Rio de Janeiro, ex-capital da República. Rio, "purgatório da beleza e do caos", na canção de Fernanda Abreu. Sim, é fato que minha mãe tem calafrios, e quase que uma crise histérica, ao pensar na possibilidade de seu único filho homem viver num lugar que não é apenas mostrado como berço do Cristo Redentor, do belíssimo põr do sol nas pedras do Arpoador ou do bondinho atravessando o Pão de Açúcar, mas também é conhecido pela sua nêmesis: outro lugar, bem mais feio, bem mais frio, cinzento e aterrorizante, mostrado periodicamente nas telas de televisão, como um cenário apocalíptico de guerra entre policiais e traficantes, de balas perdidas, pessoas civis, inocentes, mortas ou feridas, crianças alvejadas com disparos de armas de fogo na cabeça, tumulto nas ruas, ônibus, carros e viaturas da polícia queimados, chamas de uma barbárie que lembra muito os filmes do Exterminador do Futuro.
O Rio que é mostrado pela mídia, de um helipcóptero da polícia explodindo, alvejado por traficantes, ou da morte do líder do Afroreggae, covardemente assassinado num assalto, mas, pior ainda, mais covardemente ainda injustiçado, quando os policiais que o deveriam acudir, deixam que ele morra agonizando, além de furtar os seus pertences, não corresponde ao Rio de Janeiro da minha infância, da minha inocência; onde eu, criança feliz, brincava de pedalinho junto com meus pais, sobre as águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, ou da pureza pitoresca, com que meus olhos infantis viam o bairro de periferia onde morava com meus pais, envolto em minhas traquinagens com os moleques da rua, sempre sob a observação zelosa de minha mãe, além do apoio da vizinha, a amável Dona Elvira, uma senhora gorda com vários filhos, que não se privava de cuidar de mim, e me deixar brincar com seus filhos, meus brinquedos e amigos imaginários na sua varanda, quando meus pais não estavam em casa. O Rio do terror não corresponde ao Rio que eu conheci já adulto, quando retornei à cidade, homem feito, e conheci a solidariedade e o carinho de habitantes da cidade, tais como um sujeito chamado Américo, morador do Engenho Novo e comerciante bonachão, membro de uma Escola Samba, fanático por compor e cantar sambas-enredo, que tratavam de um povo trabalhador, sofrido, mas alegre na sua adversidade, "esperto", com todo o direito a "esses" e "erres" chiados e puxados, no típico sotaque carioca, mas preocupado com a segurança, assim como preocupado com o pão nosso que podia ou não vir a cada dia. A imagem do carioca que ficou nas minhas retinas era sim a do cidadão simples, urbano, adepto do chopp e fã de carnaval, mas que não parecia em nada com o povo assustado, aterrorizado, que aparecia e aparece quase todos os dias nas telas de TV, diante de nossos olhos, no Jornal Nacional.
O finado ex-governador Brizola, ele mesmo gaúcho, mas com uma alma ensolaradamente carioca, dizia, no ímpeto de seus rompantes populistas, quando era cobrado acerca da criminalidade na cidade, que "tudo era culpa da Globo". A violência passada pelos meios de comunicação era culpa da Globo, a explosão dos conflitos nos morros foi a Globo quem fez. E até a chuva abrupta, que estragava a praia do final de semana do carioca, era culpa da emissora do também falecido Roberto Marinho. Na preocupação de expor seu principal antagonista, o lendário governante apenas expunha as duas faces de um mesmo ser na cultura carioca: de um lado o governo, sempre ineficaz nas suas políticas de segurança; de outro, os meios de comunicação, capitaneados pela maior emissora de TV do país ( e uma das maiores do mundo), preocupada em transformar em notícia a ineficácia governamental.
