Confirmados os resultados das urnas e desfeita (convenientemente) a suspeita de fraude eleitoral, tudo indica que o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad conquistou um segundo mandato presidencial, repetindo o feito de outros presidentes da república islâmica, que sempre conseguiram se reeleger.
Não demorou para que o resultado da eleição fosse imediatamente questionado pelo candidato da oposição. Milhares de manifestantes seguiram para as ruas, enfrentando à polícia, questionando o resultado e não aceitando a reeleição de seu governante. A ONU, e diversos governos estrangeiros, como os EUA, manifestaram sua preocupação com os rumos da eleição iraniana, uma vez que as imagens de conflitos de rua e eleitores da oposição sendo espancados pela polícia, não é bem a demonstração de uma "festa da democracia", que se deseja ver numa eleição.
Não obstante às manifestações, num país onde o voto é facultativo ( e no Brasil já deveria ser assim), com o comparecimento maciço do eleitorado às urnas, numa radical polarização entre o atual presidente, e o representante da oposição, Mir Hossein Mousavi, parecia que a atual eleição iraniana ficaria indefinida, mediante um quadro de pesquisas eleitorais que apontava dificuldades para a reeleição do atual Chefe do Executivo. Entretanto, abertas as urnas, revelou-se que Ahmadinejad obteve seu triunfo, acumulando cerca de 64,78% dos votos. Um recorde eleitoral! Em termos comparativos, é como se tivesse sido reeleito uma espécie de "Lula da Pérsia".
Mas o que faz o presidente iraniano ser tão comentado, tão polemizado e tão combatido no Ocidente? Ahmadinejad tornou-se uma celebridade internacional (assim como seu colega venezuelano Hugo Chavez), pelo jeito fanfarrão de se pronunciar, a retórica populista e antissemita, a aparência de sindicalista do PT nos anos oitenta, mas sobretudo pelo conservadorismo islâmico, que encarna com perfeição o perfil do eleitor popular em solo iraniano. Assim como políticos conservadores e ao mesmo tempo populistas do Ocidente, como George W. Bush, Ahmadinejad se fez uma versão islâmica de um "Bush às avessas", ao também conquistar o eleitorado mais pobre, conservador e menos alfabetizado do Irã, com seus trejeitos de candidato "identificado com o povo". Outrora engenheiro civil e prefeito de Teerã, Ahmadinejad foi o primeiro político iraniano a galgar à presidência sem pertencer ao clero xiita de aiatolás, que são os que, na verdade, comandam com mão de ferro o país desde a Revolução Islâmica de 1979. Um capítulo a parte, para que possamos tecer nossos comentários, nessas conexões:
Hoje, em 2009, completaram-se 30 anos de uma revolução que mudou a face do Oriente Médio. O Irã, até então um protetorado devedor da herança colonial da antiga ocupação britânica, e descendente do antigo e poderoso Império Persa da Antiguidade, na década de 70 vivia sob uma ditadura, comandada pelo rá Reza Pahlavi, com apoio incondicional dos Estados Unidos. Se por um lado, o governo de Pahlavi trouxe modernização, requinte e luxo e costumes do Ocidente para a antiga região da Pérsia, por outro lado, a miséria, a exploração econômica, a repressão política e o descontentamento tomavam conta da população do país. Nessa época, religiosos e comunistas eram perseguidos igualmente, mas quem acabou levando a melhor, no final, foi o clero xiita, que liderando uma revolução, com o apoio de sindicatos, funcionários públicos, e sobretudo do operariado que trabalhava no setor petrolífero, paralisando a produção do setor em greves gerais e mobilizações, acabou por conquistar a adesão dos militares, que, desertando em série das fileiras dos exércitos do governo (que reprimiam ferozmente as manifestações populares, atirando contra as multidões), acabaram por derrubar o xá do poder, obrigando-o a pedir asilo político nos Estados Unidos, vindo a morrer logo após, vítima de um câncer.
