O Rio Grande do Sul tem um dos maiores contingentes carcerários do país, e, para piorar, recentemente as decisões dos juizes de primeira instância de liberarem presos em função da superpopulação carcerária só rendeu críticas na imprensa, e o pronunciamento furioso de alguns representantes do Ministério Público. Se compete ao Judiciário julgar e condenar ou absolver, seria lógico pensar que os réus condenados à penas privativas de liberdade deveriam permanecer presos, mas não é bem assim.
Em sua célebre obra Vigiar e Punir, em certo trecho, o filósofo francês Michel Foucault analisa o movimento dos reformadores na época do Iluminismo, dentre eles Becaria e Lacretelle, reconhecendo até certo ponto a contribuição histórica daqueles pensadores para a reforma do sistema penal e para a adoção de penas mais humanitárias que escapassem do martírio e das sangrentas execuções em praça pública. Propunham os reformadores um novo modelo de sistema penal, que passou a ser adotado pelo direito ocidental, sob o nome até hoje conhecido de modelo ressocializador. A pena teria, portanto, a função de ressocializar o condenado, e não apenas de retribuir o mal perpetrado pelo criminoso, através da aflição de um outro mal, que seria a imputação da sanção penal. Entretanto, a instituição prisional surgiu como alternativa prática a um contingente cada vez maior de apenados e acabou se tornando sinônimo de "pena eficaz". Os "nobres" propósitos de Becaria foram, portanto, deixados para traz em prol de uma nova tecnologia de poder que saía da fábrica, da exploração do trabalho e ia para o cárcere, lugar onde os criminosos deveriam permanecer enjaulados e contidos. Sobre isso Foucault estabelece que, para a frustração dos reformadores, " a prisão surgiu como um sucesso institucional, mas um fracasso penal". Deixamos que os indesejáveis fossem jogados num depósito de presos, e suas gravíssimas repercussões são hoje sentidas no mundo inteiro, e, em especial no Brasil, sobretudo na dura realidade do sistema penitenciário gaúcho.
Eis que surge a proposta de reforma do Código de Processo Penal (CPP), mais uma, após ter entrado em vigor em 1941, depois da última alteração de 1983. O projeto, endossado por uma comissão dos melhores juristas do país, encabeçada pelo ministro do STJ, Hamilton Carvalhido, propõe uma série de alterações que tornem as hipóteses de prisão mais restritas, porém mais sólidas, e eminentemente baseada em teses garantistas, busca assegurar que a legislação processual penal não sirva apenas para fazer funcionar as engrenagens de uma máquina punitiva, somente interessada em reproduzir em série uma sucessão de mandados de prisão.
O projeto, questionado por uns, ovacionado por outros, muda a dinâmica do trabalho policial e do Judiciário. Prevê a extinção da prisão em flagrante, se esta não for convertida, após sua lavratura, em prisão preventiva. Desta forma, o projeto reformula o trabalho da polícia e faz com que, necessariamente, a polícia judiciária ande mais sintonizada com o Ministério Público, titular da ação penal, uma vez que os pedidos formulados pelas autoridades, direcionados ao juíz, terão que necessariamente ser devidamente fundamentados, obrigando a polícia e o MP a já reunir um conjunto de provas suficientemente plausíveis para que seja decretada a prisão.
Para o Judiciário é proposta a figura do juiz de garantia, francamente inspirada na moderna legislação francesa, em que o juiz que atua no processo, durante o inquérito policial, que concedeu a prisão preventiva, não é o mesmo que julga a condenação do réu. Procura-se com isso evitar um comprometimento da parcialidade do juiz, uma vez que aquele que decretou a prisão teria, certamente, uma vinculação emocional maior com os fatos, pois é aquele que está mais sujeito aos efeitos do inquérito. Como durante o processo criminal é assegurado o contraditório e a livre produção de provas, naturalmente (até por força de jurisprudência), os juízes são obrigados a decidir não apenas com base no inquérito, que pode até ser desconsiderado mediante o surgimento de novas provas no curso do processo, mas o que ocorria tradicionalmente nas comarcas do juízo criminal é que magistrados se baseavam excessivamente nos inquéritos, e isso por vezes comprometia seu grau de discernimento ao aplicar as sanções penais nas sentenças condenatórias.
