O mundo das celebridades está de luto. É só ligar a TV e ficar de olho nos programas de auditório para ver apresentadoras inconsoláveis e chorosas, locutores de programas dominicais aos prantos, animadoras de auditório com os olhos em lágrimas, cantoras e dançarinas de axé-music desesperadas, soluçando em voz alta de tanta tristeza. Até o Silvio Santos está despido de seu sorriso e também fechou a cara e assoprou lenços. Tudo porque nesse final de semana, o Brasil perdeu a sua diva, uma das mais antigas, idosas e carismáticas estrelas da televisão: morreu no sábado, dia 29 de setembro, em São Paulo, aos 83 anos, Hebe Camargo.
Hebe vinha de uma luta de dois anos contra o câncer. Durante o período, ela não parou de trabalhar, nem de esbanjar o sorriso botocado, as plásticas na face e a risada que lhe eram característicos. Hebe representava um Brasil antigo, de glamour, de uma estética luxuosa e cafona, mas também representativa de uma classe média urbana, e de um país de desigualdades sociais, onde as classes D e E, o "povão", ligavam a TV nas noites de terça-feira para ver o programa de sua diva, uma espécie de "Dalva de Oliveira das telas" e não mais das rádios. No auge, seu programa chegava a render bons índices do Ibope, e passava a velha loira a ser disputada por emissoras de televisão a cada temporada, nunca voltando para a Rede Globo, de um finado Roberto Marinho que nunca a valorizou como mereceu, mas a fez ganhar brilho próprio em outros canais, como a Record, a Band, o SBT e até a Rede TV.
Mas, no mesmo final de semana que morre a Hebe, e o Brasil inteiro parece chorar (ao menos segundo a apelação dos meios de comunicação) a morte da famosa apresentadora, no ambiente acadêmico, a morte de uma grande personalidade do mundo das ideias parece não ter tido tanta repercussão, ou parece não ter ganho a explosão midiática que se deu na morte de Hebe Camargo. Trata-se do falecimento do historiador britânico Eric Hobsbawm, aos 95 anos, no dia 1ºde outubro, apenas dois dias depois do falecimento de Hebe. Talvez, Hobsbawm seja um dos maiores, ou o maior historiador que já existiu no século XX.
É paradoxal que a morte de dois personagens reconhecidíssimos em suas áreas de atuação (uma no cenário de espetáculos e outro no cenário intelectual) tenha ocorrido no mesmo período, marcando sensações de luto e pesar tão distintos, o que me faz questionar a relevância de cada um desses falecidos para a história nacional e mundial. Hebe representava o Brasil velho, das elites, do populismo malufista, e do conservadorismo de uma classe média urbana que gostava de ver a ostentação e o luxo dos ricos e glamourosos, levando a reboque todo um povaréu que gostava de assistir no seu cortiço, na sua TV em preto e branco, as festas, personalidades e artistas que se sentavam nos elegantes sofás do auditório do programa da Hebe, mediante as perguntas e risadas de sua protagonista. Hebe gostava desse Brasil conservador, mantenedor de desigualdades sociais, no mito liberal-paulistano de que quem trabalha e faz crescer São Paulo também cresce como o Brasil. Foi no motor da ideologia do liberalismo-burguês que se fez a carreira e a imagem da Hebe, extremamente diferente do universo defendido por Hobsbawm.
Do alto de sua modéstia e humildade, Eric Hobsbawm poderia até ser um simpático convidado a comparecer ao sofá de um dos programas da Hebe, se ele não criticasse exatamente o que a falecida apresentadora brasileira mais defendia. Hobsbawm era socialista, de origem marxista-leninista, daqueles de "comer criancianhas", que fariam correr Hebe Camargo e todo o seu séquito de empresários, políticos e artistas neoliberais, com seu crachá de militantes do DEM ou do PSDB, e que integram com José Serra a imagem de um Brasil sem petistas sujos. Foi marcante a desavença que Hebe teve no começo dos anos noventa com a então prefeita petista, Luiza Erundina, quando esta recusou-se a participar de um dos programas da apresentadora, sendo criticada por Hebe, que, ao vivo, diante das câmeras, detonou o governo petista, além de falar abertamente das saudades do governo de "doutor Paulo" (um dos epítetos mais famosos que veio a ser conhecido o mitológico político corrupto, Paulo Maluf). Nos estudos históricos de Hobsbawm, Hebe Camargo teria um espaço garantido, na caracterização marxista dos meios de comunicação burgueses, como pólos de irradiação de alienação e difusão de ideologia. No tempo em que esteve no ar, o programa da Hebe, com seus altos índices de audiência nas camadas mais intermediárias e baixas da população, simbolizava a vitória da propaganda burguesa, no seu sucesso em vender o peixe do capitalismo, nas suas promessas de felicidade pela livre iniciativa e livre concorrência. Afinal, só quem é competente se estabelece, não é mesmo? E de competência, a finada Hebe conhecia muito!
Já para Hobsbawm, a competência capitalista da burguesia se dava pelo seu poderio dos meios de produção e pela apropriação das forças produtivas concentradas na mão de obra dos trabalhadores, obrigados a lutar por sua sobrevivência mediante o pagamento de um salário, deixando-se explorar para obter seu sustento. Hobsbawn era um dos maiores intelectuais marxistas da história e talvez seja o maior historiador do século XX. Sua contribuição à história da política e da economia, através de célebres obras como A Era do Capital, A Era das Revoluções e A Era dos Extremos, é absolutamente inegável. Os mesmos mecanismos de capital, que permitiram que celebridades ricas e luxuosas pudessem lotar o enterro e a missa de sétimo dia de Hebe, com seus carros e conversíveis bacanas, eram os responsáveis pela exploração e proletarização de milhares de pessoas, as mesmas que entregavam canapés e salgadinhos nos bastidores de programas de TV de vasta audiência, mas que no final do dia tinham que voltar para casa de ônibus, enquanto que os ricos e famosos voam para a Ilha de Caras com todas as despesas pagas, para lotar no final de mês, as manchetes das bancas de jornal.
