa, Malu desafiava a família patriarcal, como mulher independente, sem marido, com filhos, "desquitada". Sim! Porque a palavra " desquite" era quase um tabu, e falar em divórcio, então, apesar de aprovado no Congresso alguns anos antes, por um certo senador Nelson Carneiro, ainda era um bicho de sete cabeças. Foi a primeira vez que ouvi falar na palavra "feminismo". Foi vendo na TV uma Malu premiada, contemporizando com um sujeito cubano, barbudo e de uniforme, chamado Fidel Castro, é que percebi, nos meus olhos de moleque de uns 12 anos, que meu país estava mudando. Vi essa mudança mais de perto na capa de uma revista, já que a televisão não mostrava, um comício enorme, cheio de gente importante, chamado de Diretas Já, que pedia o fim da ditadura, com uma Malu bonita e sorridente como sempre, mas aguerrida como sua personagem na TV, ao lado de um professor que foi candidato a Prefeito de São Paulo, chamado Fernando Henrique, e de um certo metalúrgico, nordestino, de barba e voz grossa, chamado Lula.
Aí, o tempo passou rápido, e a Regina que virou Malu transformou-se em outro personagem: Malu virou Porcina. 
Lembro-me bem da risada que meus pais nordestinos davam ao ver na tela uma viúva perua, cheia de adereços, que imitava o sotaque deles. Mas também me lembrei de momentos tristes, quando estava no corredor de um hospital militar em Brasília, enquanto meu pai padecia num leito, adoentado, recuperando-se de um princípio de AVC que quase o matou. Apesar do ambiente, lembro-me da TV ligada, na recepção, e de como enfermeiros e médicos paravam de vez em quando para ver e gargalhar com cenas da Viúva Porcina na novela, num momento em que a dor e a doença davam lugar à diversão.
O tempo continuou passando, fui crescendo, tornei-me um jovem adulto e universitário. E aquela Regina, que um dia foi Malu, transformou-se em Porcina, e, num curto período, viveu ao som de lambada uma "Rainha da Sucata", chamada Maria do Carmo, e, agora ,era Helena. Por uma década, até o final de um século, vi uma Regina ser chamada de Helena, assim como Virgílio em Troia uma vez chamou por uma princesa do mesmo nome. O nome belo registrado para meninas que nasciam em todo o território nacional, durante uma década, tinha sua inspiração numa heroína agora madura, mas igualmente trágica. Como não chorar diante da história inusitada da mãe quarentona, que engravida juntamente com a filha, e num roteiro dramático bem novelesco, troca no berçário da maternidade seu filho vivo recém nascido pelo da filha, morto ao nascer, a fim de que ela não sofra tamanha perda e luto?Ahhh, Helena (ou será Regina?)!! Como você sabia de emoção e interpretação!!E como suas atuações, na TV ou no teatro, fizeram-lhe rivalizar com a maior atriz que esse país já teve: como a indicada ao Oscar Fernanda Montenegro!
Pois esse meu Brasil, que continuou mudando a cada novela, viu uma Helena se tornar Regina de novo, quando aquele sindicalista e torneiro mecânico dos comícios de décadas atrás, viu chances reais e conseguiu, historicamente, ser eleito Presidente da República. Estranhou-me quando, na véspera da eleição, uma Regina apareceu na TV, no programa do candidato adversário, dizendo que tinha medo, caso a oposição ganhasse. Que medo haveria de existir?? De que país ou governo deveríamos ter medo de mudar, se uma Regina ousou ser Malu, num tempo que os militares ainda governavam, e se de uma ditadura tínhamos saído há décadas, para abraçar uma opção democrática, sufragada nas urnas? Naquele momento, percebi que a Malu não ia mais voltar! Que a Helena pragmática, de classe média, que sacrifica egoisticamente a ética para proteger a própria filha na novela, havia assumido de vez uma personalidade pública, que transpunha, em muito, os folhetins.
Mas a história não parou aí. Num Brasil em constante transformação, quando eu pensava que tínhamos chegado a um certo "fim da história", como havia alardeado antes um economista com sobrenome japonês, passamos por uma ilusão trabalhista, um fenômeno de otimismo e commodities chamado Luiz Inácio Lula da Silva, e vimos com sua sucessora, uma das piores crises desde o Estado novo ou os sequiosos anos que antecederam o golpe civil-militar. Por fim,com manifestações que lotaram as ruas do país depois de um controvertido processo de impeachment, vi uma agora idosa Regina aparecer de novo, celebrando a deposição de uma presidente democraticamente eleita. Até aí, tudo bem!! Mas......e depois??!!!!
Deparo-me hoje, num Brasil que restabeleceu pelas urnas o autoritarismo, de ministros (ministros, não, secretários!), que reproduzem na maior cara de pau discursos de ministros da propaganda nazista, e de como equivocadas ministras evangélicas pregam a abstinência sexual como panaceia para a saúde pública, ou de ministros da Educação, que além de escrever errado, tem ojeriza a professores e universidades e fazem um simples exame nacional de cursos se tornar um vexame nacional. Percebo, nisso tudo, que a Regina do passado agora quer ser mais Regina do que nunca. Mas, Regina do governo! Regina de uma alternativa criptofascista.
Pergunto-me se essa Regina tem alguma coisa haver com a Regina dos novelões que eu via com minha mãe, há mais de quarenta anos, ou com a Malu forte vigorosa e independente de minha adolescência, ou mesmo com a Helena pueril de minha vida adulta. Pergunto-me do direito sagrado, inalienável e constitucionalmente assegurado a cada um, como liberdade individual, que é o direito de mudar, mesmo que seja pra pior! Mas, sobretudo, pergunto-me em plenos e tenebrosos tempos de bolsonarismo: é isso mesmo???
Diante da resposta e aceitação de Regina a um projeto de governo e poder que só me faz vomitar, lembro-me de uma celebre frase do dramaturgo Konstantin Stanislawsky sobre a profissão do ator: "aprendam a amar a arte em vocês mesmos e não vocês mesmo na arte!". Diante de uma atriz que há décadas nos encantou e que agora não se sabe se é uma atriz protagonizando uma burocrata ou uma burocrata protagonizando uma atriz, será que Regina ama a si própria ou a sua arte?? Desse roteiro, num filme de terror chamado governo Bolsonaro, ainda se espera um final feliz, como todo final de novela!!



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