Sim, pois até uma criança do ensino primário sabe hoje que o problema da violência urbana no Rio de Janeiro é, essencialmente, um problema gerencial. Não existe uma cultura da violência entre os cariocas. Não existe um "criminoso nato", a nascer em proporção geométrica, como pensava a ultrapassada teoria antropológica de Lombroso, a proliferar como uma praga, nas favelas e morros cariocas, pronto a crescer e desabrochar como um monstro, alimentando o narcotráfico e a bandidagem, ou escapando do crime para vivê-lo de outra forma, assumindo uma farda de policial, para então compor com sua quota-parte no sistema da violência. Criminosos não são o "Golem" da cultura da medo, como quer fazer pensar as nossas mais alarmistas políticas de segurança. Se o Rio de Janeiro hoje, passa por um cenário forjado de guerra, isso se deve à subcultura armamentista e bélica do ente Estatal, que, a pretexto de combater a violência, a aumenta, ao estabelecer um grotesco confronto entre policiais e traficantes.
O emprego do lema: "se vocês ferem um de nós, nós levamos uns dos seus para o hospital", ou, " se vocês levam um de nós para o hospital, nós levamos um dos seus para o necrotério", revela a selvageria de uma prática punitiva que transformou a polícia numa gangue, e os grupos de criminosos em exércitos. Enquanto bandidos se fartam de armamentos pesados, mais para atacar os grupos criminosos concorrentes, do que para atingir a polícia, a corporação policial se transforma em gangue, no momento que utiliza da mesma prática vingativa que se valem os bandos armados, quando um dos seus é ferido pelo grupo inimigo. A impressionante cifra de 60 pessoas mortas e feridas por ações da polícia em somente uma semana, logo após o triste episódio da queda do helicóptero da PM, atingido por traficantes, durante conflito entre bandidos no Morro dos Macacos, revela que muito mais por vingança, do que por justiça, atuaram os PMs cariocas, no sentido de desbaratar os reais responsáveis pelos horrorosos crimes praticados pelos perversos líderes do tráfico nos morros cariocas. Soma-se a isso a vergonha para uma corporação, a soma de fatos que apenas corroboram o distanciamento entre polícia e sociedade, e a banalização da violência, quando o coordenador do Afroreggae, o ativista social Evandro João da Silva, encontrou a morte em um caixa eletrônico no centro do Rio, após ter lhe sido negada assistência pelos policiais que deveriam salvá-lo e que abordaram seus algozes, permitindo não apenas que eles fugissem, mas que também entregassem o butim de seu saque hediondo nas mãos daqueles que, do alto de suas fardas, juraram "servir e proteger".
Evandro pode muito bem ter dado seu último suspiro, observando atônito, pelos seus olhos que logo parariam de expressar vida, o absurdo de uma polícia perdida, desfigurada, em crise de identidade. Uma polícia que reflete o Estado que tem, o Estado que a criou, armou e organizou. Um Estado que foi incapaz de recrutar, selecionar, formar e remunerar dignamente bons policiais, que atendem vítimas de assalto, não como se elas fossem mais um preto de bermuda, camiseta e chinelo, que teve a infelicidade de virar mais uma estatística nos óbitos de crimes violentos, mas sim como um ser humano, despido de condições de raça ou classe social, digno de proteção. Um Estado que foi incapaz de oferecer helicópteros blindados, ou roupas com proteção contra chamas, para seus policiais, que acabaram carbonizados entre os destroços da ineficiência governamental.