Era só o que faltava para o idoso, baixinho, carrancudo, porém carismático, líder religioso, o aiotolá Khomeini, retornar do exílio na França e ser recebido de braços abertos pela população revoltosa, como novo líder político do país e símbolo da revolução. Os xiitas logo se viram numa enorme encrenca, quando as forças contrarrevolucionárias, apoiadas pelo país vizinho, o Iraque, de imediato iniciaram um sangrento conflito, que custou milhares de vidas de jovens soldados iranianos, que pela fé no Islã tornaram-se mártires de uma nova revolução. Os anos oitenta foram marcados pelos horríveis conflitos entre iranianos e iraquianos, com Khomeini, de um lado, liderando o novo regime com seu discurso islâmico fundamentalista, exortando o povo a combater os "chacais infiéis", inimigos de Alá, a serviço do Grande Satã, enquanto o Iraque, do outro lado, era liderado por um jovem Saddam Hussein, também um terrível ditador, financiado naquela época, assim como seu colega Pahlavi, pelo dinheiro dos Estados Unidos (o mesmo Saddam que se tornaria o "inimigo número um" do governo de Bush pai e Bush filho).
Finalmente vitoriosa a revolução, com o fim do conflito com o Iraque e a morte de Khomeini, restou ao clero xiita reorganizar um país em frangalhos, mediante seu Conselho de Guardiães, e a consequente formação de uma teocracia, onde os representantes eleitos só assumiam se recebessem as bençãos de Alá. O governo teocrático iraniano inaugurou um regime constitucional baseado na Châria, na lei islâmica, de uma forma bem mais radical do que a Arábia Saudita, moralizando os costumes e rompendo os laços com quaisquer influências da tradição ocidental. Foi a volta da obrigatoriedade do véu e do chador, cobrindo os corpos das mulheres, assim como os homens foram obrigados a deixar crescer suas barbas, sob pena de espancamentos públicos, realizados pela polícia de costumes islâmica, onde tudo era proibido: desde álcool, cigarros, música laica e estrangeira, até o uso de trajes ocidentais, gírias dos jovens, e mesmo a proibição de homens andando ao lado de mulheres nas ruas, caso não comprovassem que com elas eram casados. A rigidez do regime levava os casais ao absurdo de terem de andar nas ruas com a certidão de casamento entre os pertences, ao saírem de suas casas, sob pena de serem presos, por "crimes contra à moralidade pública".
A rigidez das transformações culturais impostas por decreto pelo novo governo islâmico contrastavam com uma juventude universitária, urbana e letrada, que já tinha tido contato com os costumes e modas ocidentais, e que consideravam todos aqueles excessos um absurdo, uma intromissão indevida num modo de vida que começava a preservar a individualidade. O comunitarismo islâmico, com a primazia do interesse coletivo sobre o individual, e seu forte moralismo, não se conciliava com o individualismo da cultura do povo iraniano, até então permeável à influência ocidental. Tanto o
graphic novel, quanto o filme de animação
Persépolis, baseado nos quadrinhos da escritora e fotógrafa iraniana Marjani Satrapi, demonstram muito bem o que foi a crise de valores na juventude iraniana dos anos oitenta e noventa, que no pós-guerra teve que viver com toda sorte de regramentos, fiscalizações e repressões. A ponto de até hoje, jovens universitários fazerem comunidades no orkut e no facebook, onde combinam festas clandestinas no país em locais distantes da cidade ou clubes subterrâneos, únicos lugares onde o álcool, maquiagem nas mulheres, música eletrônica, paqueras e namoros são liberados.