Mas o falecido historiador britânico, morto aos 95 anos (com uma vida profícua e longeva, assim como a apresentadora de TV brasileira), não era apenas um homem de ciência ou da academia. Hobsbawm também era um admirador da arte, especialmente da música, e suas coletâneas e textos sobre o jazz (gênero musical originado com os negros norte-americanos, ex-escravos, também sujeitos a um brutal processo de exploração capitalista), tornaram-se célebres e muito comentados, resultando em obras tão boas e agradáveis quanto seus escritos históricos. A História Social do Jazz é uma das obras mais conhecidas de Eric Hobsbawn, e que até hoje serve como referência de estudo para os admiradores da música de Louis Armstrong ou Miles Davis. Assim como as estrelas do jazz, Hebe, na sua juventude, foi uma estrela do rádio, cantando sambas e boleros com sua irmã, também cantora, na década de 40 do século passado. Não obstante seu apelo conservador, a exemplo das mulheres trabalhadoras, que engrossavam as lutas sociais por igualdade de gênero entre as mulheres operárias nas fábricas, Hebe protagonizou o primeiro programa feminino, apresentado unicamente por uma mulher, no Brasil, na década de sessenta, trocando os cabelos negros pelos lendários cabelos dourados, tingidos de loiro, que fizeram sua fama, além da risada característica. Com seu programa na TV, Hebe simbolizava o Brasil das elites, mas principalmente de uma classe média conservadora, católica e pequeno-burguesa, que via nos programas da apresentadora, um pouco do glamour e do charme que estas queriam para suas vidas, dentro do modo de produção capitalista, tão criticado por Hobsbawm.
Assim, como duas faces invertidas de uma moeda, Hebe e Hobsbawm (cujos nomes coincidentemente começam com "H") saem desse mundo, mas entram na história de formas distintas, diferentes, mas interessantes e tão loquazes quanto. Para o choro contido ou escandaloso das estrelas de TV, que lotam em multidões igrejas e o cemítério a fim de render sua última homenagem a uma grande estrela da televisão, eu consagro aqui o luto bem mais discreto, mas igualmente emocionado, de milhares de acadêmicos, cientistas, estudantes, intelectuais, militantes sociais, integrantes de partidos de esquerda, professores e alunos que tanto estudaram as obras de Hobsbawn, ou ao menos ouviram falar delas, como um legado que, muito possivelmente, vai durar bem mais ou tanto quanto as imagens da finada Hebe, exibidas à exaustão nos programas de televisão, noticiários ou em futuros documentários sobre a televisão brasileira. De qualquer forma, independente das ideologias, a ambos dou o meu adeus. Que descansem em paz: Hebe Camargo e Eric Hobsbawm!!
Mas o falecido historiador britânico, morto aos 95 anos (com uma vida profícua e longeva, assim como a apresentadora de TV brasileira), não era apenas um homem de ciência ou da academia. Hobsbawm também era um admirador da arte, especialmente da música, e suas coletâneas e textos sobre o jazz (gênero musical originado com os negros norte-americanos, ex-escravos, também sujeitos a um brutal processo de exploração capitalista), tornaram-se célebres e muito comentados, resultando em obras tão boas e agradáveis quanto seus escritos históricos. A História Social do Jazz é uma das obras mais conhecidas de Eric Hobsbawn, e que até hoje serve como referência de estudo para os admiradores da música de Louis Armstrong ou Miles Davis. Assim como as estrelas do jazz, Hebe, na sua juventude, foi uma estrela do rádio, cantando sambas e boleros com sua irmã, também cantora, na década de 40 do século passado. Não obstante seu apelo conservador, a exemplo das mulheres trabalhadoras, que engrossavam as lutas sociais por igualdade de gênero entre as mulheres operárias nas fábricas, Hebe protagonizou o primeiro programa feminino, apresentado unicamente por uma mulher, no Brasil, na década de sessenta, trocando os cabelos negros pelos lendários cabelos dourados, tingidos de loiro, que fizeram sua fama, além da risada característica. Com seu programa na TV, Hebe simbolizava o Brasil das elites, mas principalmente de uma classe média conservadora, católica e pequeno-burguesa, que via nos programas da apresentadora, um pouco do glamour e do charme que estas queriam para suas vidas, dentro do modo de produção capitalista, tão criticado por Hobsbawm.
Assim, como duas faces invertidas de uma moeda, Hebe e Hobsbawm (cujos nomes coincidentemente começam com "H") saem desse mundo, mas entram na história de formas distintas, diferentes, mas interessantes e tão loquazes quanto. Para o choro contido ou escandaloso das estrelas de TV, que lotam em multidões igrejas e o cemítério a fim de render sua última homenagem a uma grande estrela da televisão, eu consagro aqui o luto bem mais discreto, mas igualmente emocionado, de milhares de acadêmicos, cientistas, estudantes, intelectuais, militantes sociais, integrantes de partidos de esquerda, professores e alunos que tanto estudaram as obras de Hobsbawn, ou ao menos ouviram falar delas, como um legado que, muito possivelmente, vai durar bem mais ou tanto quanto as imagens da finada Hebe, exibidas à exaustão nos programas de televisão, noticiários ou em futuros documentários sobre a televisão brasileira. De qualquer forma, independente das ideologias, a ambos dou o meu adeus. Que descansem em paz: Hebe Camargo e Eric Hobsbawm!!
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