quinta-feira, 21 de maio de 2009

DENÚNCIA: EXPLORAÇÃO INFANTIL NA TELEVISÃO: E aí? A culpa é da Maísa?

Matéria dessa semana da Revista Época sobre a espetacularização da vergonha. Traduzindo em curtas linhas: transformar a humilhação em espetáculo. A revista analisa um comportamento que está se tornando habitual de, cada vez mais, pessoas estarem procurando a exposição pública, tão somente para se submeter a situações vexatórias. Pela dinâmica desses novos comportamentos: Vexame dá Ibope! São "os bola-fora" da reportagem esportiva do Fantástico, os cafonas vítimas das espetadas do "Esquadrão da Moda"do SBT, os "barracos" públicos entre parentes no programa da Marcia Goldschimit, ou os velhos e enrrugados exibidos no 1o anos mais Jovem, também do SBT. Pior do que isso é explorar o choro convulsivo, os sustos e as birras de uma menina de seis anos de idade, que sequer tem a consciência de limite por sua tenra idade, como o caso da adorável garotinha Maísa no Programa de Silvio Santos.


Lembro de polêmica ainda na metade dos anos noventa, quando se verificou que em alguns pubs franceses havia uma diversão extra, entre um chope e outro, de arremessar anões. Isso mesmo, arremesso de anão! Na conta do bar estava incluído além da birita e do petisco, a diversão garantida para os brutamontes que desejassem pegar um simplório e simpático anão (ou indivíduo verticalmente reduzido, se preferirem), e com ele mostrarem sua força, arremessando-o metros a fio. Na competição caberia ao competidor pegar o anão, que então estaria munido de luvas, uniforme de proteção e um capacete, e, num espaço semelhante a uma pista, com um alvo ao final, arremessar o intrépido anãozinho metros a frente, o mais longe possível, em direção ao alvo, com direito a contagens de pontos e brindes para o vencedor. Pelo que me consta, após a publicação da reportagem, a Justiça Francesa chegou a intervir, suspendendo os "lançamentos de anão", e processando os proprietários desses estabelecimentos, pelo fato da conduta ser gritantemente contrária à dignidade humana e às Convenção de Direitos Humanos. Pois, pasmem, dias após a manifestação da justiça, o sindicato dos anões (isso mesmo, sindicato) veio a público, manifestar sua contrariedade à posição do Judiciário, uma vez que com tal medida os pobrezinhos dos anões ficariam desempregados, privados de uma fonte de renda que lhes garantia além de uns bons trocados no final da noite, algumas horas como celebridade. Pois é! Os anões se sentiam mais valorizados sendo produto de chacota, participando de uma "brincadeira" remunerada, num emprego que acabava por torná-los famosos, do que como seres humanos submetidos a uma condição indigna ou humilhante. Reivindicaram mesmo a seara trabalhista, alegando discriminação no trabalho, pois exerciam uma função de dublê(portanto, habilitados a participar de atividades que envolveriam risco físico) e ficariam impedidos de exercer uma "profissão".O caso foi tão polêmico que chegou até as portas da ONU. Entretanto, os pequenos dublês de um metro e meio perderam a apelação no Comitê de Direitos Humanos da ONU.
Alguns dizem que faz parte da cultura do brasileiro fazer pilhéria com tudo, transformar tudo em gozação, inclusive a desgraça alheia. Quem é que não se recorda (e até hoje age assim) das vezes que vemos alguma pessoa conhecida (de preferência um professor em sala de aula) levar um tombo violento ao escorregar no chão, e, antes mesmo que partamos para ajudá-la e ver se ela não quebrou o quadril, deslanchamos a gargalhar nervosamente, como se aquele tombo fosse a coisa mais engraçada do mundo. Porém, faço a pergunta chata: Que graça tem ver alguém se esborrachando no chão? Até que ponto são risíveis as videocassetadas, exploradas à exaustão há quase vinte anos no Programa do Faustão, tão somente para preencher o tempo naquele programa dominical? Que alegria posso ter ao ver um "homem-gabiru", como foi definido certa vez, o infeliz apresentado com estardalhaço como "menor homem do mundo", no programa de Fausto Silva, que gerou uma saraivada de críticas no dia seguinte, pela exposição indevida, baixaria e apelação num programa de TV, tão somente para concorrer com o tão apelativo quanto, programa do Gugu, no SBT?

