quarta-feira, 18 de junho de 2014

ENSINO: Notas sobre a mendicância estudantil

Quando o célebre pensador suíço, Jean Piaget, desenvolveu na década de 40 do século passado sua teoria dos estágios, ele defendeu que, no processo de aprendizagem de crianças, os professores deveriam estar preparados para os quatro estágios de desenvolvimento cognitivo humano: do sensorial, passando pelo pré-operatório até o operatório concreto e por fim o operatório formal. Isso significava, em síntese, que as crianças só estariam preparadas para aprender o que elas teriam condições de assimilar, conforme o estágio de evolução de sua aprendizagem. Acredito que isso esteja mais aplicado ao processo de educação de crianças e jovens, e menos em adultos; mas não descarto que, no que tange ao ensino superior, ainda existe todo um processo de descoberta cognitiva que pode ser impulsionado pelos professores, para que os alunos universitários (agora chamados de acadêmicos) possam também ter uma experiência educacional rica e que dê frutos positivos.

Em mais de dez anos de experiência docente no ensino superior, eu já vi diversas situações, mas, recorrentemente, sempre ao final de cada semestre, eu percebo tanto em instituições públicas quanto privadas a reiteração de um fenômeno que eu agora denomino figurativamente como "esmola acadêmica" ou "mendicância estudantil". Trata-se do expediente comum a alguns alunos (com a conivência de alguns professores), de se atribuir aleatoriamente notas, com aumento ou distorção das pontuações originais obtidas pelos alunos, para que os mesmos possam passar em determinada disciplina ou matéria. Eu chamo de esmola porque esses aumentos de nota sempre dizem respeito a décimos ou a um máximo de um ou dois pontos que são atribuídos a mais a determinados alunos, que geralmente chegam aos seus professores com alguma história triste, para justificar um desempenho acadêmico ruim. São desculpas e justificativas variadas, que vão desde motivos de doença pessoal ou em pessoa da família, viagens em serviço e atribulações de trabalho ou   até a perda de um emprego, o insucesso financeiro, o fim de um casamento, problemas com os filhos, a morte de um familiar ou até mesmo a perda de uma namorada.

Alguns professores, compadecidos com os problemas pessoais desses alunos, transigem e alteram suas notas. Alguns devem pensar: "Afinal de contas, isso não é nada demais, o que custa auxiliar o próximo num momento difícil!" (nesse momento, colegas professores optam pela saída cristã do problema); ou então se saem com a alternativa pragmática: "Tanto faz se eu aprovo ou reprovo ele por aqui, pois, no final das contas, quem vai reprovar a atuação dele é o mercado quando ele sair daqui, e não eu!". De qualquer forma, o efeito que isso produz no aluno que consegue escapar por pouco da arapuca do sistema educacional é geralmente sempre o mesmo: a sensação de que passou na matéria apenas por uma ajuda, uma "mãozinha" do professor. No sistema interno e semestral de avaliação de professores por alunos, principalmente nas instituições privadas, a impressão que fica é que os professores mais bem avaliados sempre são os mais "caridosos"; ou seja, aqueles que passam de qualquer jeito todos os seus alunos.

Ora, o sistema de avaliação brasileiro ainda segue, na maciça maioria de suas instituições de ensino, o anacrônico sistema de notas por pontos e não por conceitos. Geralmente os alunos são avaliados de 0 (zero) a 10 (dez) pontos, totalizando em testes escritos uma média suficiente para que sejam considerados aprovados. Numa sociedade capitalista onde prevalece o ideal liberal-individualista de sucesso por méritos próprios, o sistema de pontos reproduz a lógica individualista do Do it yourself, materializando-se na escola o que acontece nas relações econômicas, no tocante a livre iniciativa e livre concorrência. Na seleção natural das escolas somente os mais bem pontuados (os mais fortes) são aprovados, ocorrendo o mesmo fenômeno nos concursos para a obtenção de cargos públicos.

O método de ensino pregado por teóricos e professores como Piaget ou Paulo Freire levava em conta a participação do professor na vida do aluno, durante o processo de aprendizagem. Nada mais justo e interessante. O problema é que no modelo do ensino superior brasileiro, principalmente no que tange ao ensino noturno (por si só uma verdadeira aberração pedagógica, porque ninguém deveria ser obrigado a vir estudar de noite), essa participação docente é quase impossível, uma vez que as cargas horárias das disciplinas são limitadas, o tempo que o aluno tem com o professor é exíguo fora de sala de aula, e por mais que o professor faça atividades que despertem o aluno cognitivamente, ainda existe a barreira biológica do stress e do cansaço a que estão submetidos milhares de estudantes de faculdades e universidades com cursos noturnos no Brasil; pois são eles majoritariamente trabalhadores subalternos do setor privado ou funcionários públicos de cargos modestos ou de baixo escalão. São homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras que chegam muitas vezes cansados em sala de aula, e se não dormem durante a aula não conseguem de outra forma interagir com seus professores. Como resolver isso?

