A palavra "sebo", apesar da denotação grosseira, faz referência aos primeiros estabelecimentos de livros usados, surgidos na Europa do Renascimento e fundados no Rio de Janeiro, no final do século XIX. Para alguns, o termo foi empregado para designar lugares que ainda não tinham luz elétrica, e a cêra das velas acesas para leitura acabava engordurando as páginas dos livros. Outros, consideram que sebo é um termo empregado para definir um livro velho, que já passou por várias mãos. De qualquer forma, sempre gostei desses lugares simples, meio empoeirados, onde a passagem do tempo congelou, entre livros, discos, revistas, gibis e coleções antigas. Até me lembro de um personagem dos livros do escritor Garcia Rosa, o delegado Espinoza, o qual me identifico, que em suas estórias, gostava de sair da delegacia e perambular pelos sebos. Depois das bibliotecas, os sebos para mim são os verdadeiros templos da cultura.
Eu já frequentava sebos atrás de estórias em quadrinhos que eu colecionava, no antigo Mercado de São Brás, em Belém do Pará, uma das cidades que residi na infância. Quando cheguei em Natal, nos meus momentos de solidão após o colégio, e, como disse, tentando me acostumar com a nova realidade e a nova cidade, descobri no bairro do Alecrim um simpático e pequeno sebo, ocupado então por um rapaz fortão e barbudo, chamado Jácio Torres. A memória já falha e não me lembro do nome do sebo na época; mas recordo que logo fiz amizade com aquele sujeito simpático, meio bonachão, com seus óculos de grau e jeito meio hippie, que com extrema simplicidade e simpatia atendia seus clientes, que logo percebi ser formada por uma fauna o mais diversificada de indivíduos de todas as partes da cidade; desde intelectuais, jornalistas, estudantes, até funcionários públicos, passando por artistas, donas de casa proletarizadas, que procuravam livros didáticos mais baratos, para atender à demanda de material escolar para seus filhos, assim como estudantes de cursinhos vestibulares ou concursos, procurando material para estudos.
Foi no sebo de Jácio que conheci desde coleções completas de obras de gênios da música, de composições clássicas de Bach a Mozart, até discos de Jimmy Hendrix, Bob Dylan e Janis Joplin. Vi e adquiri livros raríssimos, como uma edição encadernada, dos anos quarenta, em dois volumes, de Crime e Castigo, de Dostoievski, com sua capa dura velha e páginas amareladas, que ainda guardo na minha estante, sob os protestos de minha esposa, que não gosta que eu guarde coisas velhas (vá entender as mulheres!). De qualquer forma, com o passar dos anos, acompanhei a evolução de Jácio, junto com seus familiares, no negócio de sebos, e à medida que eles foram desenvolvendo seu trabalho, também fui me afastando. A última boa recordação que tenho daquele período, foi quando Jácio, acompanhado da esposa Vera, migraram para a Cidade Alta, e montaram um sebo cujo nome viria a se tornar antológico na cena cultural natalense: o Cata Livros.
Percebi que com os sebos, Jácio e seus familiares demonstravam não apenas um tino comercial para a venda de livros usados, mas sim uma verdadeira paixão pela cultura, e pelo resgate da memória intelectual, através da gostosa tarefa de viver entre amontoados de livros, discos e vídeos. Além de sua amável esposa, Vera, conheci e fiz amizade com os irmãos de Jácio (Janilson e Jailton, se não me falha a memória, que durante anos, mantiveram juntos um sebo no campus da UFRN), conheci o patriarca, Seu Torres, com seu sebo simpático montado no Camelódromo da Cidade Alta, assim como a irmã de Jácio, Jane. Fiz amizade de forma cordial e espontânea com todos, e os guardo na memória assim como guardo os livros, e os bons momentos que eles me fizeram recordar da juventude, passeando por entre os sebos, folheandos livros e revistas. Fazia um bom tempo que eu não tinha notícias deles.
Eis que nessa semana, enquanto eu arrumava minhas caixas de livros, ainda não retirados de minhas viagens, escuto minha mãe falando de um sebo que havia pegado fogo, num triste fato comunicado pela imprensa e cujo dono estava aceitando doações. Num primeiro momento, não me dei conta que se tratava do sebo do Jácio, até ler uma reportagem do jornal Tribuna do Norte. Fiquei pasmo e entristecido com o infortúnio que acometeu o antigo amigo da epopéia sebista, e antes de me dirigir até o local onde ele se encontra, decidi escrever esta homenagem. Diante das cinzas e da ruína que parte os corações, vendo tantos livros, obras raras e manuscritos destruídos, escrevendo neste blog, resolvi fazer o meu tributo ao Cata Livros e ao legado da família Torres.
Entendo que o Rio Grande do Norte (assim como todos os estados e regiões do Brasil) tem sua riqueza e diversidade cultural preservadas não por iniciativa do poder público (que, por sinal, nesse quesito é medíocre), mas sim pelo empenho carinhoso e pela dedicação de pessoas verdadeiramente devotadas à preservação da memória artística e intelectual de nosso povo, como são sujeitos do perfil de Jácio Torres. Estou inteiramente solidário a Jácio e sua família quanto à tragédia que se acometeu sobre sua maior paixão: os livros. Como também sou um apaixonado por livros, sinto na pele e no coração a tristeza de ver tanto trabalho desperdiçado sob as chamas de um trágico acidente, mas esse coração também se comove com as centenas de pessoas que estão indo ao encontro do sebista potiguar, doando livros, vindos de todas as regiões do país, refazendo o acervo do Cata Livros, numa campanha belíssima que faz meus olhos marejarem. Sei do bom humor, do otimismo e da disposição para o trabalho de Jácio e de sua esposa Vera, e tenho certeza de que, logo, em bem curto espaço de tempo, se o irrecuperável não pode mais ser resgatado, ao menos obras belíssimas Deus irá operar na vida desse simpático casal, montando um acervo de livros e discos muito melhor e maior, e de mais beleza ainda, pois aquilo que é construído com paixão não morre nunca. Convido nesse momento a todos, que leem este blog ou que tiverem notícia do que aconteceu com o sebo Cata Livros, que, se desejarem, efetuem também suas contribuições, doando livros, discos, filmes e o que acharem de mais interessante, para renovar esse importante espaço cultural de Natal. É só pegar o número dos telefones que tem na foto acima (lembre-se que o DDD de Natal é 84).Acredito que não é apenas um homem trabalhador como Jácio que merece isso, mas todo o povo potiguar.
Em relação ao sentimento pessoal que tenho pela perda do amigo Jácio, parodio aqui o eterno Raul Seixas, um dos músicos preferidos do sebista, cantando junto com ele que não desanime, e bola pra frente, pois: sonho que se sonha só, é apenas um sonho que sonha só; mas sonho que se sonha junto é realidade. Um grande abraço, Jácio e Vera!!! Boa sorte e que Deus os abençoe!!!