O humor moderno, na língua portuguesa, é oriundo do trovadorismo. Tratava-se de um movimento literário baseado em cantigas, que podiam ter conteúdo lírico ou satírico. Nessas últimas, geralmente o trovador produzia um escárnio, uma gozação contra alguma personalidade pública da sociedade, usando e abusando de uma linguagem popular, chula, quando não obscena. Trava-se através da trova satírica de se efetuar uma crítica social, num momento em que era permitida a expressão do artista, dirigindo-se para o seu público de forma até rude ou grosseira, como forma de liberar uma expressão artística. Era o momento da arte, de uma manifestação estética, apreciada pelos fidalgos e pelas pessoas de fina educação das cortes portuguesas, pois era uma diversão dos nobres ouvir as piadas e os comentários jocosos de seus trovadores.
Em um filme francês que já não me recordo o nome (ajudem-me quem souber), e que assisti ainda no videocassete em VHS (imagina o quanto é antigo), o protagonista tenta sobreviver na França pré-revolucionária, valendo-se de um talento incomum para contar piadas. Ele passa a ser aceito na corte francesa, animando aristocratas em jantares e nos seus saraus ociosos, e enquanto lá fora a plebe morre de fome e urge por transformações sociais radicais, o herói de nosso filme começa a ascender socialmente, enquanto consegue arrancar riso da plateia, sofrendo a forte competição de outros piadistas como ele, até o derradeiro dia em que acabará por contar alguma piada que não tenha graça, culminando na sua expulsão sumária do palácio ou até mesmo em prisão.
Quando eu penso na frase infeliz (de muitas) do comediante gaúcho Rafinha Bastos, no programa de televisão CQC da rede Band, na última segunda-feira, fico me perguntando se Bastos não se encontra na mesma situação do comediante do filme francês, expulso do salão por ordem do rei, quando, até então querido pela plateia, comete a infelicidade de contar uma piada sem graça, ofendendo alguém. No caso do brasileiro, a piada sem graça veio num comentário sarcástico, quando numa passagem do programa, Rafinha faz um comentário sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, exprimindo a seguinte frase: "eu comeria ela e o bebê". Foi o suficiente para que um ar de constrangimento se abatesse na tela da TV, com um visível ar envergonhado do líder do CQC, o apresentador Marcelo Tas, que rapidamente tentou corrigir a gafe do comediante, como também a postura de seu colega de auditório, o também comediante Marco Luqui, que preferiu colocar as mãos nos olhos, constrangido, do que esboçar outra reação.
Rafael Bastos já responde a um inquérito policial em São Paulo, instaurado a pedido do Ministério Público para apurar se em uma de suas apresentações no teatro, onde o artista tem um show de comédia stand up, ele teria feito apologia ao crime, ao fazer uma piada com as mulheres feias, dizendo que "o homem que estupra mulher feia não merecia cadeia, mas sim um abraço". Dentro de determinado contexto machista, a piada arrancaria risos, mas numa realidade social de violência contra a mulher, a piada soou de muito mal gosto. Eu soube do caso, inclusive, de um comediante francês, que foi obrigado a pagar 10.000 euros de indenização, por conta de piadas antissemitas, em um de seus shows. Comediante francês é obrigado a pagar 10.000 euros por insultos antissemitas em piada.
O caso de Bastos faz retomar a discussão sobre o tema da liberdade de expressão, que eu já havia desenvolvido aqui no blog. O problema no caso do comediante, é de que até que ponto a manifestação artística da comédia saí do engraçado e beira o grotesco. No caso de Bastos, o que mais ele está sendo acusado é de ter ofendido pessoas, ao invés de fazer rir, criando, inclusive, desafetos e inimizades, dentro do próprio meio artístico ou diante de pessoas públicas como o ex-jogador Ronaldo "Fenômeno", muito amigo de Tas e sua equipe, que já manifestou publicamente que estava se afastando dos integrantes do programa, uma vez que é sócio, em um empreendimento, do marido da cantora Wanessa Camargo, e que ficou profundamente constrangido com a piada desnecessariamente sem graça feita pelo comediante gaúcho.
Sobrou para a opinião pública a condenação sumária de Rafael Bastos através dos meios de comunicação e da internet, com a publicação de alguns posts de populares furiosos contra o apresentador do CQC, revelando o quanto, para alguns, Bastos representa um típo antipático, arrogante, prepotente, e que acha que na condição de artista pode esculachar e acabar com a reputação de quem ele bem entenda. Trata-se de uma questão eminentemente ética, antes de ser jurídica: a discussão sobre os limites da liberdade de expressão e a manifestação de uma arte, uma vez que a honra, a dignidade, e a credibilidade das pessoas passa a ser atingida por piadas maldosas. Ou será que toda piada é maldosa?
Se estivermos falando de uma democracia e de um Estado de Direito, que segue princípios constitucionais, entendo que, assim como diz a Constituição, todo mundo é livre para fazer ou deixar de fazer o que bem quiser, senão em virtude de lei. A lei deve servir para proteger as pessoas e não sumariamente puní-las, por isso considero precipitadas algumas acusações contra o comediante Rafael Bastos, dizendo que com suas piadas o rapaz faz alusão à criminalidade ou violência, pois muito do que se encontra hoje nos meios de comunicação, em novelas ou programas de televisão, é uma carga de violência, preconceito e apresentação de um grotesco estado de arte que, por si só, não correspondem a fatos criminosos.
Creio sim, que o referido comediante deve ser defenestrado ou advertido pelo seu próprio público, quando cair a audiência do CQC, quando alguns fãs do programa (assim como eu), em protesto, enviarem uma carta ou e-mails à direção do programa na rede Band, explicando que irão decidir por boicotar o programa, caso o artista não se retrate, ou ao menos seja transferido para outro programa da grade de programação da emissora. Sei que além de um talentoso comediante, nosso "Ricky Gervais" brazuca, Rafinha Bastos é também um ótimo jornalista, realizando o elogiadíssimo programa de reportagens A Liga, nas noites de terça-feira, no mesmo canal. Será que não seria o caso de transferi-lo do CQC, até mesmo para poupá-lo de um desgaste maior, por conta de seus comentários infelizes? Creio que, de qualquer forma, cabe ao próprio artista uma reflexão sobre sua forma de trabalhar, a ponderação racional sobre seus erros e acertos, até porque estamos falando de um ser humano talentoso, carismático e que tem uma das maiores quantidades de seguidores no Twitter; mas que também merece um puxão de orelhas ou calçar as já famosas "sandálias da humildade", quando comete suas besteiras em rede nacional. Rafinha Bastos não será o primeiro e nem o último comediante a cometer deslizes, a sair fora do tom em seus comentários e a falar bobagens, até porque faz parte de sua profissão de artista produzir gafes para arrebatar a audiência. Mas também é importante que esses artistas saibam que brincadeira tem hora, e a hora certa é a de fazer rir e não a de machucar os outros. Se liga, Rafael! Se for o caso, fica na Liga!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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