segunda-feira, 29 de agosto de 2016

ARTIGO: Se o marxismo é o ópio dos intelectuais, o capitalismo é a cocaína dos neoliberais!

Recentemente foi relançada  a grande obra "O Ópio dos Intelectuais", do célebre sociólogo francês do século XX, Raymond Aron (1905-1983). No livro, escrito originalmente em 1955, Aron expõe nas entrelinhas porque rompeu com grandes intelectuais de sua época, como Sartre e Merleau-Ponty, e sob o pressuposto de denunciar os abusos totalitários do stalinismo e diante da adesão de muitos pensadores europeus ao chamado eurocomunismo, ele tentou dissecar os porquês da simpatia de boa parte da academia e do segmento universitário às posições políticas de esquerda.

Antes de ser um crítico da esquerda, Aron era um crítico do marxismo, principalmente na sua forma mais partidarizada e autoritária, representada pelo Partido Comunista Soviético e seus métodos de recrutamento, baseado num stalinismo que identificava a luta de classes como uma verdadeira crença religiosa a ser seguida, e a vanguarda revolucionária, representada pelo partido, como os santos da Revolução proletária. O livro foi publicado, antes da descrição dos crimes praticados durante o regime totalitário de Stalin, na União Soviética, por seu sucessor, Nikita Kruschev, no XXII Congresso do Partido Comunista, e parecia ter um tom premonitório: os comunistas eram os inimigos da democracia. Só que, aqueles que hoje reeditam e propagandeiam sua obra, na tentativa de criticar duramente todos os que assumem posições políticas de esquerda, esquecem-se da conjuntura e do todo o contexto político global em que foi publicada a obra do pensador francês, bem diferente dos dias globalizados de hoje.

Na época de Raymond Aron, os Estados Unidos da América e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS, estavam no apogeu da "Guerra Fria"; período conhecido nos livros de história como o de uma tensão geopolítica constante, de conquistas de territórios, por meio da revolução, da contrarrevolução, espionagem e fomento de conflitos, competição desmedida, e, principalmente, da propaganda entre dois mundos ideológicos gravitados em torno de nações com visões de mundo e sociedade totalmente diversas. Como peças em um tabuleiro, as nações do planeta, inclusive o Brasil, viam-se disputados por esses dois grandes grupos, que como num jogo de futebol, representavam, de um lado, o "império do mal" comunista, pintado nas cores totalitárias do stalinismo, ou o "reino da liberdade" capitalista dos norte-americanos, da riqueza, democracia e do livre consumo dependendo do ponto de vista e posição política adotados.

Entretanto, apesar de diagnosticar com sensatez e acuidade histórica todos os abusos do sovietismo, e denunciar as revoluções populares que desaguaram em ditaduras, como o caso emblemático de Cuba e da própria União Soviética, creio que Aron peca, principalmente, por uma falta de honestidade intelectual, como pensador de seu tempo. É inquestionável que a intensidade das paixões políticas do século XX, fermentadas por ideologias, serviu para um certo emburrecimento, quando não uma cegueira de boa parte da comunidade acadêmica internacional. A esquerda militante classista, inspirada em grandes líderes de seu tempo, como Stalin na Rússia, Mao-Tsé-Tung na China, Fidel Castro em Cuba ou Ho-Chi-Min, no Vietnã, viu o sonho de uma sociedade mais justa terminar sob a bota de tiranos, na formação de ditaduras que eram somente engrenagens opressoras de um partido sobre o povo, e não do proletariado sobre seus algozes. No Brasil, durante décadas, Luiz Carlos Prestes foi a expressão mais imediata do líder político da vanguarda, que, como um grande timoneiro, conduziria a classe operária ao paraíso do fim da opressão burguesa-industrial. A História mostrou um resultado diferente, é verdade, mas a direita conservadora ou neoliberal, também teve seus ídolos, que também fracassaram na tarefa de conduzir uma sociedade de "homens livres" à glória da acumulação individual de capital, no reino da felicidade do mercado. Seus ícones como Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América, Margareth Thatcher, na Inglaterra, ou Jacques Chirac, na França, não conseguiram demonstrar que os sistemas que defendiam eram melhores, seja pela intensa desigualdade social que criaram e mantiveram (a greve dos mineradores contra o governo Thatcher, na Grã Bretanha, foi um exemplo disso), seja pelos governos autoritários que respaldaram, financiando ditaduras militares e grupos contrarrevolucionários somente para desestabilizar (ou até mesmo destruir) governos de esquerda, democraticamente eleitos, nos países latino-americanos e africanos, como foi o caso do financiamento do sangrento golpe no Chile, em 1973, com a deposição e morte do presidente democraticamente eleito, o socialista Salvador Allende, e ascensão do ditador Augusto Pinochet.

