Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
Os movimentos sociais não estão felizes. O motivo dessa infelicidade é um jovem deputado, pastor evangélico, que tem felicidade no nome. Com toda uma balbúrdia como muito não se via no Congresso Nacional, Marco Feliciano tomou posse como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Sabe-se que, historicamente, a tradicional comissão parlamentar foi liderada por ex-presos políticos, representantes dos movimentos sociais ou por políticos antenados com as reivindicações de minorias, tais como negros, mulheres, homossexuais, estudantes e outras categorias sociais que costumam se mobilizar em torno da sociedade civil organizada. Acontece que no último dia 4 de março quem assumiu a presidência dessa comissão foi um pastor evangélico conservador, neopentecostal, dono de um discurso populista e com uma trajetória política duvidosa, egresso de uma legenda minúscula, de um partido da base do governo, chamado PSC (Partido Social Cristão). Foi desse partido que surgiu Feliciano, aproveitando-se de um eleitorado de mais de 200 mil evangélicos, elegendo-se com um discurso polêmico, com fortes conotações racistas e homofóbicas.
O polêmico parlamentar evangèlico conseguiu irritar "gregos e baianos".
Não demorou para que os movimentos sociais se insurgissem e fosse feito um grande barulho durante a posse do deputado, praticamente atravancando os trabalhos da comissão pela qual foi eleito. Segundo as regras da própria Câmara, era do PSC a vaga que cabia na comissão de direitos humanos, no momento em que se encerrava a gestão anterior, e Feliciano foi o indicado. Entretanto, assim que apareceram na imprensa e na internet, vídeos de uma pregação do deputado, como pastor de sua igreja, insultando os homossexuais, e uma polêmica declaração sua no twitter, dizendo que os negros da África tinham justificado seu sofrimento, por serem biblicamente filhos de Caim, isso foi suficiente para que se iniciasse um amplo movimento no Congresso para que o pastor renunciasse. O presidente da Câmara, o deputado Henrique Alves, do PMDB, sugeriu aos representantes do PSC que retirassem Marco Feliciano da presidência da comissão de direitos humanos; mas, respeitando-se uma decisão soberana de uma comissão da Casa, e alegando que o deputado Feliciano era "ficha limpa", o partido de Feliciano decidiu apoiá-lo e o polêmico parlamentar segue na comissão, para desgosto de muita gente.
Uma manifestação homoafetiva típica contra o deputado Feliciano.
Mas, por que se fez tanta celeuma e por que, inclusive, manifestantes foram presos por conta da posse de um deputado do perfil de Feliciano em uma das comissões da Câmara? Não existem outros parlamentares tão ou mais reaçonários do que ele? Entre seeus apoiadores, encontra-se o controvertido e sensacionalista deputado Jair Bolsonaro, inimigo declarado dos partidos de esquerda e de todo e qualquer movimento progressista, considerado um político de extrema-direita, saudoso da ditadura militar e uma das criaturais mais desagradáveis em termos de discurso, quando está com um microfone nas mãos. Em diversas entrevistas em programas de televisão, Marcos Feliciano posa de vítima, achando-se incompreendido, e como um pastor dirigindo-se para suas ovelhas eleitoras, Feliciano foca seu futuro político, ameaçando o governo da presidente Dilma Roussef, dizendo que, ao não apoiá-lo, as forças do governo correm o risco de perder votos no eleitorado evangélico. Bravata ou premonição? Valendo-se de uma vaidade extrema que chega até ao autoendeusamento, Marco Feliciano alega na TV que tem uma missão divina, e por isso foi levado até onde chegou. Ele chegou a emitir certo desdém pelo importante cargo de presidente da comissão a qual ocupa, dizendo que, antes dele, a Comissão de Direitos Humanos tinha pouca expressão dentro da Câmara. Vaidoso, carismático, arrogante ou demagogo, não se sabe bem quais epítetos cabem melhor no controverso parlamentar. Entretanto, sabe-se que até mesmo algumas instituições religiosas mais históricas, vinculadas aos movimentos progressistas, como a IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil), publicaram manifesto, exibindo seu descontentamento com a posse de Feliciano no cargo que atualmente ocupa.
