segunda-feira, 13 de junho de 2011

POLÍTICA: Qual a relação entre a queda de Palocci e a aplicação da teoria dos sistemas de Luhmann?

Mediante os comentários de, praticamente, todos os meios de comunicação do Brasil acerca da queda do ministro chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, pelos motivos mais do que óbvios de suspeita de enriquecimento indevido (ou ao menos acelerado) no tempo em que era apenas um deputado federal, envolvido na sucessão de Lula, me veio a ideia de introduzir uma discussão sociológica sobre o fato, utilizando um pouco dos referenciais teóricos que empreguei em minha tese de doutorado, sem, contudo, querer entediar o leitor ou transformar este idílico espaço virtual num local para profundas e prolíficas reflexões acadêmicas que só interessariam a mim mesmo. Na verdade,o que pretendo é tentar discorrer em linhas simples, e numa linguagem acessível, alguns pressupostos da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, atribuída ao sociológo alemão Niklas Luhmann (1927-1998).

O professor Luhmann,para muitos,é considerado um dos maiores pensadores das ciências sociais do século XX, e, apesar de incompreendido por alguns, que chegam a considerar sua teoria por demais formalista ou conservadora,eu, particularmente, como bom estudante de pós-graduação, fiquei seduzido pelo apelo dos chamados "sistêmicos",  e creio que é chegada a hora de prestar a devida homenagem a um teórico que já visitou, conheceu e admirou o Brasil, aplicando sua teoria na realidade brasileira, cabendo aqui uma homenagem a Luhmann através de comentários à crônica política nacional, valendo-se de seu referencial teórico, mormente em relação aos últimos controversos acontecimentos envolvendo o ex-chefe da Casa Civil.

Luhmann retira do conceito de "autopoiese", encontrado na biologia através dos estudos do bióloco chileno, Humberto Maturana, a chave para explicar a formação da sociedade e a dinâmica das relações sociais. Autopoiese significa, ao pé da letra, autoprodução, autorreprodução ou, para alguns, simplesmente, a autonomia de um sistema ou forma de vida de se manter por si próprio. Isso implica em dizer que determinados seres vivos tem vida própria, como as plantas, e assim como na natureza, na sociedade, pela teoria de Luhmann, os distintos sistemas sociais (econômico, político, jurídico, artístico, religioso), tem sua autonomia em relação a um e outro, com suas operações internas, códigos e programações próprios. Luhmann entendia que cada sistema funciona sob uma espécie de código binário, um vetor que orientasse as comunicações(relações sociais) que se dão no interior de cada sistema, baseado numa constante e sistemática diferenciação, como, por exemplo: no sistema econômico, em que o código é baseado na diferenciação entre ter X não ter; ou no sistema religioso, baseado no código sagrado X profano. O código serve para diferenciar o sistema dos demais sistemas sociais, uma vez que cada sistema permanece fechado nas suas próprias relações internas, em relação aos outros, como condição para que exista como sistema social. Assim, a diferenciação é fundamental para que um sistema seja reconhecido como distinto por outro sistema social. Entretanto, os sistemas não permanecem fechados sem se comunicar, pois acontece o que Luhmann define como "acoplamento estrutural", na medida em que um sistema se abre, a fim de proporcionar um canal de comunicação com outro sistema.

Traduzindo numa linguagem mais simples, a reação de Palocci diante das acusações de ter multiplicado seu patrimônio mais de vinte vezes, num tempo extremamente rápido, não foi suficiente para mantê-lo no cargo, não obstante não terem prosperado denúncias no aspecto jurídico, uma vez que todos os pedidos de ajuizamento de ação contra o ex-ministro foram arquivados pelo procurador-geral da república. Para explicar perante a opinião pública seu ganho espantoso de patrimônio, que o tornou um homem rico em menos de cinco anos, Palocci preferiu se valer do código lícito X ilícito presente no sistema do direito, valendo-se de argumentos jurídicos acerca do sigilo de suas transações comerciais com seus clientes, nas suas atividades de consultoria, sem conceber que as regras de direito privado, atinentes as suas atividades como consultor, não eram consentâneas com àquelas relacionadas com sua atividade de deputado federal, homem público sujeito não apenas às normas de direito público, mas também dependente de um sistema moral que se destaca do sistema jurídico, mas que se acopla ao sistema político. Em outras palavras, juridicamente Palocci se safou, politica e moralmente, não.

O ex-ministro Palocci não compreendeu, se eu for usar a terminologia luhmanniana, os acoplamentos necessários entre o sistema político e o sistema jurídico para que ele pudesse unir a virtu e fortuna tão presentes em sua carreira política desde a Prefeitura de Ribeirão Preto até chegar a Casa Civil, e que adornam o pensamento de Maquiavel acerca do político sagaz e astuto que soube aproveitar as boas oportunidades que lhe vieram. Ao invés disso, a imagem que permaneceu do ex-ministro para a opinião pública foi a de um político que cedeu às tentações do poder, principalmente no que tange ao enriquecimento e à acumulação de capital, em virtude dos bons contatos que estabeleceu na área econômica, no período em que foi Ministro da Fazenda no primeiro mandato presidencial de Lula, e na articulação da campanha da atual presidente, Dilma Roussef.

