O assunto não é novo e nem suas críticas, correndo o risco até de ser monotóno, caso a abordagem do tema não fosse diferenciada. Refiro-me a analisar a questão sob o ponto de vista do aluno e não só do professor, refletindo sobre o que queremos, na verdade, para nossa universidade.
No tempo em que ingressei na universidade, uma pública, federal, no meu saudoso Rio Grande do Norte, havia somente uma faculdade de direito, e até então não pululava a chuva copiosa de faculdades jurídicas que hoje temos, repletas de alunos, distribuídas pelo país. Ainda não havia a famosa portaria de 1994 do MEC, autorizando a criação de novos cursos jurídicos, sem mais os exigentes requisitos necessários para a constituição de uma instituição de ensino desse porte. As faculdades poderiam agora funcionar como empresas, e, na filosofia do pensamento neoliberal da época do governo FHC e de seu ministro da Educação, Paulo Renato, a ordem de privatizações também seguia a ordem da privatização do ensino. Se, por décadas, instituições privadas e confessionais como as PUC e as ULBRA haviam contribuído para a qualidade do ensino, porque não deixar para o empreendedor privado também a tarefa de contribuir para a educação?
Pronto, num passe de mágica, antigos donos de shopping center tornarem-se diretores, reitores de universidades. Empresários antigos do ramo do ensino, bem sucedidos donos de cursinho pré-vestibular, como João Carlos Di Genio, dono da Rede Objetivo, puderam enfim, criar faculdades, num lucrativo negócio que dura até hoje, criando a UNIP, a maior universidade privada do país, com mais de 44.000 alunos. A Estácio de Sá no Rio de Janeiro, cresceu, apareceu, mas parece que não aprendeu, tendo em vista a célebre reportagem da imprensa há poucos anos, quando um candidato analfabeto passou no vestibular para Direito na instituição, tão somente acertando os "chutes" necessários nas questões marcadas com um "x", fazendo o ponto de corte e lhe garantindo o sonhado acesso à universidade.
Hoje, se qualquer doto de boteco, padaria ou supermercado, com espírito empreendedor, pode, um dia, tornar-se dono de uma grande universidade (opssss! a palavra certa não é dono, mas responsável pela "mantenedora" da instituição ou membro do conselho consultivo da fundação que instituiu a universidade), não é à toa que hoje, muitos alunos, questionam as finalidades de uma instituição de ensino superior, a qualidade do ensino, e o que ela deseja para seus principais destinatários: o corpo discente. Retoma-se ao tema do "pacto da mediocridade", tão comum na Era Sarney, dentre os fracassos nos planos econômicos a partir do Plano Cruzado, e as primeiras greves das universidades federais após a ditadura. Naquela época, questionava-se o professor que fingia ensinar e o aluno que fingia aprender. Lembro-me, naquele período, no começo dos anos noventa, eu já universitário, aluno do curso de direito e membro do centro acadêmico, como o Movimento Estudantil denunciava os professores da universidade pública que somente utilizavam da instituição como cabide de emprego ou status social, sem sequer comparecer às aulas ou dar a mínima satisfação aos seus alunos. Questionava-se a atuação do professor universitário, funcionário público, dotado de estabilidade no emprego, mas que era um burocrata que não dava a mínima para o ensino, pesquisa ou extensão: os pilares básicos, ou, se alguns preferirem, a santíssima trindade do ensino superior brasileiro. Lembro-me de um certo professor, procurador do estado, que a pretexto de assistir o casamento da filha nos Estados Unidos, foi para Miami e de lá desapareceu, após uma licença concedida pela procuradoria, sem comparecer o restante do semestre, deixando seus alunos atônitos com o lápis e o caderno na mão. E o pior, sequer foram convidados para o casamento!
Vim de uma época em que ensino superior, público e de qualidade, era requisito e sonho de qualquer garoto pobre ou de classe média baixa que quisesse, um dia, passar num vestibular e ingressar numa universidade de respeito. Se os guris da minha época, no movimento estudantil, não lutavam mais contra a ditadura ou por eleições diretas para presidente, lutávamos pela qualidade de ensino, pelo reconhecimento da instituição na sociedade como importante fórum de discussão das questões nacionais, como foi o Movimento dos "Cara-Pintadas" pelo impeachment do presidente Collor, a que tive orgulho de participar. Naquela época queríamos professores sim, mas qualificados com mestrado e doutorado, e em sala de aula. No direito, área nevrálgica e de importância ímpar para a sociedade, contaminada pelo bacharelismo liberal e pelo tradicionalismo positivista, era mais digno de status ter um professor juiz federal ou procurador da república, que desse um centésimo de seu tempo para dar 40 minutos de aula, do que um autêntico acadêmico, um legítimo "professor universitário", dedicado ao ensino e pesquisa, que utilizasse da universidade como seu ganha-pão, para discutir com seus alunos efetivamente ciência, e não para que ficássemos parados em sala, ouvindo um monólogo do professor, na decoreba de códigos. Enfatizáva-mos a inclusão do ensino obrigatório da filosofia, da história e da sociologia nos currículos de nossos cursos, pois entendíamos que pelo expediente funesto da ditadura, qualquer tentativa de pensar ou fazer pensar seria vista como gesto de subversão. Entretanto, com a proliferação das faculdades de direito, ao invés de auxiliar o debate, vimos a discussão científica minguar, e, ao contrário, ficamos reféns do tecnicismo.
