Em 8 de abril de 1994 era encontrado pela polícia o corpo do músico Kurt Kobain, líder do Nirvana. O corpo sem vida de Kobain, apodrecendo ao menos por dois dias em sua casa, em Seattle, apresentava altos doses de heroína e vallium, consumidas à vontade por alguém que não conseguia suportar seus medos interiores, o vício em drogas pesadas e agonizantes dores de estômago, produzidos por uma úlcera que o perseguia. Assim como outros ícones autodestrutivos do rock, como Brian Jones, Jim Morrison, Jimmy Hendrix e Janis Joplin, Kobain também morreu aos 27 anos. A idade limite para o apanágio do artista movido a sex, drugs & rock'n roll.
Mas antes que um suicida solitário, Kurt Kobain foi sim um ícone de sua geração. Um "James Dean" perdido e meio nerd, de fim de século, que representou bem uma juventude do fim do século XX, uma juventude que prenunciou a chegada da internet, dos celulares, do MP3, dos I-pods, que não sonhava em ver Barack Obama presidente, e acompanhava um século indo embora, deixando muito mais dúvidas sobre os destinos da humanidade, do que certezas. Dizia-se que após a onda dos anos 80 o rock estava morrendo, nada de novo havia pintado. Axel Rose, Slash e seu Guns & Roses já tinham feito o seu melhor, e a música estava de ressaca de novos ídolos. E na verdade, Kobain não queria ser ídolo. Como um anti-herói da música jovem, Kurt Kobain apareceu com Kris Novoselic e David Grohll, montando o Nirvana, que se tornou a última grande banda seminal de rock do século. Foi dessa juventude que fiz parte, e com meus 20 anos, recém ingresso na universidade, depois de me deleitar com os discos de R.E.M. na fase do vestibular, agora escutava nas rádios Smeels like Teen Spirit, Come as you Are, Poly e Lithium, com o mesmo vigor juvenil do começo de minha adolescência.
Sem Kurt Kobain e o Nirvana, não haveria o rock que tem hoje. Sem Kobain e sua turma, muito provavelmente jovens estariam hoje, trocando músicas de sua própria autoria na internet e montando bandas, de uma forma bem diferente, e talvez bem menos interessante, se não tivessem aparecido os moleques de Seattle, que não só revolucionaram a música com seus acordes dissonantes, como também abriram espaço para uma Meca de outras bandas tão interessantes quanto eles, como Soundgarden, Alice and Chains, Mudhoney, e, é lógico, uma banda talvez tão à altura, como o Pearl Jam. Sem o Nirvana, não haveria Foo Fighters, e, sem a decadência a olhos vistos de Kobain, em cada show, não haveria toda a publicidade, hoje, em torno das pirações de Amy Whinehouse.
Concordo com o que diz o jornalista e crítico de música André Barcinski, em artigo publicado na Revista Rolling Stone Brasil, do mês passado. De fato, o Nirvana foi importante porque tirou o chamado "rock alternativo" do gueto e globalizou o som de garagem, fazendo com que garotos de óculos, meio sem graça e sem namorada, como eu, pudessem se sentir importantes naquela época. Alguns podem dizer que a vinda do Nirvana significou a ressurreição do punk, com a volta dos cabelos desgrenhados, as calças jeans largadas e rasgadas, o tênis velho e as camisas de flanela, estilo lenhador. Entretanto, antes de fazer moda e ser absorvida mesquinhamente pelo mercado, a cultura grunge lembrava sim, um pouco, a juventude dos bairros operários e decadentes da Inglaterra, na década de setenta, donde emergiu o punk, comparando-se os caras de cabelos moicano e espetados, com os jovens da também industrializada, também cinzenta e também decadente Seatlle. No Brasil, o clima frio, poluído e garoento de inverno em São Paulo também era pródigo em produzir esses tipos juvenis, interessados em extravazar seus hormônios com um tipo de som que beirava a fúria e a contestação. Mas aí é que residem as diferenças.
O som do Nirvana, expressão da alma atormentada de seu líder e vocalista, expresso a todo vapor no clássico álbum Nevermind, expressava nem tanto a fúria e a rebeldia punk, retratada nas letras do Sex Pistols, querendo levantar a bandeira da anarquia e detonar o sistema. Seguindo o exemplo de outros seres jovens e atormentados, de outras gerações (como o poeta Rimbaud, referência literária de um certo Jim Morrison), as letras e a música do Nirvana expressavam muito mais um vazio intimista, uma sensação de mal de século, uma "consciência do absurdo", como diria o escritor Albert Camus, só encontrada em outras expressões musicais de músicos também suicidas, também jovens, e também extremamente atormentados, como Ian Curtis, do Joy Division, uma década antes do surgimento do Nirvana.
