quinta-feira, 31 de outubro de 2013

IN MEMORIAM: Lou Reed

Lou Reed morreu! Lou Reed tinha tudo para ter morrido bem antes. Poderia ter morrido de overdose de drogas, nos anos setenta; de AIDS, nos anos oitenta, quando a doença se disseminou relevando o perigo de práticas sexuais libertinas. Lou poderia mesmo ter morrido assassinado, vítima de algum traficante a quem não pagou a dívida ou de um fã ensandecido, dos muitos que ocupavam a cena artística daquela época, e que poderiam ter atirado em Lou, como Marc Chapman fez com John Lennon em 1980. Mas não, Lou Reed ainda viveu muito tempo: exatos 71 anos, e em sete décadas de existência tornou-se mito, uma lenda que permanece apesar da morte do ídolo. E a morte de Lou, apesar de anunciada com discrição, como foi quase toda a vida do músico, ainda chocou muita gente.



Nascido Lewis Allan Reed, em 2 de março de 1942, no bairro do Brooklyn, em Nova York, o cantor e guitarrista norte-americano viveu na cidade praticamente a vida inteira, salvo longos períodos sabáticos em sua juventude, quando o jovem músico excursionava pela Europa ou gravava álbuns com sua antiga banda dos anos sessenta, o The Velvet Underground, ou então em produções solo. Foi através do Velvet, inclusive, que Lou ganhou popularidade, numa banda formada nos Estados Unidos, mas que fracassou em vendas de discos na sua terra natal, ganhando, entretanto, aspectos cult ao ser celebrizada na Europa. O Velvet Underground foi, desta forma, uma das primeiras bandas de art rock da história, famosa por sua formação clássica contando com Reed no vocal e guitarra, o baixista galês John Cale ( parceiro musical e poético), o guitarrista Sterling Morrison, e a baterista Mauren Tucker. Além desses integrantes, o Velvet teve como segunda vocalista, a cantora e modelo alemã Nico (na verdade, Christa Pffägen), indicada pelo artista plástico Andy Warhol, um dos produtores e grande incentivador da banda, idealizador da Factory e responsável pela antológica capa da banana, do primeiro álbum do grupo.

Lou Reed e o Velvet Underground
Recordo-me de escutar Lou Reed pela primeira vez, vivendo em Natal, com vinte e poucos anos de idade. Fui introduzido ao som dele e do Velvet pelo extinto grupo de jovens artistas e intelectuais locais chamado Sótão 277. Foi no grupo integrado por amigos interessantes, como o hoje poeta, filósofo e escritor Pablo Capistrano e o cineasta Aristeu Araújo, que eu conheci, nas festinhas daquela rapaziada universitária, o som do Velvet Underground, nas vozes de Lou Reed e de Nico, como também toda a inspiração beat que fluía em sua música. Lembro-me de comprar na extinta Aky Discos o antológico disco de Reed, Transformer, até hoje um clássico, gravado por David Bowie. Lá, naquele que ainda considero o melhor (e também o mais pop) disco do músico, vê-se verdadeiras pérolas que são escutadas até hoje, como o hino underground Walk on The Wild Side, ou a subversiva e agitada Vicious, além da triste balada A Perfect Day, utilizada na trilha sonora do filme de Danny Boyle, Trainspotting, que fez a história da minha e de outras gerações. Recordo de me sentar sozinho no apartamento de uma amiga, que havia me cedido o espaço enquanto viajava de férias, e eu, ainda um moleque querendo sair da casa dos pais, ouvindo a voz de Reed tomando goles de whisky como supremo ato de transgressão juvenil, sentado numa cadeira de balanço,  na minha depressão romântica, típica desta canção.

Lou Reed não era bom cantor e nem fez muito sucesso a ponto de ser considerado pop. Muito pelo contrário. Avesso a jornalistas, no decorrer de sua vida o artista gravou raríssimas entrevistas, e nelas quase sempre se apresentava entediado com as perguntas, proferindo respostas monossilábicas. Parecia que o cara queria mostrar a si próprio através de sua arte, com sua música e poesia cantadas no palco, e não mediante microfones para prestar racionalizadas declarações. Quem queria conhecer Lou Reed deveria conhecê-lo pela música, que na verdade era muito mais uma prosa poética cantada do que propriamente canções. Com letras fáceis e cruas, diferente de outro grande poeta e cantor como Bob Dylan, Reed expunha a alma americana e o cotidiano de aflições e desventuras de um típico cidadão novaiorquino, através de suas canções. Creio que após Transformer e a ópera-rock  Berlin, um dos melhores álbuns do artista que traduzem isso é o ótimo New York, de 1989, com sua balada Dirty Boulevard e a imagem de um casal de amantes junkies, percorrendo a metrópole de motocicleta, surgindo na cabeça ao se ouvir Romeo & Juliet. Por falar em drogados, esse era o universo urbano das músicas de Lou Reed ao falar da cidade que tanto amou. A Nova York de Lou Reed era bem diferente da metrópole limpa e republicana de hoje, reconstruída após o ataque das Torres Gêmeas. A New York dos anos setenta, dos melhores álbuns de Reed era a urbe violenta dos subúrbios escurecidos, das ruas sujas e empoeiradas, lotadas de mendigos, vagabundos de toda estirpe, viciados, traficantes, prostitutas e travestis. Por falar em travestis, este é um capítulo aparte na vida de Lou Reed.

Conhecido não só pelo consumo abusivo de heroína, como também pela bissexualidade, Lou Reed simbolizava também a época do sexo louco, desvairado, sem limites e errante que caracterizou bem a ressaca da contracultura, numa década de crise, desemprego e Guerra Fria, como foi a década de setenta. Ele chegou a casar com um travesti, e a contracapa do disco Transformer apresenta duas versões de seu amante, numa versão masculinizada, e outra travestida. O próprio músico nessa época apresentava-se com visual andrógino, sendo também um dos paladinos do movimento glam, encabeçado na época por músicos consagrados como David Bowie e Marc Bolan, do T-Rex, além do pessoal do New York Dolls. Uma excelente biografia da época e da história da música no período é ler a obra Mate-me, por favor, escrito pelos jornalistass Larry Mcneil e Gilliam McCain, que saiu no Brasil em dois volumes pela LPM Pocket, contando a história dos precursores do punk. Lá, tem passagens curiosas e até engraçadas, lembrando de personagens como Lou Reed, e de como aqueles tempos loucos faziam que, para um músico intelectualizado e interessado em experimentos, não restasse outros caminhos a não ser o caminho das drogas e do sexo sem compromisso. Algo que também se tornou tema nas canções de Lou.

Ex-junkie,  depravado sexual, pai (ou avô) do rock alternativo, precursor do movimento punk. Na verdade, as diversas facetas e personas que Lou Reed assumiu são pequenas para o gigantismo de sua obra e as dimensões que ela tomou. Sóbrio desde os anos oitenta, o cara passou seus últimos anos tendo uma vida bem mais tranquila do que nos seus anos turbulentos, vivendo, segundo ele, como um "velhinho de supermercado". Casado com a também cantora e artista performática Laurie Anderson, Lou Reed parece ter vivido seus últimos anos de vida com certa paz. Praticante do tai-chi-chuan, o músico norte-americano só não conseguiu conter os problemas com o fígado, causa de sua morte, após ter passado meses sem se recuperar propriamente de um transplante, realizado no começo do ano.

Em 2010, Lou Reed fez sua última apresentação no Brasil. O que não foi grande coisa, segundo dizem, pois ele estava muito mais interessado em divulgar seu álbum de músicas experimentais, do que tocar antigos sucessos seus ou do Velvet Underground. Quem esperava, serelepe, que o músico fosse tocar uma alegre Sweet Jane, no Credicard Hall, decepcionou-se ao escutar um alarido de sons distorcidos produzidos por guitarra e microfonia, que revelavam os últimos (e bizarros) experimentalismos musicais do artista novaiorquino. Lou Reed sempre gostou de subverter, e como um homem formado em literatura e cinema pela universidade de Syracuse e que gostava de ler Goethe, Rilke e Bertold Brecht, cada uma de suas apresentações, nos últimos anos, assemelhava-se mais a um sarau literário ou a um experimento científico do que um show de música. O cara chegou a fazer em 2011, um disco junto com os integrantes do Metallica, na ópera-rock Lulu, que encontrou uma recepção fria da crítica e um quase esquecimento entre os fãs da famosa banda de heavy-metal. Mas,  quer saber?  Lars Ulrich e James Hetfield adoraram trabalhar com o cara, e isso é que importa!


Com Laurie Anderson, a viúva oficial de milhares de fãs enviuvados.
Eis que Lou Reed se foi. Para muitos, parece incrível, porque ídolos (ou, ao menos, um mestre), não deveriam morrer. Mas como todo ícone da música, Lou demonstrou ser apenas uma pessoa de carne e osso. Com ele vai-se embora mais um pedaço do século XX e da música popular produzida nos últimos cinquenta anos. Mas não se preocupem! Lou se foi, mas não desapareceu. Acredito que durante muitos anos sua obra será cultuada. Valendo-se do velho jargão tantas vezes batido: Lou Reed "saiu da vida para se eternizar na história". Goodbye, Lou! Welcome, Lou!

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