Por outro lado, a revolução islâmica ajudou a reerguer o país lentamente, mediante uma reforma agrária que valorizou o trabalhador no campo, o fomento de garantias trabalhistas para os operários do setor petrolífero e a formação de um serviço público especializado. O desenvolvimento do comércio, aliado a sucessivas aberturas econômicas no final dos anos noventa, aderindo a novos parceiros como a Rússia, a China e a Venezuela, trouxe uma tímida prosperidade novamente ao Irã, aliado ao fato de que a formação de bons técnicos e o emprego de altas tecnologias, também fizeram com que o país de Ahmadinejad se tornasse um potencial produtor de energia atômica, com o desenvolvimento da indústria e a construção de usinas e reatores. A modernização do efetivo militar, a pretexto de combater os inimigos externos, dentre eles Israel, serviu também como pretexto para uma corrida armamentista, onde o Irã figura hoje como um dos eventuais países integrantes do "Eixo do Mal", segundo a expressão do ex-presidente George W. Bush, uma vez que o país, declaradamente inimigo de Israel e desafeto do governo norte-americano, vez ou outra utiliza de seu potencial bélico para afugentar iniciativas de qualquer investida contra a terra dos aiatolás.
É nessa realidade social, nesse contexto local e com essa divisão da população que Mahmoud Ahmadinejad contou com apoio político, conquistando seu eleitorado. A divisão de classes no país reflete bem o panorama eleitoral que levou o atual presidente à reeeleição, num Irã dividido entre um lado: formado por um segmento popular de agricultores, operários, funcionários públicos subalternos e militares, e de outro: mulheres, universitários, jovens urbanos, artistas, minorias étnicas e a classe média, formada por advogados, médicos e engenheiros. O primeiro grupo é formado pelos eleitores do atual presidente, o outro, formado por um segmento mais letrado, jovem, que reivindica abertura política e mudanças culturais, é que apóia o candidato da oposição, o moderado Mousavi.
Como um "Antony Garotinho" de Teerã, Ahmadinejad sabe manipular bem o discurso conservador e desenvolvimentista para as massas, articulado desde o tempo em que advogava para interesse populares, antes de ingressar na política, ressaltando sua origem humilde e compromisso com os mais pobres. Ver o Irã de hoje, é pensar hipoteticamente como seria o Brasil se um candidato como Garotinho, ou outro, de matriz religiosa semelhante, como o bispo Marcelo Crivella, assumissem a presidência, num discurso eminentemente voltado para uma população pobre, de baixos salários e acentuadamente religiosa. Assim como o casal Garotinho tentou estimular o ensino do criacionismo nas escolas da rede pública municipal do Rio de Janeiro, numa clara incursão do fundamentalismo religioso na política, no Irã, políticos como Ahmadinejad sabem que não podem desvencilhar seu discurso populista de um forte apelo religioso, que assume, quase sempre, ares messiânicos, como nas pregações em palanques de que os "abençoados servos de Alá"colocados à disposição do povo, estão prontos para atacar os infiéis que querem prejudicar a nação.
Além disso, assim como Hugo Chavez na Venezuela e o ditador Kim Jong-Il da Coréia do Norte, o presidente do Irã faz o tipo fanfarrão (apesar da aparência franzina, mal ajambrada e até anti-higiênica), com um discurso radical, cheio de bravatas contra o Ocidente (particularmente os EUA), mas com especial dedicação em avacalhar Israel, chegando o governante iraniano ao cúmulo de defender a eliminação do Estado Judeu, varrendo-se o país do mapa, bem como declarando o absurdo de negar o holocausto judeu, bem na época que o presidente norte-americano Barack Obama visitava antigos campos de concentração na Alemanha. Se as declarações de Ahmadinejad pecam pela falta de bom senso e pelo mau gosto, ao menos o principal o baixinho iraniano conseguiu ao aparecer na mídia internacional, em todas as câmeras de TV e monitores de internet, como o presidente linha-dura, de uma nação de mártires, que não temem ser humilhados pelo gigante americano ou pelo vizinho israelense. A diferença de Ahmadinejad para Bush é só de nacionalidade e biografia, mas não de estilo. Assim como o ex-presidente norte-americano, o governante do Irã faz o tipo populista, buscando se identificar ao máximo com as classes populares, com um discurso belicista e nacionalista cheio de chavões, e com uma retórica religiosa como pano de fundo, como se o seu povo fosse aquele abençoado, habilitado por Deus para repelir e reprimir todas as nações contrárias às causas divinas.
Foram esses argumentos que Bush utilizou para invadir o Iraque, e são os mesmos que Ahmadinejad utiliza para se perpetuar no poder. Por causa de suas declarações bombásticas, não demorou muito para que o governo brasileiro fosse criticado por ter convidado o presidente iraniano a visitar o nosso país, numa série de acordos comerciais e enérgicos desenvolvidos entre o Brasil e vários países do Oriente Médio. A notícia da vinda de Ahmadinejad pegou tão mal, que não deixou de ser um alívio para a diplomacia brasileira a notícia de que o polêmico iraniano não viria mais ao país, cancelando sua visita oficial, numa providencial conjuntura onde sua presença não era bem vista nem em festa de aniversário.
Por outro lado, de uns meses para cá, a mídia internacional, especialmente àquela vinculada aos interesses do liberalismo, acabou por ver com bons olhos o líder oposicionista Mousavi, apesar de em termos de fé islâmica ele ser tão conservador quanto seu adversário governista (talvez porque ao menos, este tem cara de quem toma banho). É bem provável que a única diferença que resida na candidatura de Mousavi, e que rendeu até agora violentos protestos, manifestações e conflitos de rua entre seus partidários e a polícia, em função do resultado das eleições, seria o de que seu discurso (diferente de Ahmadinejad) é mais cauteloso em relação a nova gestão presidencial na Casa Branca, sob a liderança de Obama, e soma-se a isso o desejo de boa parcela da sociedade iraniana em promover reformas que levem não apenas a uma abertura política e cultural, mas sobretudo a uma abertura econômica do país. Nesse sentido, o bem vestido e intelectual Mousavi, assemelhando-se a uma espécie de "FHC islâmico" cai como uma luva para os interesses da classe média emergente de Teerã. Até agora, Mousavi se apresenta bem na mídia internacional como vítima de um complô eleitoral, orquestrado pelo governo, para impedir a mudança de poder no Irã, apresentando-se como o "vencedor moral" do pleito presidencial; mas não se sabe até que ponto seu discurso de vitimização fará efeito no sisudo Conselho dos Guardiães que investigará e julgará o caso (chefiado pelo ultraconservador chefe religioso supremo da nação, o aiatolá Ali Khamenei), assim como será determinante para a confirmação ou não de mais quatro anos de Ahmadinejad no poder. Vale salientar que Mosauvi recebeu o apoio de parte do clero xiita, com posições mais moderadas e reformadas, como a do aiatolá Mohammad Khatami, ex-presidente do país. Também conta o fato que a população iraniana, já cansada de tantas guerras, conflitos e privações, não estaria disposta a permanecer revoltada nas ruas por muito tempo, correndo o risco de gerar um novo e indesejável banho de sangue, quando esta sociedade, herdeira do povo persa, começa a se reerguer.
Mesmo que se comprove que houve fraude eleitoral nas eleições do último final de semana, é inquestionável o fato de que a população rural e mais proletarizada do país, é a mais seduzida pelo discurso conservador e religioso de políticos como Ahmadinejad e mais devota do clero xiita, do que apegada ao discurso cauteloso e mais racional de Mousavi, mesmo que isso implique na inexistência de uma liberdade de expressão, num controle absoluto sobre os meios de comunicação (principalmente a internet), e numa repressão franca às minorias, principalmente homossexuais e mulheres.
A questão é se saber qual será o posicionamento dos religiosos integrantes do Conselho de Guardiães, uma vez que apoiar Mousavi seria, tão e simplesmente, acenar para uma abertura política, desejada na política internacional, sobretudo pelos Estados Unidos, numa nova era em que o atual presidente, Barack Obama, faz de tudo para acertar um novo tipo de relacionamento com as nações islâmicas
. Como se diz no Alcorão (2:255):
"Que seja feita a vontade de Alá, o altíssimo e misericordioso! Ele sabe o que está antes deles e atrás deles, e a eles não abrange nada do Seu conhecimento exceto o que Ele quer!"