Tecnicismo que emburrece, tecnicismo que embrutece e aliena. Hoje, é mais do que comum, no reforçado "pacto da mediocridade", alunos irem em sala de aula tão somente pra ver se a paquera do lado chegou também para assistir aula, não dando ouvidos para o professor que finge que leciona, ou que pelo menos ocupa seu tempo contando piadas de casos do escritório ou de suas peripércias no âmbito da Justiça. Aqueles professores dedicados, zelosos, amigos da ciência, que se propõem a discutir grandes casos, empregando uma metodologia inovadora, crítica e dialética, são muitas vezes vistos como algozes, quando cobram conhecimento de seus alunos. Brutamontes, que não entendem que aquele fulano que passou o dia inteiro no trabalho, escutando as reclamações do chefe chato na repartição ou na linha de produção da fábrica ou do comércio, tão somente quer passar o tempo, decorar algumas apostilas, fazer algumas provas no estilo de supletivo e terminar o curso, carregando debaixo das axilas um diploma do curso de direito, para seu deleite pessoal e familiar. Já se foi a época em que se perdia de vista os alunos ambiciosos, dedicados, que enchiam as salas para se preparar para os grandes concursos, pois queriam ser, no mínimo: juízes e promotores, ou então bons e bem sucedidos profissionais da advocacia. Ainda havia uma pequena, mas viva, parcela de alunos que foram estudantes como eu, tão ou mais interessados em realizar uma pós-graduação, um mestrado ou doutorado, pois corria nas veias a disposição para a pesquisa, o deleite acadêmico com o debate científico e intelectual, que não se tratava de um mero sociologuês para preencher de assunto as conversas de boteco, mas sim como um real instrumento de transformação social. É!Parece que fui idealista demais!
Só não me conformo hoje, na função de professor, em retroalimentar esse pacto da mediocridade, tão somente levando slides para os meus alunos, com a síntese do que meu limitado pensamento tem acerca da vastidão descomunal de conhecimento associado à area jurídica, de que tanto gosto, tão somente para satisfazer o egoístico interesse daqueles que não querem se dar ao trabalho de pensar. Penso que a universidade, como pensaram os clérigos católicos na Idade Média, era, como o próprio nome diz, um espaço de universitas, de universalização do conhecimento, como trabalhava Aristóteles na sua época, na Grécia Antiga, em aulas proferidas mediante anfiteatros lotados, onde o que se queria não era pão e circo, mas tão somente beber um pouco de conhecimento. Até hoje priorizo a aula dialogal, onde o que mais me interessa não é ver o aluno parado, emudecido, boquiaberto com sua boca enfadada escorrendo saliva, esperando o tempo passar, mas sim aquele que abre a boca com outros fins além de comer um sanduíche, apresentando suas ideias, revelando suas dúvidas, fazendo seus questionamentos sobre o conhecimento que é apresentado, contribuindo para fomentar e produzir mais saber.
Em outra ocasião, um aluno me questionou porque tinha que aprender o nome, ou ao menos saber do pensamento deste ou daquele autor, já que, pra ele, só interessava o que dizia a lei, o que estava disponível no Código. Tentei argumentar dizendo que o conhecimento dos autores e das correntes teóricas era fundamental para se entender a própria natureza e a finalidade dos conceitos jurídicos trazidos em sala de aula, a fim de propiciar sua melhor aplicação quando uma norma fosse invocada para aplicar esses conceitos. Entretanto, só consegui convencer meu incrédulo aluno, quando lhe disse que na hora que ele citasse o conceito de um desses pensadores nas suas petições ou monografias, e não revelasse a fonte, ele poderia ser processado pelo autor ou pela editora por violação de direitos autorais. Detalhe: isso também está previsto no Código.
Acho, definitivamente, ao contrário das evidências do capitalismo no ensino brasileiro, que a universidade não é fábrica de diplomas, e as faculdades de direito hoje criadas não são meros cursinhos preparatórios de terceiro grau. Acredito ainda em muita gente séria, honrada, dedicada e honesta que frequenta os bancos da sala de aula em busca de mais conhecimento, e de algo que será valioso para suas vidas, não só no aspecto profissional, mas também no conhecimento humano. Acredito piamente que o ensino supera as barreiras da alienação, desperta consciências e contribui para a transformação social. Por conta disso é que já me indispus e continuo me indispondo com diretores de faculdade, alunos e até mesmo colegas professores que não compartilham do mesmo ponto de vista, mas alerto que isso somente ocorre quando a liberdade de um é ameaçada pela intolerância do outro. Daí que você não gosta de aula dialogal ou não queira falar sobre a contribuição jurídica dos etruscos? Daí que você não entenda sequer o português e faça careta pra aprender latim? Daí que você só se lembre do direito romano, somente quando um jogador de futebol brasileiro é chamado pra jogar em um time italiano? Daí que você não queira saber que nosso sistema carcerário é injusto e infamante? Daí que você não quer saber que o processo judicial é também meio de exercício da cidadania, e não apenas expediente protelatório de advogados para ganhar mais dinheiro dos réus? Minha obrigação de professor é a obrigação com o ramo de conhecimento que abracei, com a busca das verdades que talvez nunca eu encontre e vida, mas que fomentam minha produção científica e minha busca do conhecimento. Se para uns sou um idiota ao querer isso, para outros eu possa parecer apenas ingênuo, idealista ou sonhador demais, mas prefiro abraçar os meus sonhos, a permanecer nos pesadelos da ausência de qualquer sentido para as coisas que me são ensinadas neste mundo.
Pois que meus sonhos pela busca do conhecimento sejam compartilhados para quem os deseja, como eram os sonhos que tive quando era estudante universitário, há vinte anos atrás. Como diz o belo poema de Yeats: "Tivesse eu os panejamentos bordados dos céus, (...)/ Estenderia esses mantos a teus pés./ Mas eu, sendo pobre, tenho apenas sonhos;/ Estendi meus sonhos a teus pés;/Portanto, quando estiveres caminhando, pisas com delicadeza, pois estás pisando em meus sonhos."
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