Ato contra Feliciano em Copacabana.
É bem verdade que, em nosso regime democrático, o Parlamento é um celeiro de ideias e um zoológico ideológico onde aparece todo tipo de indivíduo, representantivo de uma classe ou categoria social que o elegeu. Marcos Feliciano não é diferente. Ele representa hoje, é bem verdade, um tipico eleitorado conservador, urbano, de baixa ou média escolaridade, refratário a determinados movimentos sociais, como os representativos de gays e lésbicas, ou outros movimentos de gênero ou raça, como o movimento de mulheres defensoras da legalização do aborto ou do movimento negro e das religiãos afrobrasileiras. Está aí o grande embate que torna o deputado-pastor tão indesejável na liderança de uma das comissões da Câmara. A capacidade para o diálogo, que se cobra extremamente em funções legislativas que envolvem uma articulação e abertura política para diversos setores da sociedade, praticamente é inexistente em parlamentares com o perfil de Feliciano. Como contar com apoio parlamentar para lutas como o combate a AIDS e as doenças sexualmente transmissíveis através da distribuição gratuita de preservativos pela Saúde Pública, se o presidente de uma comissão da Câmara que trata de direitos humanos (onde a saúde está incluída) é contrário ao sexo antes do casamento? Como defender o apoio público à pesquisa científica e ao desenvolvimento de novos medicamentos no controle de doenças e superação de enferimidades, se importantes parlamentares são contrários às células-tronco, alegando motivos religiosos? Como garantir um lar a uma criança orfã, por meio da adoção por um casal do mesmo sexo, se deputados como Feliciano combatem fervorosamente o casamento gay e adoção de crianças por essas pessoas? O problema da manutenção do deputado Feliciano na presidência da comissão de direitos humanos é que se trata de um caso clássico do homem errado no lugar errado.
Por mais que seja lícita a regra que elegeu Feliciano, em prol de uma sociedade democrática, que respeita a convivência entre progressistas e reaçonários, nenhum parlamentar, governante ou membro do Poder Judiciário pode utilizar argumentos religiosos para exercer atos que exigem razões de Estado e não questões de fé. Existem diversas denonimações religiosas que pregam a completa abstinência de seus integrantes da política e outras que, ao contrário, estimulam até demais que seus membros disputem cargos públicos. É o caso das igrejas neopentecostais e de toda uma bancada que se elegeu confundindo o púlpito com o plenário, e de lá saíram deputados como Marco Feliciano. Na verdade, a atuação política desses parlamentares está muito distante de seus vínculos religiosos, uma vez que a fé é utilizada apenas como um pretexto, para dar dividendos eleitorais a determinados pastores e líderes religiosos. É transformando crentes em eleitorado que políticos como Feliciano surgem e crescem na política.
O problema é que a sociedade é plural, multifacetada e seria, no mínimo, um viés altamente autoritário permitir que parlamentares como Feliciano obrigassem um Legislativo inteiro a ceder aos seus pontos de vista. Se o parlamento é um espaço para o diálogo, que se permita o diálogo público com a sociedade, onde ambas as partes (tanto os movimentos de contestação quanto o parlamentar envolvido nos protestos), cheguem a um denonimador comum; ou, ao menos a um certo nível de respeito, onde o debate democrático seja possível.
Lágrimas de crocodilo?Com os olhos marejados:e agora, Feliciano?
Acredito que os movimentos sociais exageram ao pedir a cabeça de Feliciano, assim como creio que estejam certos em protestar por um presidente de uma importantíssima comissão da Câmara mais adequado à relevância do tema que é explorado pela Comissão de Direitos Humanos, e que seja um parlamentar mais aberto ao diálogo. Por outro lado, creio também que, mesmo debaixo de tanta controvérsia, críticas e com tanta carga negativa contrária, políticos como Feliciano merecem o benefício da dúvida e ao menos uma chance de provar, por meio de uma atuação impecável na comissão, que seus detratores estão errados. Acho bem difícil essa última hipótese acontecer, mas defendo que seja dado um prazo pequeno para que o deputado Feliciano possa mostrar que conduzirá honradamente a citada comissão. Caso contrário, se Cristo ensinou o perdão, ao menos no caso do cristão Marco Feliciano, o coro dos descontentes não perdoa!
Alguns sociólogos chamam de "Geração Y", todo aquele contingente de pessoas que nasceu após a década de 80 até o início da década de 90 do século passado (quem veio depois é chamado de Geração Z). Seriam pessoas que cresceram já na época da revolução tecnológica, do fim dos regimes totalitários em boa parte do mundo (principalmente na América Latina) e o término da Guerra Fria, da abertura econômica e do progresso da informática, com o surgimento e predomínio da internet, dos aparelhos celulares e de toda uma inovação nos veículos de comunicação, até chegarmos aos tablets, I-pads e I-phones atuais. Enfim, é uma geração que presenciou a vivos olhos, enquanto crescia, o atual processo de globalização que vivemos.
Foi essa geração, em termos de música, anterior a dos meninos que nasceram no ano 2000 (mas que viu ainda criança a substituição do vinil pelo CD), quem presenciou a chegada do MP3, e que assistiu a consolidação de uma das bandas de rock nacional mais profícuas do período: o Charlie Brown Jr. Foi dessa banda, com nome de personagem de desenho animado, que ficou famoso e morreu hoje, aos 42 anos, seu vocalista, conhecido nacionalmente apenas como "Chorão". De origem humilde e com pouca instrução, o vocalista do Charlie Brown Jr. acabou se impondo como frontman, tornando-se um dos vocalistas mais requisitados em eventos da MTV, do canal Multishow e de outros meios de comunicação especializados em música. Eu não o considerava um bom letrista, e achava de uma simplicidade quase antropológica algumas rimas de letras das canções do Charlie Brown que Chorão compunha (afinal, quem é que me diz o que afinal é "tcharoladrão" da canção "Rubão", um dos primeiros hits dos primeiros discos da banda de rock santista). De qualquer forma, nos últimos dez anos percebi como a banda e seu vocalista evoluíram, buscando Chorão obter um som mais melódico e letras mais existencialistas e trabalhadas (muitas voltadas para reflexões sobre os sentimentos, experiências e o passado do vocalista). Com o Charlie Brown Jr., Chorão foi para a geração de adolescentes das décadas de 90 e 2000, o que Renato Russo foi para a geração da década anterior.
Alexandre Magno Abrão, o Chorão, foi encontrado morto na manhã de hoje, em seu apartamento, após um de seus seguranças estranhar a ausência do músico e a falta de movimento no local. Chamada a polícia, o delegado responsável pelo caso descartou a tese de suicídio, mas um pó branco encontrado no local sugere overdose de cocaína. Entretanto, apenas daqui há duas semanas saberemos efetivamente do que Chorão morreu, mediante laudo a ser fornecido pelo IML de São Paulo.
Chorão será velado no ginásio do Santos, clube da cidade de onde veio e pelo qual torceu a vida toda. Campeão de skate na juventude (daí o apelido Chorão, dos tempos em que reclamava das manobras mal feitas e tombos que tomava nas competições), ele entrou no mundo da música meio que por acaso. Sem dominar a técnica de qualquer instrumento musical, mas com muito carisma de palco e a facilidade para montar letras improvisadas, Chorão se apresentou no lugar do vocalista de outra banda, certo dia, em um barzinho em Santos, e daí veio a integrar posteriormente, com o amigo Champignon, uma das maiores bandas de rock brasileiro das últimas duas décadas. Foram ao todo dez álbuns do Charlie Brown Jr, e em todos, com formações diferentes de seus integrantes, Chorão permaneceu como vocalista, sendo reconhecido como a voz definitiva de uma banda que, assim como o Legião Urbana, com a morte de seu vocalista, deverá também se encerrar.
Eu, particularmente, não gostava muito do som do Charlie Brown. Tirando algumas letras, e algumas boas tiradas de seus dois primeiros discos, eu não via muita inovação, além de um rock meio punk, meio pop, muito parecido com outras bandas dos anos noventa, como o Green Day. Assim como a citada banda de Billy Armstrong, o Charlie Brown Jr. era um grupo com um líder carismático, um bom naipe de guitarras e capaz de estabelecer riffs e letras grudentas que reverberavam rapidamente pelas rádios. As músicas compostas por Chorão tocaram até em novelas da Rede Globo, e durante anos o hit "Te Levar" era cantado no início do famoso seriado Malhação. O Charlie Brown era uma banda que flertava bem com o marketing, e foi pelo marketing que Chorão e seus companheiros de banda foram criticados por outro grupo, tão cultuado quanto a banda paulista: os cariocas do Los Hermanos, liderados por seu eloquente vocalista, Marcelo Camelo. Diferente de Chorão, Camelo impunha uma visual mais universitário, intelectualizado e romântico a sua banda, montada com Rodrigo Amarante, que revelava influências de George Harrison e de Chico Buarque, e que explodiu nas rádios do Brasil (e do mundo todo), com a clássica canção "Ana Julia". Nada parecido com o rock quase visceral, mas meio pasteurizado do Charlie Brown. Foi numa crítica de Camelo à banda rival, numa entrevista, em que dizia que sua banda não precisava fazer propaganda de refrigerante para mostrar estilo, que o cantor Chorão foi tomar satisfações com Camelo, na sala de espera de um aeroporto, em Fortaleza, dando-lhe um soco que virou manchete nacional. Por conta disso, Chorão foi processado e teve que pedir desculpas publicamente, além de ter de pagar indenização, por conta de seu temperamento explosivo. Na época, não se sabia que, por conta desse temperamento, Chorão ia acabar encontrando a morte.
Segundo as primeiras notícias, nos dias que antecederam a morte de Chorão ele andava bastante deprimido, meio paranoico face o consumo de álcool e outras drogas, tomando medicamentos, e reagindo mal à separação de sua ex-mulher, a estilista Graziela Gonçalves, que ocorreu no final do ano passado, após 15 anos de casamento. Segundo o que anunciou o delegado que investiga sua morte, ao ser encontrado revirado o apartamento, sem pistas de que alguém tivesse entrado, a suspeita é de que Chorão tenha entrado em surto, começado a destruir seus próprios pertences pessoais, enquanto vivia um delírio alucinado, até que seu coração não aguentou, vindo a falecer. A versão que predomina até o momento é que Chorão não "aguentou o tranco". Ele simplesmente não conseguiu lidar com seus próprios vícios, frustrações e fraquezas, e mesmo com tanta fama viu-se assolado por uma profunda tristeza e solidão. É muito triste ver mais uma velha história de um rock star que não consegue ficar em paz e acaba se destruindo.
Assim como Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller, Chorão entra agora no panteão muito seleto das estrelas do rock nacional que sucumbiram cedo, envoltos na fama, mas também prisioneiros de seus próprios fantasmas internos, que os levaram de uma forma ou de outra, seja pela doença, seja pelas drogas, para a morte precoce. Chorão era um ídolo para a Geração Y, aquela que eu me referi no ínicio dessa postagem. Muitos jovens escutavam à exaustão suas músicas pelo rádio, internet ou por meio de clipes na MTV e não duvido nada que estejam escutando agora as músicas mais intimistas do Charlie Brown Jr., com lágrimas nos olhos. Eu respeito esse sentimento: o amor a um ídolo nem tanto por conta de sua pessoa, mas pelas coisas que ele canta; assim como me entristeci ao saber da morte de Renato Russo, há quase vinte anos atrás. Hoje, com a notícia da morte de Chorão, também fico resignado, mantendo uma solidariedade com os fãs do músico que se foi, rendendo-lhe, de certa forma uma homenagem, ao escrever sobre ele nestas linhas, reproduzindo, ao final, os versos de "Só os loucos sabem", uma das últimas canções de sucesso da banda, que tem tudo haver com o espírito poético e a busca do amor que o humilde Chorão queria imprimir no seu som:
"Eles dizem que é impossível encontrar o amor
Sem perder a razão
Mas pra quem tem pensamento forte
O impossível é só questão de opinião".