A semana anterior lembrou-me desde o escritor uruguaio Eduardo Galeano, com seu célebre livro "As veias abertas da América Latina"(dado de presente por Hugo Chavez a Barack Obama), até o livro do jornalista chileno Héctor Pavón, sem tradução para o português, chamado El 11 de septiembre...de 1973, que tem prefácio do engajado diretor inglês Ken Loach. A primeira obra trata da realidade política da América Latina, do atraso de sua elite agrária de berço feudal e do processo de dominação dos países mais ricos do hemisfério norte sobre os mais pobres do hemisfério sul. O segundo livro narra a história do golpe militar no Chille, em 1973, quando o ditador Pinochet chegou ao poder, e as últimas horas do presidente deposto Salvador Allende, numa data impressionantemente coincidente com a do ataque às Torres Gêmeas, no muito conhecido atentado no World Trade Center de Nova York, em 2001. São livros portanto que tratam de momentos históricos, de uma realidade muito próxima da nossa, sobretudo num país que passou 24 anos sob o jugo dos militares, num bem sucedido golpe, que também derrubou um presidente legitimamente empossado e produziu décadas de obscuridade, repressão e ausência de democracia no país.
Entretanto, o que aproximou Galeano de Pavón em termos comparativos, foi a sucessão de crises que, internamente, em nossa realidade nacional nos deparamos no Senado, bem como a nível externo presenciamos na América Central, com o golpe militar que tirou o presidente constitucionalmente empossado no cargo, Manuel Zelaya. A meu ver as conexões estão feitas (já que este blog trata de conexões) entre o processo em curso para se evitar (ou não) a "fritura" do presidente do Senado, José Sarney, em prol da governabilidade, e os fatos que engendraram a queda do poder do presidente hondurenho.
No Brasil, o governo Lula, não sem muito constrangimento, tenta dar apoio até o final ao enrroladíssimo e fragilizado Sarney, diante de denúncias e mais denúncias que se acumulam de benefícios escusos, salários exorbitantes pagos pelo erário público para apadrinhados nomeados, atos secretos que sequer foram publicados no Diário Oficial, empréstimos ilegais e toda sorte de maracutaias internas que enlamearam de vez a imagem do Senado. Como num abraço de afogado, o governo tenta salvar Sarney na desesperada tentativa de salvar uma aliança da qual o governo agora não tem mais como recuar, a controversa e polêmica aliança com o PMDB (que já tratamos aqui em matéria anterior deste blog). Da manutenção de Sarney no cargo depende a continuação da tão necessária aliança, da permanência de Sarney no poleiro tão repleto de sujeira, depende a viabilidade da eleição da candidata do governo, Dilma Roussef, ao tão sonhado sonho de prosseguimento do projeto petista de poder, e da própria volta futura ao poder de Lula, já pensando numa candidatura de retorno em 2014, em plena Copa do Mundo no Brasil.
Como um Kirchner argentino, com astúcia moderada e calculado ânimo eleitoral, vale tudo no projeto governamental de manutenção do poder e viabilidade de sua candidata, inclusive, até mesmo valer-se do velho emprego do futebol como instrumento de proselitismo político, visto a recente vitória do Corintians (time do presidente) como campeão da Copa do Brasil. Sobre isso falaremos mais adiante, mas sobretudo é preciso analisar qual essa lógica que o governo vem adotando e que cálculo é esse, tramado por um astuto Lula, que vê tanto na preservação do último dos coronéis do Brasil no Senado, como na ascensão de Ronaldo Nazário e seus companheiros de chuteira, o caminho aberto para sua sucessão presidencial, e a vitória de Dilma, a primeira mulher a chegar à presidência da república.
Voltando ao livro de Pavón, sobre o golpe militar no Chile, percebe-se que ao vencer a eleição presidencial em 1971, como o primeiro marxista, militande do Partido Socialista a chegar ao poder no Chile, Salvador Allende cometeu erros básicos, hoje não mais ignorados pelo mais ignorante militante político de esquerda, que é a impossibilidade de governar sem alianças. Que me perdoem os ruidosos militantes trotskistas e esquerdistas do PSTU ou do PSOL de Heloísa Helena, mas governar pela via democrática, através de vitórias eleitorais, sem o apoio da burguesia, é impossível, no âmbito de uma sociedade capitalista. Foi esse o principal dos erros cometidos por Allende ao chegar ao poder, e que lhe custou o cargo de presidente e a vida. Adotando as linhas gerais de um programa democrático-popular de profundas reformas na economia e na sociedade chilenas, fiel ao seu ideário marxista, Allende estatizou empresas privadas estrangeiras; nacionalizou bancos e minas de cobre; democratizou o ensino, permitindo o acesso no mesmo nível de crianças e jovens de camadas sociais diferenciadas no mesmo ciclo; promoveu a reforma agrária e democratizou o acesso ao poder para os trabalhadores, recebendo associações e sindicatos. Por outro lado, a ausência de apoio político da direita, e do centro, especialmente da Democracia Cristã, levou ao fortalecimento de setores da média e grande burguesia, insatisfeitos com as reformas populares adotados pelo governo socialista chileno. Não demorou para que o caos, os boicotes de produtores e distribuidores ao governo, a crise de abastecimento com o desaparecimento de gado e produtos nos supermercados, o ágio, a especulação, e até mesmo atentados com cortes de energia, de água e gás fizessem com o que a vida do cidadão chileno se tornasse um inferno, insuflando os militares, através das forças mais reaçonárias, contrárias às mudanças, totalmente subordinadas aos interesses do capital internacional, e herdeiras de um passado fascista, a assombrar todo o continente latino-americano, como bem desenvolveu Galeano em seu célebre livro.
Talvez para evitar ser um "Allende de ocasião", o presidente Lula ao chegar ao poder tratou, antes mesmo de ser empossado, de adotar uma postura conciliatória, mediante o seu "carta aos brasileiros", nas eleições de 2002, manifestando claramente sua intenção de realizar um governo de reformas, mas sem as mudanças estruturais defendidas por seu partido, há mais de vinte anos; bem como em sua reeleição tratou de arquitetar todo um caminho para obter o apoio político da legenda mais disputada da política nacional, o lendário PMDB, que em todos os governos desde o renascimento da democracia no país, necessitaram do apoio da antiga agremiação do também mítico Ulisses Guimarães. Mesmo sabendo que hoje, o PMDB é uma colcha de retalhos de interesses individuais e corporativos, desde os grupos políticos mais atrasados (representados pelo clã Sarney), até posturas mais liberais, como a de um Roberto Requião no Paraná, Lula fez de tudo (e continua fazendo) para manter o PMDB aninhado com o governo, sob pena de comprometer a própria sobrevivência política do governo, agora totalmente refém de um controverso e desacreditado Renan Calheiros, com sua trupe.
Para manter Dilma, e manter o apoio do PMDB, tornou-se necessário então, a qualquer custo, salvar Sarney. Mesmo sendo sabido que durante décadas, não só no atrasado Maranhão no governo estadual, mas também no Congresso, a família Sarney sempre encarou o poder público como balcão de privilégios (como todos os políticos tradicionais brasileiros), e a ruidosa avalanche de escândalos envolvendo seu principal patriarca, o governo Lula não viu outra solução senão puxar a rédea da bancada petista no Senado, fazendo com que o partido (até outrora guardião da ética no Legislativo) tivesse que arcar com o vexame de ver seus parlamentares recuarem, após uma declaração pública dos senadores petistas de que iriam apoiar o afastamento de Sarney da presidência do Senado, e após um constrangido Aloísio Mercadante ter visto o tapete da bancada petista ser puxado pelo governo, no mais público e ostensivo puxão de orelhas da história do Congresso Nacional, impedindo seus parlamentares de se unirem ao coro dos descontentes, na oposição, que lá viram uma oportunidade singular de atingir o principal aliado do governo.
Talvez Lula não queira acabar como Allende, ou não queira terminar como Zelaya, presidente hondurenho, também apeado do poder mediante um golpe de Estado. O que ocorre é que, em prol da tão acalentada governabilidade e pela manutenção de um projeto político de poder, o presidente acaba por comprometer sua própria popularidade, e a legitimidade política de seu partido, ao trocar os pés pelas mãos, vender sua alma de Fausto ao diabo pemedebista, e deixar permanecer no poder da câmara alta do legislativo nacional, um político coronelista desacreditado, muito "mal na foto" com seus pares, que agora pedem (de maneira oportunista ou não, sua cabeça), em nome da ética ou em por interesses eleitoreiros da oposição. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, e na lógica do governo, caso sua bancada no senado apoiasse a queda de Sarney, tal queda significaria o fim da aliança com seu principal aliado, o fim do sonho de ter um pemedebista na vice-presidência da chapa de Dilma, o fim da obtenção de uma maioria no Senado, e o fim do próprio projeto petista de poder, pela inviabilidade de governar ou de eleger um governante sem o apoio do PMDB. De fato, a meu ver, a entrada tão profunda do partido de Sarney nas entranhas do governo federal, acabou revelando uma síndrome de dependência que nem o pior dos viciados conseguiria se livrar. Diante de tal quadro, agora vale tudo, e na relação custo-benefício, segundo o governo, é melhor que a fruta caia por si própria, de tão podre, do que ser ajudada a cair. Portanto, para o governo, se Sarney cair, que caia por motivação de seu próprio partido, e não com a ajuda do PT ou do governo.
Enquanto isso, apesar da opinião pública desacreditar cada vez mais do Senado, o presidente Lula tenta compartilhar sua popularidade com seu time de coração, não deixando de fazer com o Corintians o mesmo que o governo militar da ditadura fez com a seleção brasileira de 70, após a vitoriosa conquista do tricampeonato mundial. Naquela época, jingles foram cantados, slogans foram montados, adesivos foram fixados nos carros, num poster de um Pelé triunfante, de braço erguido, num país onde os perseguidos pela ditadura gritavam, mediante tortura, nos porões dos quartéis, enquanto nas ruas, uma população carnavalesca entoava a vinheta do governo, erguendo a taça Jules Rimet, com o refrão: "esse é um país que vai pra frente", ou segundo o slogan: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Agora em 2009, Lula, recebendo com entusiasmo e vestido com a camisa do Timão, a um também remediado Ronaldo Nazário, com seus quilos a mais, mas vitórias diretamente proporcionais ao seu peso, parece dar um recado bem claro ao eleitorado: "se o Corintians vai mais e pode ser campeão da Libertadores no ano que vem, por que também não Dilma?".Enquanto isso, no aeroporto de Congonhas, uma alegre torcida corintiana em coro, recebe seus jogadores com o sugestivo grito de guerra: "ão,ão,ão, a Dilma é do Timão"! Mais proselitista do que isso, impossível!!
Ter Dilma presidente no ano que vem ou o Corintians erguendo a taça na Libertadores, é dificil saber qual é o projeto mais acalentado por Lula, mas o que se sabe com certeza é que, com Dilma ou sem Dilma ou com ou sem Timão, o que Lula não quer é terminar como Salvador Allende no Chile ou como Zalaya em Honduras, mesmo que seja às custas de manter um fritado Sarney no Senado. Até os próximos capítulos!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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Mandei trechos do meu trabalho sobre Bourdieu para o teu e-mail, que eu imaginei que seria: fernando.alves@domalberto.edu.br. Acertei?
ResponderExcluirAh, e sobre o trabalho de criminologia, sobre o documentário JUSTIÇA, não consegui enviar por TAREFAS, mas deixei contigo o meu parecer, no dia da prova, espero que seja contado. Abraço!
ResponderExcluirAhh, caso o e-mail não tenha chegado, o meu é: paulaschmitt@tj.rs.gov.br ou paula_h_s@hotmail.com.
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