Na verdade, a meu ver o projeto ressuscita a figura do juiz de instrução, típica dos tempos do Brasil Império, tão somente vinculado ao inquérito e interessado na coleta de provas, enquanto que o juiz de decisão seria outro, preocupado tão somente em reunir o conjunto probatório para firmar sua convicção. Tal modelo é bastante conhecido no direito europeu, sendo utilizado com eficácia em países como a Itália e a França, e visa tão somente adequar o julgamento do processo ao princípio constitucional do devido processo legal, que seria por demais respeitado.
O texto do projeto de reforma também propõe aumentar o número de jurados que compõem o conselho de sentença, no tribunal do júri, dos atuais sete membros, para oito, por considerar ser quase injusto condenar um réu por apenas um voto de diferença, e prevê ainda a absolvição do acusado, em caso de empate. Ainda nos aspectos processuais, em segundo grau de jurisdição, o projeto também prevê uma limitação do emprego dos recursos chamados de embargos de declaração, até então impetrados incessantemente pelos advogados dos réus, quando sobrassem dúvidas quanto o entendimento da decisão judicial decretada, tão e simplesmente para atrasar o processo (principalmente quando o réu se encontra em liberdade), estabelecendo que a partir da reforma, em cada uma das instâncias que, porventura passar o processo, somente pode ser interposto um embargo de cada vez.
O projeto de reforma do CPP também inova ao propor a extinção do foro privilegiado, que hoje beneficia, na maior parte das vezes com impunidade, políticos e autoridades que ganham o privilégio de somente serem processados por tribunais superiores. A comissão também se reuniu com o intuito de discutir o fim da prisão especial, para os portadores de diploma de nível superior, como uma clara forma de combater, a meu ver, os privilégios concedidos aos chamados "criminosos de colarinho branco", que ostentam, facilmente, um diploma universitário. Porém, é legítima a discussão de que o fim desse privilégio na prisão deveria estar relacionado à condenação definitiva do réu, no trânsito em julgado da decisão, a fim de combater injustiças, a não ser nos casos que o réu fosse efetivamente perigoso ( o que não deixa de voltar o tema à discussão acerca do conceito de periculosidade, ensejando a formação de tipos penais abertos).
Talvez uma das maiores e mais profundas alterações processuais que se deseja com a reforma, é a ampliação de medidas cautelares, hoje restritas apenas a três modalidades, como a prisão provisória, a fixação da fiança ou a detenção domiciliar. O projeto prevê 11 possibilidades, dentre elas: a proibição de frequentar certos locais públicos, a suspensão da habilitação para dirigir, pilotar ou conduzir embarcações, o afastamento do lar em casos de violência doméstica, a suspensão do exercício de função pública, a interrupção das atividades de empresas nos delitos econômicos, dentre outras medidas. É bem verdade que muitas dessas alternativas processuais já estão elencadas em outras leis, que vieram sucessivamente à última reforma do Código, distribuídas esparsamente em forma de legislação extravagante. Entretanto, o projeto propõe unificar a legislação, gravitando em torno do Código todas as alternativas cautelares de natureza penal.
Creio que, para todos aqueles que operam na seara penal, de advogados, policiais, até peritos, promotores de justiça e magistrados, as alterações propostas pela comissão são bem vindas no sentido de operar uma mudança legislativa que já deveria ter ocorrido há mais de vinte anos. Não me canso de falar em sala de aula para meus alunos que as demandas jurídicas por transformações no sistema penal não passam necessariamente pela alteração do direito material, mexendo-se no Código Penal, mas sim de profundas transformações que devem ser propostas no processo penal. É lá que se desenvolve o "direito vivo", réus e seus advogados se acotovelam nos sobrecarregados cartórios, e c0ndenados se contorcem sem conseguir ao menos sentar em celas superlotadas, em virtude das dificuldades do sistema em lidar com o fenômeno criminal. A crítica do sistema penal é a crítica de suas instituições, e mediante uma reforma jurídica do aparato repressivo, seja por meio de transformações nas próprias instituições, ou por inovações no ambiente processual, poderemos ver, quem sabe, novas alternativas serem propostas tanto no curso do processo, quanto, indiretamente, na execução penal, sem que isso implique numa política de tolerância zero, tão somente reduzida a uma estigmatizante e atabalhoada ciranda de prisões, que nada contribuem para a melhoria do sistema, e para a responsabilização definitiva e eficaz dos autores de delitos. Vejamos no que isso vai dar!
Oi Pretinho!
ResponderExcluirleia: A CABANA, autoria de William P. Young, Editora Sextante.
Leia e depois falamos!
beijos,
Branquinha