segunda-feira, 8 de julho de 2013

POLÊMICA: Acerca dos cubanos, afinal, o que querem os médicos brasileiros?

Ninguém questiona que o exercício da medicina é uma das mais nobres funções na humanidade, pois consiste em tratar doentes, lidar com a saúde das pessoas e, em algumas situações, até mesmo curar. Digo isso porque a própria palavra ars medicina deriva do  latim, e significa ao pé da letra: "arte da cura". Estes profissionais seguem o juramento de Hipócrates, considerado o "pai da medicina", que entre 460 a 377 a. C. buscava diagnosticar doenças em seus pacientes, valendo-se de conhecimentos rudimentares adquiridos das nascentes ciências naturais, como a física e a química. Médicos são formados e pagos para curar (ou tentar curar), e num país de dimensões continentais como o Brasil, onde existem milhares de locais inóspitos e distantes, há milhares de pessoas pobres, vivendo na miséria e em barracões de barro, que necessitam do auxílio de médicos.

Eis que nas últimas semanas, além dos inéditos protestos e mobilizações de rua que sacudiram o Brasil, por meio do movimento social Passe Livre, agora são os médicos que vão às ruas protestar. Melhores condições para a saúde? Atendimento decente e de qualidade aos enfermos da rede pública? Até que vai! Mas o cerne dos protestos que fez os médicos irem para as ruas foi outro: a contratação de médicos cubanos.

Cuba é considerado um dos países com o melhor sistema de saúde do mundo, apesar  da crise política do governo de Raul Castro e de suas enormes dificuldades econômicas. O sistema de saúde cubano foi mostrado nos cinemas através do documentário Sicko-S.O.S Saúde, do aclamado (e polêmico) diretor norte-americano e ativista de esquerda, Michael Moore. O filme, disponível no youtube, mostra que apesar do rico e bem equipado sistema de saúde norte-americano fazer alguns médicos milionários, como um "Doctor Rey" da vida, é em Cuba que cidadãos de baixa renda e que não tem condições de pagar um caríssimo plano de saúde privado, podem tratar de suas doenças e obter, a preços irrisórios, os tão necessários medicamentos para tratar de suas enfermidades. O tempo de formação de um estudante de medicina em Cuba é geralmente de três a quatro anos, e os salários pagos a esses profissionais na ilha caribenha são baixíssimos, o que leva centenas de médicos cubanos a procurarem paralelamente à atividade profissional principal, desenvolver alguns bicos, para arrecadar dólares num país onde o turismo se tornou a atividade econômica principal.


Mas apesar de todos os problemas, os médicos cubanos ainda são muito requisitados, em convênios e programas de assistência mútua entre países em todo o mundo. O papel desses profissionais na África, por exemplo, indo a lugares onde muitos profissionais da medicina jamais gostariam de estar, rendeu elogios e o reconhecimento das Nações Unidas até hoje. No Brasil, na outra faceta do país que não mostra nem de longe a prosperidade dos emergentes e nem os sorrisos de Neymar e a bem-sucedida seleção de futebol do Felipão na TV, existe ainda um Brasil onde no interior de suas grandes regiões permanecem populações sem o menor atendimento médico. São famílias pobres, de camponeses ou pescadores, situadas em sua maioria na zona rural, principalmente nas regiões norte e nordeste do país, que não tem atendimento médico, sequer hospitais. É para esses lugares que o governo tem dificuldade de alocar recursos e manter médicos, visto que muitos desses profissionais, quando terminam a faculdade, atuam no setor público apenas nas grandes cidades, e para não se distanciar de seus familiares geralmente preferem ficar na zona urbana, nos grandes centros, onde as oportunidades de trabalho e remuneração são mais atraentes, principalmente no setor privado. Na luta pela sobrevivência, é natural que um profissional formado, da área de medicina no Brasil, busque melhores condições que lhe garantam um bem estar e remuneração condizente à responsabilidade e seriedade da profissão.

O problema é que, justamente pela falta de médicos, o governo federal, da presidente Dilma Roussef, decidiu priorizar a contratação de médicos estrangeiros, para atuarem pelo SUS nas regiões mais necessitadas do país, dentro do pacote de medidas governamentais adotado para aplacar os protestos das multidões nos últimos dias, e atendendo a reivindicação popular por atendimento na rede pública de saúde. Com isso, gerou-se um protesto corporativo na comunidade médica, vindo as associações e sindicatos representativos da profissão iniciar uma série de comunicados, protestos e ameaça de greves, diante da contratação dos profissionais estrangeiros. 

Entenda-se que o governo pretende contratar, em caráter temporário, não apenas médicos cubanos, mas também profissionais de outros países, como médicos espanhóis e portugueses, afetados pelo desemprego e recessão diante da crise econômica na Europa. Na Inglaterra, país com um dos melhores sistemas de saúde do mundo, 30% do efetivo de seus médicos é de estrangeiros, contando com profissionais formados  em diversas nações como Índia e Paquistão. Enquanto isso, no Brasil, apenas 1,7% dos médicos é de outra nacionalidade. Ao invés de ser uma demonstração de nacionalismo e valorização da "prata da casa", a ausência de médicos estrangeiros no país revela o tamanho de nosso atraso em relação às demais nações globalizadas, e fato extremamente preocupante, no momento em que a saúde pública e a necessidade premente de atender milhares de pessoas enfermas, sucumbe diante de interesses corporativistas.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, existem ao menos 33 cidades onde o médico não mora onde trabalha. Isso em regiões onde o salário bruto de um médico pode chegar a 18,5 mil reais; o mesmo de um prefeito ou um magistrado. Segundo o secretário de saúde do pequeno município de Mariana Moro, na divisa do estado com Santa Catarina, há 50 quilômetros de Erechim, um dos principais motivos de não haver médicos nas licitações e nem aparecerem esses profissionais nos concursos públicos feitos pela Prefeitura, é de que "não há estrutura e nem mercado". Para o presidente da Associação Paulista de Medicina, Florisval Meinão, "médicos querem trabalhar no Primeiro Mundo". Assim, fica difícil manter esses profissionais em grotões de pequenas cidades, uma vez que as condições de trabalho muitas vezes são inóspitas e esses profissionais por vezes tem medo que seus salários atrasem.

Ora, independente da questão salarial, o que se vê no caso dos médicos brasileiros contra a vinda dos estrangeiros diz muito mais respeito a um flagrante interesse corporativo, em detrimento de toda a sociedade, além de demonstrar  um forte ranço ideológico. No evento ocorrido há uma semana em Natal, no Rio Grande do Norte, o que se viu foi uma passeata de 400 "gatos pingados", com camisas da associação dos médicos do RN, alguns vestidos a caráter, de branco, com lenços na cabeça e no rosto, como forma de demonstração de que a categoria dos médicos estaria insatisfeita com a chegada dos médicos estrangeiros. Entre os presentes eu só pude ver alguns médicos que se tornaram políticos e parlamentares, dos partidos e legendas mais conservadores e voltados ao espectro da direita, pois não identifiquei pelas fotos dos jornais qualquer representante da área médica que fosse filiado e eleito por partidos de esquerda, como PT, PSOL ou PC do B. O  que vi, na verdade, foi uma pequena caminhada de representantes dos segmentos mais tradicionais e elitistas da sociedade, onde muitos deles sequer trabalhou em uma clínica ou hospital de interior, e jamais atendeu pessoas pobres e enfermas em uma favela.

O problema da contratação de profissionais da medicina estrangeiros, principalmente cubanos, é, portanto, mais um problema corporativo e ideológico do que uma questão de saúde pública. Sob o pretexto de que estão defendendo o sistema de saúde brasileiro, exigindo necessário aprimoramento, muitos médicos brasileiros, através de seus sindicatos e associações, estão apenas exigindo melhorias pro seu próprio bolso, afugentando a concorrência por meio de um questionável exame de revalidação de diplomas. Como confiar na seriedade desses exames, quando existe no Brasil um fonte sentimento corporativista, que hostiliza estrangeiros, numa necessidade de autoafirmação de que nossos profissionais, aqui no país, já são bons demais? Para se dar apenas um exemplo pessoal, eu já fui atendido por médicos no Rio Grande do Sul, que se vangloriavam de que naquela região trabalhavam os profissionais mais gabaritados e mais bem treinados do país, e foi numa consulta com uma oftamologista que se orgulhava disso, é que recebi a prescrição da receita errada de um medicamento, e quase fiquei cego por um dia inteiro, ao colocar nos olhos um colírio errado. Somente faço essa crítica, justificando para que alguns amigos médicos não fiquem chateados, para questionar o argumento de que os médicos estrangeiros não seriam bons o suficiente, e por isso haveria a necessidade de revalidação de seus diplomas. Afinal, segundo os defensores desse argumento, não podemos deixar entrar no Brasil "qualquer açougueiro", não é isso?!

Exigir que no Brasil, os conselhos de classe revalidem os diplomas de profissionais que vem do exterior é verdadeiramente um tiro no pé, na medida em que, por dados do próprio CRM, o índice  de reprovação para aqueles que tentam revalidar seu diploma do país de origem no Brasil é de quase 90% (noventa por cento). Por que uma reprovação tão exagerada? Será que nenhum desses profissionais, que vem de diversas partes do globo, tem a competência para manusear um bisturi, cuidar de uma fratura ou prescrever medicamentos? O governo federal, através do Ministro da Saúde, o médico Alexandre Padilha, já disse que só virão para o Brasil os médicos cujos diplomas tenham a devida deferência e rigor técnico de apuração, atestado conforme diretrizes da Organização Mundial de Saúde. Será que isso não é suficiente?

Sob pena de intensificarmos ainda mais o quadro deplorável, da falta de atendimento há milhares de pessoas pela inexistência de médicos (vide, por exemplo, regiões como Roraima, onde só existe um médico para cada dez mil pessoas), urge que profissionais estrangeiros sejam contratados, e vão para regiões distantes do país, onde nenhum médico nativo quer ir. Apesar de vivermos uma realidade capitalista, não posso admitir observar a mesquinha sanha corporativa de algumas associações desses profissionais, que vão a medicina apenas como negócio, e não como uma bela arte de curar e salvar vidas. É por só ver as questões médicas como questão de mercado que vivemos em várias regiões pobres do país uma realidade verdadeiramente africana, que como disse o sociólogo e ex-ministro da Cultura, Francisco Weffort, nos assombra ao sairmos da ilusão primeiromundista de nossas grandes cidades e entrar no interior, nas grandes e depauperadas regiões do Brasil, onde predomina a miséria e o esquecimento governamental. Que os médicos brasileiros não sejam obrigados a ir para onde não queiram, mas que também eles não nos obriguem a manter essa realidade de miséria e falta de atendimento, pela falta de médicos estrangeiros, tão necessários num momento urgente, em que as multidões vão às ruas do país pedir por melhorias efetivas em serviços básicos, como saúde e educação. Que o juramento de Hipócrates, entoado nas cerimônias de formatura dos cursos de medicina, seja feito de novo, ao menos no sentido de apoiar o óbvio, que é o de mais médicos para a população, independente de sua nacionalidade. Se não ajudam, que aqueles que se opõem a isso ao menos não atrapalhem. Os enfermos da sociedade brasileira agradecem!

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