A tormenta de Kobain podia ser presenciada a olhos nus em seus últimos shows, e em sua passagem pelo Brasil, em uma das edições do Hollywood Rock. Um Kobain de vestido, rouco ao microfone, cambaleante, carregando sua guitarra desafinada pelo palco, totalmente "chapado", foi uma das últimas tristes visões que eu tive, de um cara que precisava de um sério tratamento. Os escândalos de sua vida privada, com as constantes brigas e vaivéns com a mulher, Courtney Love, contrastando com o carinho e os cuidados com a filha bebê, Francis Bean, revelavam a personalidade de um cara que nunca foi afeito ao show business,e, que na verdade, estava altamente assustado com toda a visibilidade dada a sua, até então, banda de garagem. Na verdade, toda aquela badalação em torno do Nirvana se tornou mais do que prejudicial a um sujeito outrora calmo, tímido, recluso e introspectivo como Kobain, que só queria "tirar um som" com uns amigos, e sair da mesmice de sua terra natal. Talvez Kurt possa ser comparado, se eu quiser me valer de uma metáfora, aquele bebezinho da capa de Nevermind, em sua inocência de moleque franzino e cabeludo, tão somente querendo descolar uns trocados como música, em sua banda, e encontrando o inferno ao compreender a perda de sua inocência. Infelizmente, para aquele belo garoto loiro, que causava surtos em suas fãs adolescentes, o sonho acabou da pior forma possível.
A mesma indústria da fama que cultiva seus ídolos, contribuí para sua destruição. E esta frase pode parecer lugar comum, pois, afinal, muitos podem me dizer que o cara já era autodestrutivo antes mesmo de ficar famoso, e por causa de sua depressão, não teria outro destino senão o caixão. Mas que essa máquina de sucesso é de moer almas, sobretudo se elas são dotadas de impulsos suicidas. Ahh, isso é! Talvez um bom filme para se ter uma ideia da trajetória de Kobain, seja Last Days (2005), película dirigida por Guns Van Sant (Gênio Indomável), inspirado em Kobain, cujo personagem, interpretado pelo ator Michael Pitt, trata de um músico famoso e decadente, que passa o tempo todo, escondido em sua casa de campo, escondido dos companheiros de banda, da família, do empresário, e dos fãs, que agem como parasitas. Talvez tenha sido essa, de fato, a rotina de Kurt nos seus últimos dias, entre crises de abstinência por ausência de droga e dores intermináveis de estômago, além de uma tristeza profunda, que acabou levando-o ao suicídio.
Mas, já que se falou em suicídio, e o tema é tão delicado quanto perturbador, Kobain se matou porque se sentiu prisioneiro e não conseguiu escapar de sua própria angústia. Como maníaco-depressivo e viciado em drogas, Kurt Kobain conseguia como todo artista atormentado retirar uma explosão de criatividade de sua própria loucura e dor. Fico me perguntando quantos e quantos jovens se sentiram sozinhos, distantes e deslocados, assim como eu, ao ouvir e compartilhar dos sentimentos de Kobain, ao ouvir as músicas do Nirvana, ouvindo Something in the Way, por exemplo. Foi uma pena ele ter partido, por não ter conseguido enfrentar seus próprios fantasmas e barulhos internos. Que pena que isso acontece com quem sofre. Mas seu triste fim sempre vale como lição.
Ao me recordar do sofrimento de Kobain, recordei do belíssimo e comovente documentário realizado pelo ator e comediante inglês Stephen Fry, que assisti no canal GNT, chamado "Stephen Fry, e o Transtorno Bipolar". Para quem não conhece o sujeito, Fry é um popular ator britânico, que já fez vários filmes no cinema, como "V de Vingança", mas ficou famoso mesmo após interpretar Oscar Wilde no cinema. Sumido inesperadamente das telas, muitos se perguntaram por um período o que havia ocorrido com ele, cogitando-se, inclusive, que havia morrido. Recordo que na época, o cantor Zeca Baleiro compôs em seu primeiro disco, a música: "Por onde andará Stephen Fry", onde rendia uma homenagem ao ator britânico. Recuperado, Fry voltou às telas onde declarou que sofria durante anos de transtorno bipolar e que por duas vezes tinha tentado o suicídio. No documentário, o ator inglês fala de sua experiência e de seu passado, além de entrevistar várias pessoas, de celebridades a pessoas comuns, que também sofrem da doença.
Se Kurt Kobain estivesse vivo, provavelmente teria sido entrevistado por Fry em seu documentário. Infelizmente, seus males foram mais fortes do que ele, e ele foi levado deste mundo, juntando-se ao "clube idiota", como se referiu sua mãe Wendy, de artistas jovens que morreram precocemente, juntando-se a Hendrix, Jones, Morrison, Dean, Curtis, e outros astros, imortalizados na imagem bela e ao mesmo tempo triste, de galãs decadentes, que nunca envelhecem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Coloque aqui seu comentário: