O Dogma foi um movimento cinematográfico europeu, iniciado por diretores de cinema dinamarqueses na década de 90, através de um manifesto publicado em Copenhague, em 1995, tendo como um dos principais signatários, o então jovem cineasta Lars Von Trier. O movimento pregava uma ruptura com o cinema comercial, uma crítica ferrenha aos chamados blocksbusters e tudo o que vinha da indústria. Em sua estética, os adeptos do movimento pregavam um cinema que deveria ser feito muito mais de ideias, do que de parafernálias ou efeitos especiais. Voltava-se ao discurso de que, com uma câmera na mão, poderia se fazer uma revolução. Assim era o cinema para Von Trier.
Passados 16 anos, muito do que era o movimento original já se dissipou e, naturalmente, cineastas como Lars Von Trier não desperdiçam mais efeitos especiais ou uma mãozinha aqui ou acolá de computadores. Afinal, não é a tecnologia a grande inimiga da arte. "Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro"(já dizia finado Chico Science), mas o que mais se nota na genialidade, no estilo e na polêmica do diretor dinamarquês é que em sua profícua obra, geralmente alvo de prêmios (principalmente em Cannes) ou de insultos, fica demonstrado que Lars Von Trier é um depressivo profissional!
Von Trier se vale da depressão, da ironia e do ceticismo quanto à humanidade como artifício estético, como pano de fundo de seus filmes que brincam com diversos estilos cinematográficos. Se em "Dançando no Escuro", o diretor fazia uma paródia dos musicais, em "Godville" ele relembrava filmes de gângster, assim como em "Anticristo" seu foco eram os filmes de terror. Agora em "Melancolia" (Melancholia, no original), parece que Lars Von Trier vale-se dos filmes apocalípticos de ficção científica, para esmiuçar sua depressão, exercer um de seus alteregos, através das atrizes de seus filmes, que são suas musas sofredoras. Von Trier adora torturar suas atrizes (fazendo com que muitas delas façam apenas um filme seu), fazendo com que elas explorem em suas interpretações o ápice do sofrimento (ponto pra Charlotte Gainsbourg, que conseguiu fazer seu segundo filme com o diretor). Não é diferente com Kirsten Dunst em Melancholia, assim como não é diferente nos outros filmes da obra do diretor o grande teor de ironia, mais do que de desilusão. Afinal, são filmes de Von Trier, e se não fossem assim, não seriam filmes dele, não é mesmo?!
Em Melancholia vemos que o filme se divide em duas partes, centrado em duas protagonistas: duas irmãs, sendo que uma, Justine, interpretada por Dunst, é a tristeza pura em estado bruto; enquanto que sua irmã, Claire, feita por Gainsbourg, é o estado puro da resignação, o pragmatismo diante do imediatismo de uma vida curvada às convenções. O filme inicia-se com o casamento de Justine, na tentativa de ser "normal", de se adequar às convenções sociais, casando com um homem que ela não ama, mas que pode significar a saída para sua tristeza. Ledo engano. Quando a festa de casamento se desenvolve, percebemos aos poucos os reais traços depressivos da personalidade de Justine, seus medos e angústias, e do quanto eram forçados seus olhares apaixonados e sorrisos para o noivo e convidados da festa, quando na verdade, por debaixo das aparências, estava alguém ali louco para gritar. Destaque para a atuação dos pais de Justine, interpretados pelos equilibrados e consagrados John Hurt e Charlote Rampling, além de Kiefer Sutherland (sim, ele mesmo, fazendo filme de arte! Na tentativa de se firmar como ator "sério" e retornar ao cinema depois de anos na série de TV, 24 Horas), interpretando o marido de Claire, cunhado de Justine, e responsável pela festa de casamento.
