Lembro-me da primeira vez que entrei oficialmente para dar aula como professor. Eu tinha acabado de terminar a Especialização, tinha meus 27 anos e um completo medo de sala de aula. Antes, eu já tinha tentado dar aula na universidade como monitor (o que não é a mesma coisa que lecionar), e num cursinho preparatório para concursos, onde a experiência foi uma das mais mal sucedidas possíveis. Na época, eu não tinha propriamente um traquejo e o pensamento rápido de responder a uma indagação repentina de um aluno, e meu plano de aula era filosofal demais, inadequado para uma turma de bancários e funcionários públicos subalternos que só queriam fechar um gabarito e acertar marcar o "x" em provas objetivas.
Mas, no dia em que fui como professor de fato e de direito dar aulas, gelou-me a espinha. Comecei a gaguejar logo no começo da aula, e pra tentar quebrar o gelo comecei a perguntar o nome dos alunos e o que cada um estava fazendo ali naquela sala, pra explicar o porquê de fazer um curso preparatório na Escola do Ministério Público. Lembro-me que uma das alunas foi bem mal educada de início, respondendo tão somente que estava ali porque sim e que eu já tinha feito a mesma pergunta, e logo vi sorrisos e gargalhadas zombeteiras de alguns alunos, o que me deixou mais nervoso. Resolvi abrir o jogo, pedindo que a classe me respeitasse, ou ao menos tivesse piedade de mim, pois era minha primeira aula, o desafio era grande e eu queria, realmente, saber expor tudo o que eu sabia para aquela turma de alunos, mas o nervosismo não me deixava. Preferi ser sincero, e naquele momento, como num passe de mágica, conquistei a turma, pois um dos alunos, um senhor mais velho respondeu para mim, diante de seus colegas:"É! Professor! O senhor não se preocupe, pois ao menos no quesito sinceridade, o senhor já tirou nota dez!". A partir dali parei de gaguejar, passei a me sentir confiante, as ideias começam a fluir com naturalidade e agilidade, e ao final do semestre fui bem avaliado como um dos melhores professores do curso. Lição de superação? Manual de autoajuda? Não! Simplesmente ocorreu-me algo que me marcaria para o restante da vida e definiria minha opção profissional: descobri que sou professor!
No dia 15 de outubro comemora-se no Brasil o Dia do Professor. A data diz respeito a um decreto do imperador Dom Pedro I, em 1827, decretando a criação das primeiras escolas primárias do país. A partir dali seria criada a profissão de professor, através das "Escolas de Primeiras Letras" e ali, desenvolvia-se uma carreira até hoje considerada nobre, mas progressivamente mal valorizada, resultando nos grevistas professores da rede pública, que conhecemos hoje. Mas o belo e sofrido ofício de ensinar já remonta há muito mais tempo.
Os professores já remontam uma profissão bem mais antiga, que vinha ainda do tempo dos filósofos gregos. Talvez Sócrates tenha sido o primeiro grande professor, dando suas aulas particulares, de graça, pra quem quisesse ouvi-lo, sendo recepcionado e "pago" através de comida, bebida ou um lugar para dormir, ao passar pela casa de cada um de seus discípulos ou admiradores, com suas lições filosóficas sobre a vida ou a existência. Depois viria Aristóteles, o preceptor de Alexandre, o Grande, o primeiro filósofo a instituir o ensino através da sala de aula,com a criação do Liceu, o local em formato de anfiteatro, onde seus alunos enfileirados em bancadas, podiam escutar as lições de seu mestre. O método de ensino de Aristóteles consistia em conhecimentos práticos úteis para a vida, nos diversos ramos de conhecimento, mas também levavam em conta o ensino da virtude moral e do bom caráter, pois para Aristóteles o homem era "um rio sem leito" e como não nascia com uma disposição moral inata, ele devia adquirir isso através da escola. Portanto, na visão aristotélica o ofício de ensinar não consistia apenas em dar lições sobre uma matéria específica do conhecimento, mas sim em educar, educar para a vida.
Existem muitos professores, mas poucos são educadores. Acredito no professor-educador, pois nesse tipo de profissional você encontra a fusão entre conhecimento e virtude de que falava Aristóteles. Não basta para que alguém se intitule professor somente "dar umas aulinhas" para equilibrar o orçamento doméstico, ou somente por status social, como se dá para quem se dedica ao ensino na área jurídica. Em áreas nobres e tradicionais do ensino superior, como o direito, a medicina ou a engenharia, é comum o profissional do ensino ter dois empregos: um relacionado diretamente a sua área prática, outro dedicado ao ensino. Costumo ser surpreendido com a pergunda formulada por alguns de meus alunos, logo no começo do semestre, nas primeiras aulas, com a curiosidade manifestada na singela pergunta:"Professor, além de dar aula o senhor também trabalha?".