Para mim, a principal observação que faço à crítica de Aron é que, em sua preocupação de querer parecer um brasileiro instruído, militante político tucano de classe média supostamente "em cima do muro",  e espectador da rede Globo,o pensador francês acabou por omitir talvez um dos maiores dilemas e a grande sacanagem do capitalismo, que o tão criticado Karl Marx pôde diagnosticar tão bem: o fenômeno da exploração.

É a exploração, seja a econômica nos tempos da revolução industrial de Marx, ou mesmo a que se dá hoje em tantos outros aspectos, como a exploração social, cultural, midiática e até sexual, que o capitalismo, enquanto sistema econômico, encontra seu cerne e seu grande motor motivador. Hoje, os teóricos e jornalistas da Nova Direita brasileira ou setores neoliberais de todo o mundo exortam o quanto a Inglaterra, país que deveria ter sido o berço do proletariado revolucionário, protagonizado por Marx e Engels em seu "Manifesto Comunista", e que poderia ter sido a grande vanguarda, a grande nação porta-voz do Novo Mundo da utopia socialista, tornou-se uma emergente e forte nação capitalista, onde a exploração do homem pelo homem cedeu espaço à pujança e a obtenção de direitos sociais, como saúde, moradia, emprego e educação, sem que fosse necessário abolir a propriedade privada e instituir uma ditadura. Esses mesmos defensores do modelo capitalista britânico ficaram chocados quando os ingleses decidiram em plebiscito não mais participar da União Europeia (e agora, José?). O problema é que esses mesmos leitores e divulgadores dessa crítica jogam para o tapete um outro segmento tão ou mais explorado, que fomenta hoje a maior parte dos problemas da Europa atual: os imigrantes.

Assim como os pensadores e intelectuais esquerdistas teriam o marxismo como sua pseudoreligião, cegados ideologicamente, segundo a crítica de Aron, a um determinismo irracional, quase positivista, de aceitar como crença uma inevitável condução da sociedade ao socialismo, os apologistas da direita, especialmente os representantes de doutrinas liberais e economicistas, acreditam ainda hoje que o capitalismo é a solução natural para resguardar um reino da felicidade baseado na liberdade individual, pelo incentivo à livre iniciativa. Permeada de um completo darwinismo social, encontrado antes na teoria de Spencer, a doutrina liberal ou neoliberal demonstrou que, de moderna não tem nada, e na verdade é tão antiga como o pensamento escravagista ou feudal, uma vez que pressupõe uma ordem social entre dominadores e dominados. Afinal, enquanto alguém lucra e desfruta das benesses materiais, outro tem que trabalhar e produzir pra sustentar esse lucro. Não existem banqueiros sem funcionários, não existe a fábrica e nem os industriais sem os operários e não existe o escritório do chefe, sem seus subordinados, numa estrutura supostamente imutável, como pensava o filósofo conservador Edmund Burke, onde uns nasciam para servir, outros para dominar. Até mesmo no cinema, diversos filmes de ficção científica, clássicos ou inspirados em histórias em quadrinhos, revelavam essa visão natural de uma sociedade de classes dividida entre interesses antagônicos, onde uns subjugam para não serrem subjugados. Entretanto, no lugar da aliança de classes pensada no filme Metrópolis do cineasta alemão Fritz Lang (1927), deu-se a rebelião e o conflito, como aquele observado nas cenas do filme Expresso do Amanhã (2013), do cineasta coreano Jo-Hoo Bong. Filmados em épocas distantes, estas duas obras cinematográficas representam bem uma realidade de revolta com o sistema capitalista que vinha desde a Comuna de Paris, do século XIX, passando pela revolta dos marinheiros russos no Encouraçado Potenkin, em 1905, até chegar aos Occupy Wall Street, contra a expansão capitalista globalizada dos dias de hoje, gerando um futuro distópico, onde, mais uma vez, os menos abastados economicamente são os mais oprimidos politicamente, porque são continuamente escravizados, dentre as engrenagens medonhas de um sistema que, na paródia da máquina (um robô, no filme de Lang, e um trem, no filme de Bong),em contrapartida, lhes vende a imagem de um sistema democrático e protetor.

E qual a solução para o livro de alguém que denuncia um embuste, quando na verdade sua própria crítica do embuste também é embusteira? O  "Ópio dos Intelectuais" denuncia uma droga que entorpecia o pensamento dos intelectuais do século passado, sem lhe mostrar o antídoto, revelando, na verdade, uma postura passiva de aceitar as coisas como elas são, limitando-se a simplificar o debate, ao dizer que a história não se resume a luta de classes. Ora, ao elogiar o americanismo, menos como ideologia e mais como um sistema de conceitos como o de respeito à Constituição e à liberdade individual, o culto da ciência e da eficácia, Aron desdenha do pensamento europeu (notadamente o Francês) e exorta um modo de produção que, também não deixa de ter ares de um culto. Nesse sentido, o teórico francês propõe substituir, tão e simplesmente, um ópio por outro.

Ora, sou mais simpático ao livro "Multidão" do pensador italiano Antonio Negri, feito às quatro mãos juntamente com o pesquisador norte-americano, Michael Hardt. Nesse livro, os autores reconhecem que a velha dicotomia marxista entre burguesia e proletariado é insuficiente para se compreender as diversas facetas da desigualdade entre os homens nos dias de hoje, face a pluralidade cultural e social. Mas, ao falar que hoje é mais conveniente falar de uma estrutura social em redes do que em classes, os teóricos citados não retiram da pauta da sociedade a luta contra a exploração e todas as formas opressoras de dominação. Isto implica em falar de uma opressão tanto do capital econômico, quanto de um capital imaterial, intelectual. A opressão de gênero, racial e de orientação sexual soma-se a opressão de classe, e a crítica marxista sobre as formas de opressão ainda persiste, mesmo que Raymond Aron tentasse "tapar o sol com a peneira", ao propor a solução individualista do "intelectual responsável", aquele que participa dos partidos, mas prioriza aqueles que mais valorizem o homem. O intelectual de Aron é aquele que não limita a assinar manifestos contra as injustiças, participa das ações políticas, mas não se vincula a partidos ou Estado algum. Essa alegoria poderia estar presente nas "Marchas de Junho" de 2013, quando milhões de pessoas, sem vínculos de ideologia ou preferência política, lotaram as ruas dos grandes centros urbanos do Brasil, numa onda espontânea de grande manifestações e protestos de rua. Entretanto, tal figura seria suficiente num período de radicalização política? Não teria ele que assumir um lado?

Insisto em dizer que a obra de Aron é datada, por conta de que o vibrante sociólogo francês não teve tempo de viver para observar o apogeu da globalização, o fim do bloco soviético e da Guerra Fria, o rearranjo de forças políticas com a formação da União Europeia, a Guerra na Bósnia, o surgimento do terrorismo fundamentalista islâmico e nem os atentados às Torres Gêmeas no World Trade Center. Se ele tivesse visto tudo isso, talvez se juntasse a toda uma nova categoria de intelectuais, que descrentes tanto dos ideais da velha esquerda quanto da nova direita assumida, buscariam traçar terceiras vias possíveis, como teóricos da linha de Antony Giddens, ou mais radicais como Slavoj Zizek. Destaco aqui, como contrapartida ao pensamento esboçado no "Ópio", a relevante obra do pensador húngaro, Istváz Mészaros, "Para Além do Capital". No livro, o filósofo discute que o capitalismo fundou-se num tripé, formado pela aliança entre capital, trabalho e Estado. Assim, criticar o socialismo por defender um Estado social forte, é de uma incoerência suprema, tendo em vista que o capitalismo também necessita do Estado para sobreviver. Isso significa dizer que, se os bolcheviques, na Revolução Russa, tomaram de assalto o poder do Estado, para estabelecer um governo opressivo, os capitalistas neoliberais burgueses também não fizeram diferente, ao se impor pelo poder dos lobbies dos bancos e das grandes corporações capitalistas, vencendo eleições e estabelecendo governos protecionistas e predatórios do capital dos países vizinhos, especialmente os da América Latina, que resultam hoje num surto de imigrações clandestinas, dos expropriados mexicanos até seu poderoso país vizinho, atravessando a fronteira em busca de emprego e comida.

Também merece destaque para compreender melhor nossos tempos (e também saber como pensam os intelectuais de hoje) ler a célebre obra "O Capital no século XXI", do economista francês Thomas Piketty, além da obra de seu compatriota, mais à esquerda, Alan Badiou, autor de "A Hipótese Comunista". Em ambos os livros, seus autores buscam demonstrar que o capitalismo não é o "reino da felicidade" como apregoam seus defensores neoliberais. Na obra de Piketty, observamos que 10% dos mais ricos detém 60 a 70% da riqueza global. Isso significa dizer que, enquanto uma família passa fome na Somália, sem ter um pedaço de pão para comer, bilionários multiendinheirados, como Rupert Murdoch, do extinto semanário inglês News of the World e um dos magnatas da mídia mundial, sorvem vinhos caríssimos a bordo de jatinhos. Felicidade de uns, tristeza de outros? A ordem natural das coisas? Basta se esforçar para conseguir o que quer? Essa lorota liberal foi pregada deste os tempos de Adam Smith, o que demonstra que a cantilena capitalista de nova, não tem nada. Nem é nova a forma como a ideologia dos mais poderosos faz ver que errados são aqueles que se prendem a uma teoria política e econômica que propôs uma intensa revolução social, como se fosse uma crença, e não aqueles que defendem a manutenção de um modelo brutal e absolutamente injusto de exploração. "Não existe almoço grátis", dizem os capitalistas e articulistas de revistas como a "Veja". O almoço pode não ser de graça, mas a solidariedade é. Nesse sentido, até o Papa Francisco junta-se em sua crítica a uma cruzada anti-capitalista. Será que o Vaticano, com seu poder milenar, também foi contaminado pelo "ópio intelectual" do marxismo?

Já o livro de Badiou é excelente, por instilar no leitor uma curiosidade intrépida, ao propor uma retomada do termo "comunista", não mais como adjetivo, mas sim como um novo conceito histórico. Conterrâneo mais jovem de Aron e ainda em atividade, juntamente com Zizek e Negri, ao analisar os fracassos da experiência soviética e da Revolução Cultural chinesa, no século XX, Badiou utiliza-se de uma comparação científica com o "Teorema de Fermat", na matemática, que permaneceu sem solução durante três séculos, após várias experiências. Nesse sentido, fracasso não se confunde com abandono, no momento em que reiterar ou insistir numa experiência não significa necessariamente que se vá novamente incidir em erro. O "comunismo" enquanto hipótese é uma ideia política que ganha novos contornos no século XXI, e que não passa mais necessariamente por Estados ou partidos. É na mobilização social e nas novas formas de convivência civil que se pode conceber uma nova experiência que dê lugar a velhos esquemas opressivos de exploração.

Portanto, diante de um arcabouço teórico tão ou mais intenso do que aquele propagado pela Nova Direita e seus meios de comunicação, acredito ser um chamado à inteligência ter acesso a pontos de vista diferenciados, aguçados com a realidade atual de conflitos que vivemos, do que, simplesmente, reeditar e propagandear uma obra antiga, de um pensador que não concebeu os tempos vividos neste século, pois não teve tempo de viver pra isso. Isto é melhor do que, simplesmente, utilizar um livro  antigo de Aron como instrumento político, tão somente para desmoralizar o pensamento de esquerda. Nesse sentido, enquanto os intelectuais marxistas entorpecem-se de seu ópio ideológico, os de direita, defensores do capital, buscam endinheirados sua cocaína mental, achando que um sistema baseado na exploração é a única e melhor saída para a humanidade. Prefiro ficar nos meus vícios ideológicos do que ventilar nos meios de comunicação tanta besteira!

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