Justine, através da brilhante atuação de Kirsten Dunst (vencedora da Palma de Ouro de melhor atriz), é a tristeza personificada, a verdadeira "melancholia" do filme, e não o planeta de mesmo nome, que descoberto pelos astrônomos, em breve, deverá colidir contra a Terra, provocando uma iminente e inevitável destruição. O suposto "filme de ficção científica", na verdade serve como metáfora dos nossos mundos: um, o imaginário, inatingível, imperecível, que acaba por se chocar com o mundo real, dos destinos, das regras, rituais e convenções sociais que, um belo dia, somos obrigados a seguir. O filme de Von Trier é um drama existencial ao extremo, assim como é a personalidade complexa do diretor, permeada por surtos maníaco-depressivos. A depressão é a tônica do filme, pois Justine logo será assombrada pela doença, prostrada a ponto de não conseguir sequer caminhar ou tomar banho sozinha, sendo auxiliada pela irmã, enquanto a Terra se aproxima de sua destruição. É no apocalíptico momento do final que Justine recupera o sentido da vida, ou, ao menos, o sentido do fim da vida, enquanto que a tristeza passa agora a tomar conta de sua irmã, inconformada com o fim iminente, já que acha injusto que toda a existência acabe assim, de uma hora para outra. Ela tem uma família e sua única preocupação de mãe é salvar seu filho da destruição. É o que toda mãe faria, mas sente a impotência do destino final, por ter as mãos atadas é não poder remar contra o inevitável, o armagedon que está por vir. Não é à toa que o nome da protagonista é Justine, o mesmo nome, na literatura, da personagem do Marquês de Sade, que estava fadada a uma vida de dor, privações e sofrimentos. A Justine do filme também é uma figura sofrida, a partir de seus lindos, mas sorumbáticos olhos, mas é um sofrimento que surge bem antes do mundo se acabar, por uma total consciência do absurdo de se estar nesse mundo.
Se em Dogville, a personagem de Nikole Kidman era a versão de um Cristo vingativo, que não redime mas pune a humanidade ingrata e pecadora, em Melancholia a humanidade é vítima do próprio universo, quando um planeta aparece por detrás do sol, numa trajetória mortal em direção à Terra. Tudo porque, segundo Justine: "a humanidade é ruim, e se estamos sozinhos no universo, pois só há vida aqui, logo em breve nenhuma vida existirá". Triste? Sim, é triste sim, mas antes de mais nada a metáfora sobre o fim do mundo, ou sobre o juízo final onde não haverá final feliz, é o recado de Von Trier para uma Cannes que o expulsou com quatro pedras na mão, ao não entender suas piadas sem graça sobre o nazismo ou Hitler, e ter menosprezado a arte de um gênio que é ao mesmo tempo genial e estúpido, seja porque decide largar seus remédios de vez em quando, para liberar toda sua potencialidade criativa, outrora entorpecida pelos medicamentos, seja para meter o dedo na ferida, e falar com extrema ironia da natureza humana, que merece ser desvelada em seus aspectos mais sombrios. Talvez Lars Von Trier seja tão e simplesmente um puritano desencantado, daqueles que amaldiçoam uma humanidade que deveria ser tão boa, por viver num mundo tão bom, e não é. Talvez ele seja apenas um diretor de cinema arrogante, preocupado em fazer cinema de autor, com seus disparates e leviandades intimistas. Não sei! Só sei que ele faz bons filmes, e se bons filmes são aqueles que te apanham para pensar, creio que filmes como Melancholia fazem a gente pensar até demais!
Melancholia é um bom filme, que naturalmente deverá ser visto por muitos psicólogos e psicanalistas, que estudam o fenômeno da depressão. Porém, o filme também merece ser visto por todos aqueles que acreditam que existam pessoas que simplesmente não se preocupam com o fim do mundo, porque, no fundo, querem que isso aconteça. Vá entender certas pessoas! Vá entender cabeças como a de Lars Von Trier. Desta vez, o pessoal de Cannes não quis entender!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Coloque aqui seu comentário: