Santa Maria/RS:uma trágedia difícil de esquecer (foto:Deivid Dutra) |
Nas redes sociais, em especial no Facebook, é possível localizar uma comovente frase num poema do famoso escritor gaúcho Fabrício Carpinejar, divulgado ontem, que diz o seguinte: "Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu?
Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça. A
fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão
nefasta. Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua
companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.".
O poema de Carpinejar traduz o sentimento de milhões de brasileiros que viram, ontem, estarrecidos, as cenas de agonia e horror na frente de uma casa noturna, a Kiss, situada no município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Um incêndio causou a destruição do lugar e a morte de centenas de jovens estudantes universitários.
Em Buenos Aires, já faz 8 anos que um protesto surdo comove a cidade. |
Em 30 dezembro de 2004, no bairro de Once, em Buenos Aires, Argentina, um incêndio na casa noturna Republica Cromagnon, durante um show da banda de rock, Callejeros, deixou 194 mortos e mais de uma centena de pessoas feridas. Por uma triste coincidência eu estava lá, não no dia do incêndio, mas na metrópole portenha, na primeira viagem de turismo que fiz a Argentina, chegando apenas cinco dias depois do trágico acidente. Naquela época, o tradicional reveillon em Buenos Aires, com a animada queima de fogos em torno do Obelisco, na Avenida Nueve de Julio, foi cancelado. Conheci uma Buenos Aires, já conhecida por sua melancolia romântica do tango e dos prédios históricos, mais triste e melancólica ainda. Por todos os lados, em todos os lugares, nas conversas nas ruas, nos jornais impressos, nos canais de televisão, nos bares e restaurantes, só se falava na tragédia de Once que matou tantos jovens, inclusive crianças e adolescentes, tendo em vista que na Argentina existe um esquema de se montar creches dentro das casas noturnas, pois os argentinos tem a tradição de levar seus filhos pequenos junto, na balada. Tive a oportunidade, inclusive, de conhecer algumas pessoas, diretamente ou indiretamente vinculadas a trágedia, e soube do drama de um barman, em um boteco que frequentei no bairro de San Telmo, que me disse que seu irmão ainda estava hospitalizado, em estado vegetativo, contaminado pela tóxica fumaça inalada durante o incêndio, e que foi responsável pela morte da maioria dos jovens que se encontravam encurralados no local; desesperados e sem ter como sair, pois das quatro saídas existentes na boate, apenas uma estava aberta, enquanto as outras foram fechadas com correntes e cadeados. Uma cena de horror, infernal, típica dos mais trashs filmes de terror ou de cinema catástrofe.
Inferno em Santa Maria.(foto:Deivid Dutra) |
Revivi a tragédia argentina ontem pela manhã, exatamente às nove horas, acordado por um amigo que me ligou ao celular, recordando-me do episódio ocorrido em Buenos Aires, que presenciei, e que agora estava incrivelmente acontecendo de novo no Brasil, no Rio Grande do Sul, em Santa Maria, uma bonita cidade do interior do estado que conheci no período de estudos de pós-graduação em que vivi na capital gaúcha, chegando a prestar um concurso para professor naquele lugar. As palavras são poucas para definir o pasmo, a indignação, seguidos da profunda tristeza por ver um lugar tão bonito, e de pessoas jovens tão cheias de vida, ser consumido pelas chamas, vítimas talvez do descaso do poder público, na fiscalização e na cobrança por segurança de estabelecimentos e casas noturnas. Fiquei muito triste, chocado e transtornado com o que vi, pois, pelo perfil das vítimas, conheci muitos jovens parecidos, quando fui professor do Curso de Direito, em uma faculdade há alguns quilômetros de Santa Maria, em Santa Cruz do Sul. Desta forma, entristeço ainda mais ao ver que aqueles rapazes e garotas que morreram, poderiam ter sido meus alunos, assim como podem ser alunos de colegas meus do doutorado, que agora lecionam na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a instituição da qual fazia parte a maioria dos jovens que acabaram morrendo dentro da incendiada boate Kiss, durante o show da banda Gurizada Fandangueira. O que aconteceu foi praticamente uma cópia, com poucos retoques diferenciados, do que aconteceu em Buenos Aires anos atrás. Simplesmente triste, muito triste!
(foto:Germano Rorato.Agência RBS) |
A tragédia de Santa Maria já conseguiu superar em número de mortos o que aconteceu no bairro de Once, em Buenos Aires, em 2004. Já são mais de 230 as pessoas mortas, podendo aumentar esse número, além dos feridos (muitos em estado grave), que podem vir a perder a vida nos próximos dias, devido à profunda inalação da fumaça tóxica, que se seguiu logo com o incêndio. É motivo também para sentir muito pesar, verificar que os dois trágicos acontecimentos surgidos de maneira quase igual, em países diferentes da América Latina, também ocorreram no mesmo período: na época de recesso acadêmico, no final de um ano e começo do outro, quando milhares de estudantes estão de férias, muitos ingressaram recentemente na universidade, e são comuns as festas de calouros ou concluintes, lotando bares e casas de espetáculos, especialmente numa cidade universitária como Santa Maria, que possui uma imensa comunidade de estudantes que vem de diversas partes do país, para estudar em instituições de nível superior qualificadas e famosas por sua tradição acadêmica como a UFSM.
A enorme tristeza num velório coletivo (uol.notícias). |
Das vítimas encontradas mortas, espalhadas por diversas partes, caídas no interior da boate Kiss, cerca de 70% delas nasceram de famílias que viviam em outras cidades do Rio Grande do Sul, ou de outros estados da federação, alguns até mesmo vindos do Uruguai. Sabe-se que em Santa Maria vem para estudar em suas universidades estudantes que vem de longe, até mesmo de regiões do Norte e Nordeste do Brasil. Daí se calcular que a dimensão da tragédia na cidade gaúcha é tão grande, que abalou não apenas o Rio Grande do Sul, mas o país inteiro. Enquanto isso, em Santa Maria, nesse exato momento, aposto como em cada família dos cerca de 300 mil habitantes da cidade, há pelo menos uma pessoa direta ou indiretamente vinculada a alguém que morreu no trágico incêndio do dia 27 de janeiro. Se foram filhos, irmãos, namorados, maridos, esposas, sobrinhos, alunos, professores ou simplesmente um amigo. Ontem, durante o culto noturno, da igreja luterana a qual pertenço, fui saber que, infelizmente, um jovem da igreja, residente no município gaúcho de Uruguaiana, estava entre os mortos na boate que se incendiou, levando a vida de mais duas centenas de jovens, adolescentes ou pós-adolescentes, que mal estavam chegando na vida adulta e tinham uma vida inteira pela frente. É o choque de muitas famílias, de se deparar com o absurdo de ver um filho seu ou filha, em casa à noite, alegre como deve ser toda juventude, acompanhado dos amigos ou da namorada, saindo para se divertir, e horas depois, no meio da madrugada, descobre-se que aquela jovem vida terminou, por conta de uma "fatalidade", como alegaram hoje na imprensa os advogados dos proprietários da casa noturna, ou vítimas da negligência, tanto das autoridades, quanto dos donos de estabelecimentos, no tocante aos padrões de segurança que devem ser exigidos mundicalmente, em lugares como a boate Kiss em Santa Maria, e a boite República Cromagnon, em Buenos Aires.
A presidenta Dilma solidarizou-se com as famílias dos mortos (blogplanalto.gov.br) |
O que se cobra agora é a responsabilização dos possíveis autores de uma tragédia tão imensa. Sabe-se que, assim no show do Callejeros, em Buenos Aires, na apresentação do Gurizada Fandangueira utilizou-se de um aparato sinalizador que, como um foguete, produziu faíscas que incendiaram o teto da casa noturna, feito de material altamente inflamável, e, em poucos minutos, a boate inteira se incendiou, gerando um cenário de caos e desespero que pôde ser visto à exaustão pela TV, na cobertura que a mídia nacional e internacional fez do episódio. Na Argentina, quando ocorreu o incêndio em Once, no dia seguinte foi preso o proprietário do República Cromagnon, o empresário e produtor Omar Chabán. A tragédia argentina custou a cabeça do prefeito de Buenos Aires, Antonio Ibarra, cassado por impeachment, por conta de suspeitas de inércia e falta de diligência do poder público municipal na fiscalização desses estabelecimentos. No Brasil, tudo indica que a polícia e as demais autoridades adotarão procedimento semelhante. Eu já soube que um dos sócios da boate Kiss, assim como três integrantes da Gurizada Fandangueira já foram presos provisoriamente, por determinação da Justiça, a fim de assegurar que a tragédia de Santa Maria não passe impune. De qualquer forma, independente da responsabilização ou não de uma pessoa ou de várias, pelas mortes produzidas no incêndio do último final de semana, o que fica para o Brasil, e para o restante da América Latina é que tragédias como a de Santa Maria não mais ocorram, ao menos da forma anunciada como surgiram, face a completa falta de prevenção das autoridades brasileiras, que não aprenderam em nada com o triste incêndio da casa noturna argentina, há poucos anos atrás. Em memória daqueles jovens que se foram, não deixemos que Santa Maria seja esquecida, e que no futuro outros jovens não percam suas vidas de forma estúpida, por uma total ausência de fiscalização, ou pelo seguimento rigoroso das regras que proibem a utilização de quaisquer objetos inflamáveis em estabelecimentos fechados, como casas noturnas. Aos familiares das vítimas, as minhas sinceras condolências. Que eles descansem em paz, sabendo que seus algozes não ficarão impunes, assim como outros não virão a sofrer do mesmo descaso, que estas pessoas, infelizmente, tiveram ao ver ceifadas suas vidas. Para o bem desse país, TRAGÉDIAS COMO ESSA TEM QUE ACABAR!!!