É por trabalhar (e muito) no ensino, que o professor deve ser educador, e não só professor. Educar significa não apenas deter conhecimento, mas também estar preenchido de um estado de espírito onde seu caráter, sua experiência de vida e as lições morais que genuinamente você quer passar, atravessem os muros da escola e cheguem na sala de aula, pois você gostaria, de coração, que aquelas lições fossem ensinadas a outros, como se fossem seus filhos, parentes ou melhores amigos os destinatários daquelas lições. Digo que o professor que tem o ato de educar como ofício e vocação, vê a escola e seus alunos como sua segunda família. E é assim que vejo os lugares onde ensino ou ensinei. Em alguns você tem famílias problemáticas, em outros famílias mais harmoniosas, mas em todos persiste a função de educar, pois como um Dom Quixote do ensino, você crê nos moinhos de vento do sistema educacional, achando que, com sua atuação profissional, ética e dedicação, você conseguirá transformar pessoas. Ledo engano, muitos poderão dizer, ou ingenuidade sua. Porém, de qualquer forma, você persiste e continua a ensinar, contra tudo e contra todos.
O professor é um herói, dentro do atual contexto de crise da educação moderna, e diante das sucessivas decepções e atropelos que ele possa vislumbrar, diante de modelos educacionais fracassados ou perante uma total falta de estrutura ou apoio governamental para o ensino brasileiro. Em edição deste mês da Revista Piauí, é traçado um interessante perfil do atual Ministro da Educação, Fernando Haddad (pretenso candidato do PT e preferido do ex-presidente Lula à prefeitura de São Paulo), onde se vê uma briga de cifras e estatísticas, entre os apoiadores e adversários do ministro, acerca do desenvolvimento ou do atraso da educação no Brasil, entre os governos de FHC e Lula. O certo é que independente do orçamento do Ministério da Educação ter dobrado nos últimos anos, o país ter evoluído na educação básica e hoje metade dos que ingressam na escola terminar o ensino médio (em comparação aos 36% da década anterior), e pela contratação recente de quarenta e oito mil docentes, ainda temos 10% da população totalmente analfabeta. Além disso, de 65 países avaliados no ranking do Programa Internacional deAvaliação de Alunos (o PISA), o Brasil está entre os 15 piores em leitura, matemática e ciências. No país, quase 60% dos alunos que concluem o ensino fundamental, tem dificuldade em calcular o troco e ver as horas, enquanto que 44% dos alunos que concluem o ensino médio tem dificuldade com leitura e escrita. Percebo isso no ensino superior, grande reservatório da defasagem nacional no ensino, quando, nas faculdades privadas percebo alunos que tem imensa dificuldade de escrever (mesmo num curso de Direito, onde o domínio da escrita é obrigatório), e, em muitos casos, não escrevem praticamente nada. E os professores? Como devem atuar diante dessa alarmante situação?
Lembro-me aqui de uma jovem e combativa professora potiguar, Amanda Gurgel, militante do PSTU, que ganhou notoriedade e seus minutos de fama repentina, quando um pronunciamento seu, feito numa audiência pública na Assembléia Legislativa do RN, repercutiu nacionalmente através do Youtube, sendo chamada a professora a participar de programas de televisão. Tudo está dito ali, em grossas linhas, nas simples mas tocantes palavras da professora da rede estadual, acerca da situação de penúria pela qual tem passado o ensino brasileiro e os profissionais da educação, e da caracterização dos professores como mártires, em uma data que deve servir de alerta e lamento, e não como celebração. Ao invés de sermos reconhecidos com mensagens de congratulação, no dia 15 de outubro, deveríamos ser presenciados com salários dignos, condições de trabalho decentes, e agraciados com uma estrutura educacional que permitisse, efetivamente, educar.
Recordo também do personagem do ator Sidney Poitier, no clássico fime Ao Mestre, com Carinho, de 1966, reprisado à exaustão na Sessão da Tarde, em que ele interpreta um professor negro, numa escola secundária de subúrbio, na periferia norte-americana, na ebulição cultural dos anos sessenta. Vemos a tortuosa tarefa de um professor de escola pública, mal remunerado, diante de uma turma de alunos rebeldes, desajustados socialmente e organizados em gangues, numa função em que o professor tem que incorporar a própria autoridade do Estado, para evitar o caos, e ao mesmo tempo tem que conquistar os alunos, colocando-se no lugar de uma figura paterna, já que muitos daqueles jovens pobres tinham ausência da presença do pai. Em síntese, é assim que penso a profissão de professor, em que homens e mulheres todos os dias acabam assumindo a função de segundos pais e mães, para muita gente. O personagem de Poitier simboliza a missão de muitos (senão de todos) os professores até os dias atuais, em diversos lugares e países, tendo uma dificuldade enorme de lidar com a avalanche de ignorância que predomina sobre a sociedade, procurando abrir cabeças, despertar consciências, através da difusão do conhecimento. E não é tarefa fácil, não!
Portanto, nesse dia 15 de outubro, pense se esse dia fosse um Dia dos Pais ou Dia das Mães, e, ao invés de me congratular pelo meu dia de professor, congratule-me pelo meu dia de ser humano, e diante das nossas lutas, junta-se a nós, professores, na cruzada por uma dia melhor na educação nacional, mesmo que isso seja à custa de muito trabalho, sangue, suor e desapontamento, para quem acredita que apesar de todo o sofrimento, SER PROFESSOR AINDA VALE MUITO À PENA! Vamos à luta, companheiros professores! FELIZ DIA DO PROFESSOR, mesmo com muitas lágrimas, revolta e tristeza nesse dia!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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