sábado, 24 de julho de 2010

FILOSOFIA: Em Heidegger todo o recomeço é uma questão de vivência primordial.

Muitas vezes somos chamados à tortuosa tarefa de recomeçar, dar novamente o tiro inicial, um novo pontapé, seja na vida profissional, afetiva ou familiar. Recordo das minhas idas e vindas numa opção profissional ou num novo amor. Das pessoas que me apaixonei ou afeiçoei, daquelas que ficaram e as que partiram. Mas sempre a ideia de recomeço, o eterno devir esteve presente em minha caminhada, sustentada pelas leituras que nunca deixei de fazer.

Recentemente conversando com uma amiga, o papo realizado via internet me fez lembrar as leituras de Ser e Tempo, obra máxima de Heidegger, que, por debaixo da linguagem estritamente filosófica, revela muitas respostas a questionamentos que já fiz no passado, de coisas que afligiam meu coração, e, que de repente, podem servir de auxílio a esta amiga. Na ontologia filosófica heideggeriana podemos encontrar respostas para questões como a existência de Deus, a perpetuidade do amor, a temporalidade da vida e a dinâmica da aflição.

Vida e aflição. Somos seres aflitos porque vivemos, e na filosofia de Heidegger colhida na obra citada, já podemos aqui nos debruçar sobre dois conceitos básicos desenvolvidos pelo pensador da Floresta Negra: vivência e preocupação. Heidegger chama de vivência primordial um conceito extraído de Dilthey para dizer que quando surgimos no mundo, enquanto um "ser-aí" (dasein), já nos deparamos com um série de entes que nos cercam, nesse mundo circundante. É preciso apreender o sentido das coisas simplesmente vivendo, para se aprender a viver. Para isso o homem vive se "pré-ocupando", o que significa dizer que preocupação aqui não é vista como um mero sentimento aflitivo, mas sim como a essência da própria dinâmica da vida. Ao se preocupar o homem age, interage com o mundo circundante apreendendo significados, que depois ele traduzirá para seu conhecimento. Heidegger trabalha uma postura filosófica no caminho do conhecimento que é o caminho da autoconsciência, do conhecimento sobre si próprio. As coisas não existem só porque existem no mundo, mas existem porque eu existo, eu, ao viver, dou significado a essa existência. Pode parecer até simples (ou bem complicado) para quem lê esse jogo de palavras; mas, na verdade, Heidegger quer demonstrar com isso que sua filosofia surge como uma ruptura com a conduta intelectualóide racionalista e cartesiana, de querer sempre estabelecer um discurso sobre algo para se poder agir, quando na verdade é preciso primeiro agir para depois discursar.

Mas onde quero chegar e no que isso irá servir de contribuição ao caso de minha amiga? Digo, em especial nos conselhos afetivos em matéria de amor, que aí Heidegger também dá uma bola dentro, explicando no seu conceito de sentido de realização como complemento do sentido de ser, que em todos os momentos do agir, que caracterizam a vivência do ser, devemos ter uma postura de abertura à vida, de se apoderar da vida como um salto, independente de nossas mais intrigantes elucubrações. Isso significa dizer que não adianta perguntar "por que amar?" ou "amar a quem?", mas simplesmente amar. O jogador de futebol só pode discorrer sobre a importância da pelota se sente o gramado do campo sob seus pés, assim como para o flautista o som de sua flauta deixa de ser mero ruído se ele se abre para a beleza e imensidão da música. Amar algo ou alguém independe de nossas elaborações, mas só conseguimos efetivamente estabelecer a vivência do amor, estar vivendo amorosamente se nos desprendemos das amarras da intelecção cartesiana e nos abrimos num salto, saltamos no escuro, no êxtase de nossa disposição afetiva mesmo sabendo que o inesperado, o inconcluso, o não visto, o impoderável e invisível pode nos afligir, pode nos assustar. Mas Deus e o futuro não são assim??

Em outros textos deste blog já me referi a Heidegger como um pensador romântico, na concepção mais piegas do termo, não enquanto filósofo, mas enquanto homem. Pois parodiando Schopenhauer entendo que que os homens de ideias são também homens de ética; ou seja,  é preciso uma disposição ética de querer conhecer a si próprio para querer conhecer o restante do mundo e da vida, que é a disposição do filósofo. Na procura de si próprio Heidegger filosofa tendo em vista o amor que nutriu durante anos por Hannah Arendt, talvez o verdadeiro e grande amor de sua vida. Não obstante a força avassaladora desse amor, Hannah preferiu seguir seu caminho e viver novos amores, casando-se com outra pessoa, tendo em vista que aquele homem mais velho e casado que ela tanto amou em seus encontros secretos, por ela não decidia. A inquietação do amor concretizado, mas não finalizado de Heidegger é a inquietude do dasein. Na dimensão aflitiva da vida somos por vezes chamados por ela a viver novas situações, conhecer novas pessoas, desfrutar de novos relacionamentos, e, sobretudo, abrir-se para novas perspectivas. Essa é a caminhada do filósofo-peregrino na sua vivência de suas ideias, essa é a nossa caminhada nos sucessivos saltos que somos convidados a dar, por uma vida inquieta, que por ser vida tem a função de nos inquietar.

Portanto, nessas curtas linhas o que desejo a essa querida amiga é que viva a sua vida abrindo-se à dimensão misteriosa mas ao mesmo tempo fascinante do dasein. Que possa em sua vivência desfrutar de novas amizades, novos amores, novas possibilidades de trabalho, novos lugares para conhecer, e, quem sabe, novos sabores e saberes de conhecer a si própria numa caminhada em que conhecer o mundo parte de conhecer a si mesmo. Viver acima de tudo, antes de conhecer é o ponto de partida para todo conhecimento, inclusive o conhecimento sobre o amor. Foi com isso que pude tantas vezes reativar o botão play de meu coração que por vezes permanecia na tecla pause ou no stand by, voltando a viver, voltando a me "pré-ocupar".Creio que com isso poderemos, enfim, entender o significado tão deslumbrante de existência, a que se debruçou em sua filosofia Martin Heidegger, e da vida ter bem menos medo dela. Adelante, compañeros!!!

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