A capacidade de rir do improvável, de gargalhar com o acidente alheio foi fruto durante décadas das encenações dos palhaços que víamos no circo. Afinal, tombo era motivo para risada, e até entendo a razão disso, pelo simples fato de que, em nossa ingenuidade infantil ( e aí, refiro-me realmente ao tempo em que éramos crianças), ver o coleguinha cair era tão somente fruto de uma brincadeira ensaiada, onde fazia parte da brincadeira cair e levantar. Crianças riem de tudo, e zombam de seus colegas quando eles caem, quando parecem fracos, quando são gordinhos, magrinhos demais, dentuços ou narigudos, porque são crianças, porque não entendem ainda que sua gargalhada ingênua pode ferir ou magoar alguém. Bem diferente dos adultos, bem diferente dos que buscam ou alegam já ter certos padrões de moralidade. Lembro-me, não com tristeza, mas com certo desapontamento, de um certo dia numa aula que participei de teologia, num dia infeliz onde estava intensamente gripado e febril, passando mal mesmo, e mediante minhas fungadas e tosses, ao invés de receber ao menos um "saúde" dos colegas de sala ao espirrar, um lenço de papel emprestado ou uma dica solidária de tomar um cházinho quando chegar em casa, fui recebido com disfarçadas vaias e com risadas de alguns colegas gaiatos do lado, rindo-se de minha situação infeliz! "Pai! Perdoai-os, eles não sabem o que fazem!"E olha que alguns engraçadinhos ainda se dizem cristãos! Qual é mesmo o curso deles? É duro cair e levantar, até em cursos religiosos!

Cair e levantar. Na exploração da vergonha, na transformação da humilhação em espetáculo temos muito também da dinâmica do sistema capitalista, em nossa sociedade do big brother, acostumada agora a transformar qualquer programa de TV em reality show, a ponto da realidade assistida curiosamente todos os dias pelos "xeretas" de plantão em frente à tela, é bem mais interessante que a realidade que se vive fora da televisão. Quando eu falo do capitalismo, na exploração do riso fácil mediante o constrangimento alheio, refiro-me à ideologia liberal, que prega que, a cada queda, o indivíduo realmente empreendedor, efetivamente trabalhador e interessado em competir, apesar do riso se levanta após a queda, e depois de muitos tombos (e muitas risadas) acaba vencendo na vida. A humilhação para a ideologia capitalista faria então parte da cultura da sociedade, uma espécie de rito de passagem da livre iniciativa, para aqueles que quisessem realmente prosperar no sistema. Teríamos todos que ser alvo de zombaria algum dia, criticados pelos nossos quilinhos a mais, para que buscássemos a desforra contra nossos zombeteiros em boa forma, procurássemos academias, spas e produtos para emagrecimento, para então nos levantarmos como novos homens e novas mulheres, aptos para o sistema. Teríamos que nos humilhar para conseguir um bom emprego, nos sujeitando a chefes sacanas e sádicos, começando nossa vida laboral como subordinados, ouvindo todo tipo de piadas, gozações e zombarias acerca de nossos defeitos, para que pudéssemos utilizar isso para vencer. É a ideologia "Mickey Mouse", a filosofia da autoajuda. Mesmo que isso magoasse ou deixasse magoadas milhões de pessoas, que queriam tão somente ser reconhecidas pelos seus méritos próprios, e não como aqueles que escorregaram, que caíram, que "pagaram mico", que apareceram cafonas, ou, que simplesmente fossem feios, para os padrões estéticos de uma sociedade sempre em busca de uma artificial perfeição.

Agora é a vez das crianças. Já rimos de tudo, já gargalhamos de todos, gordos, magros, narigudos, orelhudos, cegos, mancos, pernetas, dentuços desdentados, e todos os tipos imagináveis nesse freak show televisivo que se tornou os nossos programas dominicais. Agora resta rir das crianças. Sim! Rir de sua inocência, de sua pureza infantil, de suas travessuras, e mesmo de seus choros e sustos, quando, por exemplo, Silvio Santos, com sua indefectível risada: ha,ha,ha,hayyyyy, apresenta um suposto "monstro" no auditório, fazendo a criança correr desesperada, gritando e chorando copiosamente, num misto de burlesco com inacreditável, tamanha a cara de pau do septuagenário apresentador.

A menina Maísa foi celebrada no último ano na TV brasileira como a nossa Shirley Temple, uma linda criança precoce, apresentadora de programas infantis, que do alto de seus bens penteados cabelos cacheados, diz o que quer. Ficou famosa na Youtube a cena do Programa de Silvio Santos, onde a apresentadora mirim mexe nos cabelos do apresentador, enquanto ele estava distraído conversando com outras crianças do auditório, e sai diante das câmeras, rindo e declarando: " é peruca, é peruca"! Na sua alegria infantil, a pequena Maísa contribuiu para desbaratar uma lenda urbana, ouvida durante décadas, de que o topetudo apresentador do SBT não tivesse há tempos, seus fios de cabelo naturais. Quem é que nunca se riu da ingenuidade infantil da criança que, de tão inocente, faz sem a menor cerimônia perguntas constrangedoras, que nós adultos temos vontade de fazer, mas nunca temos coragem de dizer? O problema é a utilização dessa ingenuidade com fins mesquinhos de mercado, tão somente para aumentar a audiência.

Parece que diante do abuso, nem o Ministério Público de São Paulo aguentou. Diante dos abusos cometidos pelo SBT, no programa de auditório de seu maior proprietário, onde a menina Maísa era exposta ao ridículo, tão somente para aumentar a audiência do programa, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão em São Paulo solicitou ao SBT cópias das fitas relacionadas aos últimos programas dominicais de Silvio Santos, especialmente àquelas referentes aos dois programas sucessivos em que a criança chorou nas telas da TV. Segundo o MP, além de ter explorada sua força de trabalho, a menina ainda tem uma sucessiva e impiedosa exposição na mídia, sem direito à privacidade, com uma infernal saraivada de flashs de fotógrafos em sua vida pessoal. O MPF também solicitou a cópia do contrato que a emissora mantém com os pais da criança. Posteriormente à solicitação do MPF, a Justiça já se pronunciou, proibindo a apresentadora Maísa de participar do programa de Silvio Santos.

Certamente, não é apenas o SBT, mas também os pais de Maísa, os principais responsáveis por quaisquer danos ou consequências psicológicas sérias na formação daquela criança, pela forma com que ela está se expondo. Porém, o mais grave é que ao expor a criança ao ridículo, como se fosse "bonitinho" ver uma criança chorando convulsivamente no palco, revela-se a total falta de limites atribuídos a uma criança, mas sobretudo a seus pais. O comportamento visto daquela bela criança nas telas, revela bem o stress a que está sendo submetida uma criatura de tão pouca idade, incapaz de poder decidir sobre sua carreira, que na verdade deveria estar em casa, ou no colégio com seus coleguinhas da mesma idade, brincando normalmente, e que na verdade quer tão somente exercer o seu direito de ser criança. "Do meu filho quem cuida sou eu!" Podem dizer os pais da menina Maísa. Concordo. Mas na hora em que esse cuidado resvala em descumprimento da lei, é bom ter outro cuidado, aquele de não ser processado.

O velho apresentador Senor Abravanel, por sua vez, não contribuiu em nada para a transposição nas telas de um programa dominical decente (como era outrora seu programa dominical, nos anos oitenta, com seu "Domingo no Parque"), apelando agora para a baixaria e o lucro fácil no desespero da busca de audiência. O vovô Abravanel parece não saber lidar bem com crianças, tratando-as ora com descaso, ora como adultas, como bem se pôde perceber num dos vídeos disponibilizados na internet, mostrando os dois domingos, onde a menina Maísa ficou exposta ao ridículo. As cenas são de tanto mal gosto e de tanta vileza, no tocante à exploração da imagem de uma criança, que chegam a gerar repulsa, mas é importante que sejam vistas, até para que todos aqueles que defendem limites éticos na TV (se é que isso ainda existe) possam ver o que ocorreu, e, se quiserem, reprovar tais condutas.

A Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (O Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA) é clara, em seu artigo 17, que é direito fundamental, portanto assegurado constitucionalmente, que toda criança e adolescente tem direito à liberdade, respeito e dignidade como pessoas humanas, e que esse direito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e adolescente, preservando-se sua imagem, identidade, valores, crenças, objetos pessoais etc. Além disso, a mesma Lei diz que é crime, em seu artigo 232, "submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento". Ora, para quem tiver um mínimo de sensibilidade e quiser ver, ao observar nos vídeos do youtube ou no enxame de reportagens sobre o caso, os dois programas de Silvio Santos onde a menina Maísa chora, vê-se claramente que a menina teve uma reação nervosa natural das crianças ao se assustarem ( que somente os psicólogos infantis sabem precisar bem), saindo em debandada aos prantos pelo palco do programa de auditório, quando Silvio trouxe uma outra criança fantasiada de monstro. No programa seguinte, para piorar a situação, e não para ajudar, o velho apresentador lembrou o fato à atônita criança, tratando-a como adulto, como que(mesmo em tom de brincadeira) cobrando da criança o choro do domingo anterior, pelo que Maísa respondeu com mais choro, só que, desta vez, além de chorar como toda criança, ela bateu com a cabeça numa câmera de TV, vindo a chorar mais ainda, só piorando a situação. Quem disse que de imediato alguém suspendeu a transmissão do programa e foi acudir a menina? Nãoooo! Pelo contrário, mais e mais risadas do público foram provocadas, puxadas pelo coro das brincadeiras de mau gosto do apresentador, como se tudo não passasse de uma encenação. As cenas vistas, são de arrepiar os defensores do ECA.


Alguns poderiam dizer que tudo o que escrevo aqui é besteira, pois no caso dos programas assistidos, tudo não passa de uma encenação, onde o choro de Maísa já era planejado pela produção do programa, e a menina, na verdade, estaria provando mais uma vez seus talentos de atriz-mirim, dando um show de interpretação. Detalhe: acho que não estava no script a câmera onde a cabeça da menina se esborrachou. Entretanto, se for assim, o caso é pior ainda, possível até de instauração de um processo criminal, pois nada justifica na cultura do espetáculo, submeter propositadamente crianças a vexame, tão somente pelo lucro, uma vez que mesmo na qualidade de atores, essas crianças não tem a capacidade de discernimento e nem o arbítrio dos adultos, para recusar ou aceitar determinados papéis. A responsabilidade então resvala nos organizadores do programa de televisão e nos pais da criança; ou seja, vai gerar calhamaços e mais calhamaços de ações judiciais na Vara da Infância e Juventude.

Silvio Santos e sua equipe deram uma bola fora, realmente. Na verdade, antes mesmo de Gugu Liberato ver perder de vez sua audiência (e, consequentemente, ver sumir a possibilidade de assumir o cetro de sucessor de seu mestre, Silvio Santos) com a famigerada falsa reportagem sobre o PCC, no final dos anos noventa, eu já tinha deixado de assistir canais como o SBT há muito, a não ser em eventuais noticiários. Creio que a última grande audiência que o "homem do baú" teve foi, não só no seu canal de TV, mas em toda mídia, no triste episódio do sequestro de sua filha, que também sobrou pro próprio apresentador, em 2001, quando um dos sequestradores tomou a sua casa e lhe fez de refém, sob as câmeras de televisão de todas as emissoras do país. Ironia do destino: a maior cobertura jornalística dada, por quase vinte e quatro horas do cárcere privado do dono do SBT, foi feita pela maior concorrente: a rede Globo. O fim da estória todos sabem, e do triste destino do sequestrador, Fernando Dutra Pinto. Parece que depois daquele enorme susto, e alguns problemas de saúde, o senhor Senor Abravanel perdeu um pouco o discernimento acerca dos limites éticos a serem observados em programas de auditório, e, muito possivelmente mal assessorado, acabou, por, inadvertidamente, explorar impropriamente a mão-de-obra e o choro convulsivo da criança Maísa.

Eis que chego a seguinte reflexão: se Deus existe, acho que Ele não anda vendo muito TV, senão cortava o sinal dos satélites e deixava todo esse lixo cultural fora do ar! Que saudades do Domingo no Parque!

3 comentários:

  1. Obrigada pelos elogios, Fernando. Achei os assuntos que vc aborda em seu blog muito interessantes. Vou ficar de olho! Como vc descobriu meu blog? Bjão

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  2. Belo texto Irmão! Realmente, falta na TV brasileira programas culturais, e principalmente um pouco mais de humanidade na nossa sociedade, inclusive nas faculdades.

    SOLI DEO GLORIA

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  3. Belas palavras, como sempre caro professor. Infelizmente vivemos em uma sociedade cada vez mais capitalista, onde não importa o que está sendo explorado, o importante é o lucro.

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