quarta-feira, 2 de setembro de 2009

PERSONALIDADE: Belchior e a "Filosofia do Sumiço"

Não tem escândalo no Senado, não tem crise econômica mundial, não tem aquecimento global e nem a pandemia da Gripe A, o que interessa ao brasileiro mesmo, nessa sociedade midiática, é falar de seus ídolos, cultivar mistérios sobre personalidades, imolar em praça pública com capas de discos nas mãos, seus músicos prediletos, como a impressionante romaria global que foi vista com a morte de Michael Jackson. E a cada mês, aparece um outro caso fascinante, outra notícia de interesse coletivo que, puxada pela mídia, propaga-se até ganhar as dimensões de uma avalanche e tomar a atenção de todos os espectadores.

Foi esse o caso da súbita atenção dada ao cantor e compositor cearense Belchior, um ícone dos anos setenta, hoje um sessentão, que há muito não aparecia na grande mídia e nem sequer emplacou mais nenhum sucesso desde seus clássicos como "Velha Roupa Colorida", "Foi por Medo de Avião", "Paralelas", ou "Como nossos Pais". Há mais de um ano o cara tinha simplesmente sumido! Desapareceu! E como uma nuvem de fumaça levou consigo seus discos e livros, e nada mais. Seu apartamento, com despesas atrasadas foi encontrado vazio e com os alimentos ainda apodrecendo na geladeira, dois carros do cantor foram encontrados em estacionamentos distintos (um no Aeroporto de Congonhas), literalmente enferrujando, enquanto os advogados de seus credores corriam a procura do cantor, que "deu no pé". A família não sabia notícias, a ex-mulher reclamava da pensão não paga da filha, e por meio da internet, de forma bem humorada, surgiram campanhas oferecendo até engradados de cerveja para quem ajudasse a encontrar o ídolo desaparecido. Chegou-se a fazer a brincadeira de incluir Belchior dentro do elenco dos personagens do seriado Lost, pois talvez ali ele tivesse se encontrado. Enfim, onde estava Wally? Onde estava Belchior?
Recordo de ter encontrado pessoalmente Belchior no saguão do aeroporto de Guarulhos, na década de noventa, muito provavelmente vindo de alguma de suas turnês. Eu o reconheci entre os passageiros, na sala de embarque, sentado lendo um livro ao lado de um amontoado de caixas e de aparelhos de som. Deixei soltar a tiete dentro de mim e o cumprimentei, sendo recebido amavelmente por ele, que não mostrou qualquer incômodo em ter sido reconhecido. Falei a ele que também era músico (amador, na época), além de advogado, e que eu tinha conhecimento dos talentos artísticos dele, que não passavam apenas pela música, mas também pela literatura e pela língua portuguesa, como o ex-professor que Belchior um dia foi e que eu acabei me tornando. Após algumas palavras e relembrando alguns músicos potiguares que Belchior conhecia, ele se despediu, deixando antes uma dedicatória e um original autógrafo em um livro de semiótica que eu carregava em uma das mãos, revelando uma caligrafia impecável. Sim, o cara realmente entendia de literatura e era um estudioso de caligrafia, e o livro ainda se encontra guardado em uma de minhas estantes.
Creio que Belchior em sua suposta irresponsabilidade tão e simplesmente foi fiel a sua obra e reproduziu liricamente suas desventuras, tornando-se realmente "aquele rapaz latino-americano sem dinheiro no banco" (e muitas dívidas), seguindo pelas "paralelas das ruas", acabando por viver "como nossos pais". Quantos de nós já pensaram em fugir, deixar tudo para trás (lares desfeitos, desilusões amorosas, dívidas, "cagadas" feitas no passado, vícios, fãs chatos, pensões de ex-mulheres, pagamento de advogados). O caso de Belchior poderia ter se assemelhado ao do cantor britânico Cat Stevens, que nos anos setenta, no auge da carreira, simplesmente sumiu, chegando a ser dado como morto pela indústria fonográfica e por muitos fãs. O cara só retornou a aparecer em meados da década de 80, quando se descobriu que o músico havia se convertido ao islamismo, tinha mudado de nome para Yusuf Islam e tinha se tornado um dedicado professor do Alcorão, numa escola religiosa no Oriente Médio e somente agora, há poucos anos voltou a cantar. A diferença é que hoje a carreira de Belchior é uma vaga lembrança de suas míticas músicas do passado, e através do programa Fantástico, apresentado no domingo último, o cantor cearense não virou padre, aderiu ao budismo ou coisa parecida, numa cruzada religiosa, mas sim se mandou para o Uruguai, onde vive num aprazível sítio no meio do pampa, segundo ele vivendo de traduções de suas letras e canções para o espanhol.
Fugir para o Uruguai e virar tradutor. Não deixa de ser uma saída poética a fuga tresloucada (e para muitos irresponsável) de Belchior. Quantos executivos já pensaram em afrouxar a gravata, jogar o paletó no chão, arremessar a maleta pela janela do carro, no meio do congestionamento e desistir de tudo, fugindo pra uma praia, virando pescador na Bahia, ou artista no interior do Pará? Quanto a Belchior, seu sumiço serviu para chamar a atenção da mídia e do público novamente para sua obra, e as manifestações de solidariedade e saudades da classe artística (fora as divertídissimas brincadeiras que apareceram na web), que apenas demonstram o quanto o autor de "Velha Roupa Colorida" ainda é capaz de despertar interesse e nos fazer refletir sobre o ocaso do sucesso. Alguns se entediam da fama e acabam morrendo de overdose ou se suicidando, como no caso de personagens tão díspares quanto Jim Morrison ou Kurt Cobain. Outros, sucumbem aos excessos (álcool, drogas, sexo) e morrem de AIDS, como ocorreu com Cazuza, Fredie Mercury ou Renato Russo ou de males associados à bebida, como Raul Seixas e Wilson Simonal. E alguns simplesmente somem, saem de circulação, como ocorreu recentemente com Belchior. Na tentativa de recomeçar a vida, para alguns, vale até deixar o carro parado no estacionamento, abandonar o apartamento na cidade grande, deixar de visitar os filhos ou dar notícia à família, e simplesmente desaparecer. Talvez, para muitos psicólogos, presos ao racionalismo freudiano, condutas como essa de fugir, deixando tudo para trás, sejam uma saída infantilizada e irresponsável, num surto adolescente, que acomete a quem não consegue resolver seus próprios problemas como um adulto; ou, para outros, seja uma forma decente de recomeçar, sem querer dar um tiro na cabeça. O filósofo e escritor argelino Albert Camus já escrevia em sem Mito de Sísifo, sobre " a consciência do absurdo", que nos faz ver, de repente, que não faz sentido nenhum a vida que estamos seguindo. Uns viram religiosos, outros poetas, alguns se matam, ou simplesmente saem de cena, desaparecem, revestindo os seus dramas de um caráter enigmático. Entre a perdição e o mistério, prefiro ficar com o mistério, e, ao menos o mistério do paradeiro de Belchior foi desvendado pela Rede Globo.
Belchior só precisou de um par de pernas, um pouco de cara-de-pau e uma mulher ao seu lado para iniciar sua longa caminhada de autoexílio, provavelmente dirigindo pelas paralelas da BR101 até chegar no Uruguai (já que como diz a música: "foi por medo de avião"). Talvez Belchior tenha descoberto que "a felicidade é uma arma quente" (segundo a própria letra de sua música, parodiando os Beatles), e por isso decidiu se afastar. Sabe-se lá o que se passou na cabeça do bigodudo, sabe-se o que vai passar! Afinal de contas, todos tem o direito de assumir as consequências de suas escolhas, e uma delas, ao menos para Belchior, foi um súbito ostracismo, que paradoxalmente o elevou à celebridade novamente. Afinal, deixem o cara em paz!

Um comentário:

  1. Rapaz, concordo plenamente: deixem o cara em paz, pô! Como se estivéssemos em uma profunda escassez de notícias.

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