Em seu livro "Pensando o ensino do direito no século XXI", o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Horácio Wanderley Rodrigues, propõe um método de avaliação que leve em conta o discernimento e a capacidade do aluno de solucionar problemas e tomar decisões, assim como fazem os membros da comunidade jurídica, nos estudos de casos levados ao conhecimento de juízes, promotores e advogados. O problema é que, muitas vezes, os alunos nas instituições de ensino não conseguem se comportar como juristas, e muitas vezes, não tem sequer o que Piaget define como uma aptidão cognitiva para desenvolver uma experiência sensorial que lhe dê a ideia de algo. Traduzindo em simples palavras eu diria que o estudante de Direito não sabe que é estudante de Direito. O Zé, a Maria, a Raimunda ou o Joaquim que trabalha durante o dia na loja, na repartição, no banco ou no supermercado, não consegue à noite, na sala de aula, transformar-se no acadêmico que tem diante de si casos e soluções jurídicas que precisam ser adotadas por um futuro protagonista do Direito. Na verdade, na sala de aula, no lugar de estudantes de Direito, o professor tem diante de si o mesmo Zé da loja, a Maria da repartição, a Raimunda do banco ou o Joaquim do supermercado, e com eles, todos os problemas que eles trazem consigo como repertório pessoal e que levam para a aula, atrapalhando o seu processo de aprendizagem.

Sou totalmente favorável a um sistema de avaliação que não se limite a apreciação do rendimento acadêmico do aluno baseado tão somente em pontos atribuídos a um teste escrito, como um exame simulado da Ordem dos Advogados ou uma cópia de prova em concurso público. Acredito que a participação em seminários, o debate em sala de estudo de casos, a redação de peças escritas em exercícios práticos, a resenha de livros e a feitura de artigos ou projetos supre bem as deficiências cognitivas de quem quer realmente se dedicar ao estudo de temas jurídicos e ser um futuro profissional do Direito ou das Ciências Humanas com uma boa e sólida formação intelectual. Porém, eu alerto para os obstáculos traçados acima, principalmente no que diz respeito ao perfil social e cultural dos estudantes que chegam aos milhares, todos os semestres, nas portas das faculdades pelo Brasil afora.

Temos o desafio como educadores de transformarmos milhares de Josés e Raimundas em verdadeiros "Doutores Josés ou Doutoras Raimundas". Para isso, é necessário que uma barreira cultural aparentemente intransponível seja superada pelos professores universitários diante de seus alunos nas faculdades de Direito. A superação de papeis sociais estigmatizados e interiorizados por alunos no momento em que entram no ensino superior, que os leva a uma conduta de submissão não apenas econômica, mas também existencial (alguns na sociologia chamam isso de biopoder), limitando seus processos de aprendizagem, a ponto dos alunos ingressarem num curso tão importante como um curso jurídico com o comportamento de quem está ali fazendo apenas um passeio, ou lidando com tipos exóticos de paletó e gravata, tão diferente dos tipos que eles encontram na realidade do seu dia a dia.

Tal dilema, a meu ver, só poderá ser inicialmente concretizado se conseguirmos, como educadores, formular através dos textos de estudo não apenas um aprendizado, mas também um convite. Alunos devem ser convidados a serem acadêmicos, a fazerem parte do riquíssimo universo cognitivo das ciências humanas, dentre elas o Direito, seja mediante atividades de pesquisa e de campo, estudo de casos, e, principalmente, o desenvolvimento de uma relação afetiva com a biblioteca. Os livros devem ser vistos não como obstáculos, mas sim como artefatos sedutores de uma gama de conhecimentos que podem ser descobertos, numa experiência prazerosa em que a sala da biblioteca deixa de ser um ambiente frio e anódino, por conta do ar condicionado ou o mofo de papeis e jornais, e passe a ser um ambiente onde a responsabilidade da aprendizagem a ser cobrada através da avaliação não seja vista como um fardo, mas uma conquista. Obviamente que, nesse sentido, só será possível operar com tais transformações se as instituições dispuseram de uma estrutura física e material mínima, além de um pessoal devidamente habilitado, que tenha condições de conduzir o aluno convidado ao conhecimento, durante sua caminhada de descoberta.

Acredito que somente através da aprendizagem alunos se tornem autossuficientes a ponto de preservarem a autoestima e superarem os problemas pessoais, não deixando que eles atrapalhem ou confundam sua vida acadêmica. Como um Demiurgo, no processo de aprendizagem o professor atua numa construção de mundos, onde o mundo do Zé ou da Maria não é mais o mundo da família ou do ambiente de trabalho, mas sim o mundo acadêmico. Eles tem que saber que esse mundo existe e qual é o seu papel nele. Somente assim, creio, poderemos superar o triste e constrangedor fenômeno da "mendicância estudantil" que aparece em todo final de semestre, após o processo de avaliação, quando estudantes chorosos, com um olhar pedinte, que lembra o personagem do Gato de Botas dos filmes do Shrek, aparecem implorando para ser passados em uma disciplina. Enfim, o estudante deveria se lembrar sempre do adágio popular ao assumir uma posição de pedinte diante de seus professores: "esmola demais o cego desconfia". Ao invés de esmolas de pontos, vamos dar conhecimento aos nossos alunos!!

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