Conforme recente pesquisa do IBOPE, 36% da população fluminense vive hoje sob o risco de algum dia ser atingida por uma bala perdida. É quase o mesmo percentual de insegurança vivido por um israelense, afegão ou iraquiano de sofrer um atentado terrorista, enquanto está comendo sua esfiha ou tabule num restaurante no centro da cidade. Se a situação da violência no Rio é feia, não é menos feia que a crônica da morte anunciada de um Estado, outrora ocupado por populistas, generais, tecnocratas, tucanos, peemedebistas, brizolistas, petistas e Cezar Maias da vida. O Rio vai mal da segurança não porque seu alegre e malandro povo, fanático por samba, futebol, chopp e carnaval seja violento, mas sim porque, desde a saída da capital da República da cidade, o Rio, efetivamente, nunca teve um governo. Os esquemas pluralistas de gestão comunitária, ouvindo-se a população dos morros e dos bairros, centrada nas associações de moradores e rádios populares, nunca ecoaram nos palácios do governo, pois a comunidade nunca foi chamada a participar, e, sobretudo, influir, no âmbito das decisões administrativas sobre o desenvolvimento da cidade. A lógica autoritária de poder sempre foi a de lançar os programas governamentais de cima para baixo, onde, os "bacanas" e civilizados da Zona Sul ditavam o que fazer para os "suburbanos" moradores de periferia, como deixou escapar o Gabeira, na última campanha eleitoral para Prefeito. Para a complexidade de relações, no mosaico de mundos e submundos sociais que foram gerados na capital carioca, nunca se correspondeu a essas complexas relações, com um modelo de gestão compartilhada, com participação efetiva da sociedade civil, e, sobretudo, com um modelo baseado no emprego de recursos que fizessem com que a polícia não fosse apenas uma mera força reativa, de aplicação respectiva da força, mediante uma violência estabelecida, que acabou por transformar as polícias em gangues, como foi apresentado aqui, no ínicio deste comentário.
"O Rio de Janeiro continua lindo", apesar de tudo, mas com a cidade dotada de uma beleza triste, numa beldade que esconde uma profunda tristeza pela frustração de não ter encontrado ainda a resolução de seus problemas mais graves, que são, não o da insegurança, mas sim o da aplicação de efetivas políticas públicas que não só promovam a redução da desigualdade social, mas também se abram à participação popular. Não basta guris nas favelas bem alimentados e bem vestidos, com escolas e postos médicos, a salvo de traficantes, assim como não basta policiais bem pagos, bem armados e treinados, para que se tenha uma cidade tranquila, como aquela que se espera para o acolhimento da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. O carioca necessita também ter direito à voz, falar por si próprio e não apenas por aqueles quem ele vota, de dois em dois anos, para retroalimentar o Legislativo Municipal ou Estadual. Ele precisa falar de si e cuidar de si, mediante mecanismos democráticos que garantam que ele não seja apenas consumidor de um serviço; como se só bastasse pagar um cara armado e de farda para garantir sua proteção (pois, as milícias já fazem isso, em muitos bairros da periferia carioca). O cidadão (eita palavrinha difícil em termos de Rio), necessita não apenas consumir o serviço prestado pelo Estado, mas sim ser o gestor da produção dessa segurança. Ele jamais conseguirá realizar essa utopia, se continuar a ser tratado como Evandro, agonizando no piso de uma agência bancária enquanto PMs se retiram, revelando a franca invisibilidade de mais uma vítima do descaso. Não há de se falar em segurança no Rio, enquanto o narcotráfico nos morros e favelas for visto como uma mera operação de guerra, com direito a cinematográficas ocupações de policiais fortemente armados, que, na calada da noite, estouram "bocas de fumo" e põem portas abaixo, sem cerimônia, pois, segundo essa prática, a vingança não precisa de mandado judicial.
É necessário armar as consciências mais do que os fuzis, pois somente assim o Estado recobrará sua credibilidade diante da barbárie, e o carioca pacato, ativo e brincalhão do Rio, voltará a cantarolar para turista ver, tocando seu sambinha em sua indefectível caixa de fósforo. Por enquanto, essas pessoas encontram-se escondidas, acabrunhadas dentro de suas casas, com medo de serem parte dos 36% daquelas que irão receber uma bala perdida. No meio dessa gente toda, fico pensando, onde estára o Américo? Cadê Dona Elvira? Onde está minha inocência perdida?
É necessário armar as consciências mais do que os fuzis, pois somente assim o Estado recobrará sua credibilidade diante da barbárie, e o carioca pacato, ativo e brincalhão do Rio, voltará a cantarolar para turista ver, tocando seu sambinha em sua indefectível caixa de fósforo. Por enquanto, essas pessoas encontram-se escondidas, acabrunhadas dentro de suas casas, com medo de serem parte dos 36% daquelas que irão receber uma bala perdida. No meio dessa gente toda, fico pensando, onde estára o Américo? Cadê Dona Elvira? Onde está minha inocência perdida?