Assim como aquele político provinciano, do interior, que seduzido pelos encantos dos salões do poder, acaba por cometer gafes imperdoáveis, como a de se deixar levar pelas aduladores e pelo induzimento de seus subordinados, ao frequentar mansões suspeitas em Brasília, ou autorizar (ou ao menos aquiescer)  a quebra ilegal do sigilo bancário de um simples caseiro, Palocci cometeu seu segundo erro fatal, no sistema da política, ao tentar agir conforme o código poder X não poder, sem se aperceber que tal atitude não correspondia ao código de licítio X ilícito do sistema jurídico. Se no caso do caseiro, Palocci confundiu os códigos, no caso recente de seu enriquecimento mal explicado aconteceu o mesmo, valendo-se o ministro de argumentos jurídicos para não abrir o bico quanto à identidade de seus contratantes e a origem de tanto dinheiro em seu patrimônio, ao invés de se valer de argumentos pretensamente políticos, de provar que o que estava em jogo não era a presunção ética de sua conduta de homem público ao possuir um patrimônio tão elevado, mas sim os destinos da nação, diante da necessidade da manutenção no ministério de um articulador político que, de forma diligente, mantivesse unida no Congresso a bancada oposicionista. Palocci caiu por parecer titubeante, por não se deixar levar pelas comunicações típicas do sistema político, por ter permanecido na defensiva, quando lhe era exigido entrar em campo e contra-atacar, participando das operações internas do sistema que ingressara. Ficou o dito pelo não dito, a ausência de explicação do inexplicável.

Palocci não é o primeiro, nem último caso, do político de origem trotskista, que egresso do movimento estudantil, deixa de ser médico envolvido nas lutas sociais, e se transforma no empresário bem sucedido, deslumbrado com o vil metal. Porém, o PT, como partido surgido dentro das disputas internas do sistema político, na diferenciação entre poder X não poder, proferiu durante toda sua história um discurso de conquista legítima do poder, através do voto, da participação popular e democrática, unindo os segmentos subalternos mais organizados da sociedade brasileira, na busca do sonho possível de colocar um de seus iguais no comando da nação. Em síntese, ao levar um ex-metalúrgico à presidência, o Partido dos Trabalhadores fez valer seu slogan básico, herdado historicamente dos antigos movimentos socialistas: "trabalhadores no poder". Entretanto,  essa classe social parece ter se perdido, na medida em que seus militantes de classe média, como Palocci, acabaram por mudar de classe social, tornando-se os patrões, os banqueiros, empresários ou donos de fábrica, na perspectiva da aliança de classes pretendida por Lula e que muito contrariou os setores marxistas da esquerda brasileira.

Políticos de origem esquerdista e que caem momentaneamente em desgraça política, como Palocci, são resultado da forma como evoluíram as operações internas do sistema político no Brasil, e de como os subsistemas vinculados à atividade política dos grupos de esquerda evoluíram junto com o país, após a redemocratização. Invoca-se a chamada "fórmula de contingência", que é o que dá unidade ao sistema, segundo a teoria de Luhmann, conferindo-lhe sentido. O sentido da política é a busca do poder do Estado, assim como a fórmula de contingência do sistema do direito encontra-se na justiça. O Estado, como fórmula de contingência da política, implica em uma série de "irritações" nos demais sistemas sociais, se eu for aqui utilizar novamente a teoria de Luhmann, no sentido de afirmar que na busca pelo poder, partidos e siglas de esquerda como o PT apenas se submetem à programação das operações do sistema político, no momento em que se organizam com seus candidatos e ganham eleições; mas, a partir daí, passam a tecer toda uma rede de relações sociais de dependência, clientelismo e fisiologismo, que envolvem outros sistemas sociais, como o sistema econômico, que acabou por proporcionar todo um enriquecimento ou ganho de capital para o ex-ministro Antônio Palocci.

Em síntese, não quero afirmar aqui que os representantes da classe política são todos iguais, e por isso não vale à pena participar do processo democrático-eleitoral que se dá no âmbito do sistem político. O que quero dizer é que, sistemicamente falando, todos os últimos acontecimentos, da história recente das lutas de poder no Brasil, levaram políticos como Palocci a sofrer um duro revés em suas trajetórias de homens públicos, no momento em que passaram a confundir tomada do poder com legitimidade no exercício da função pública. Entretanto, que isso faz parte das comunicações internas do sistema político, assim como de seus acoplamentos com os demais sistemas sociais, não é novidade. Talvez, se determinados parlamentares ou ministros contassem com uma boa assessoria de sociólogos, o tamanho da queda não fosse tão grande, e seu ímpeto de reproduzir autopoieticamente as relações do sistema social que ingressaram não seria tão carente de reflexividade. Que ao menos sirva ao ex-ministro Palocci de lição, que não se pode querer obter o poder político e o poder econômico de uma só vez, sem acompanhar as evoluções e os acoplamentos necessários do sistema político e do sistema econômico. Para Palocci, só resta agora a próxima legislatura e uma boa atividade empresarial como consultor de negócios. Se fosse eu, com bons advogados, bons contadores e bons assessores políticos, da próxima vez, no mínimo eu comprava um apartamentinho básico em Santo Amaro, perto do povão, pra ninguém que meu olho cresceu, diante da possibilidade de lucrar tanto com o exercício do poder. Se cuida, Palocci!

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