Às vezes fico refletindo sobre o conceito de mulher vulgar. Será que de fato o conceito existe ou se trata apenas de uma definição arbitrária do senso comum?Será que a vulgaridade atribuída aos atos e gestos de algumas mulheres não é fruto de mais um dos sorrateiros expedientes machistas da dominação masculina? Bem! Talvez, de fato, o conceito de mulher vulgar só sirva propriamente às mulheres, pois a elas interessa mais do que aos homens qualificar uma conduta de sua semelhante de gênero como vulgar. Afinal de contas, mulheres são ou não são desunidas entre si?
Passei a refletir sobre isso, do alto de minha barbicha coçada à exaustão,quando penso em escrever minhas litanias virtuais, tendo em conta recente episódio, tristemente testemunhado por mim, por estes olhos meus que a terra há de comer, quando, recentemente, visitei um agradável barzinho, ao lado de um amigo meu, colega de profissão. Nós, como dois professores almejando o santificado chopinho de fim de expediente após a labuta das aulas, dirigimo-nos ao nosso suntuoso templo da cevada (alguns mais gaiatos, incluindo eu, chamam de "escritório") e lá, além da grata presença de amigos queridos, encontramos também três ex-alunas desse meu colega de vida boêmia, e o que poderia até se transformar num papo agradável, acabou me soando como a antesala do inferno (não meu, porque como diria Sartre: "o inferno são os outros!"). Quando uma das moçoilas nos abordou, esta, assim como suas colegas, parecia visivelmente alcoolizada. Até aí, tudo bem!Afinal de contas, quem é que não bebe mais da conta de vez em quando, não é mesmo?! O problema é que o estado alcoolizado das ditas estudantes universitárias no período noturno e trabalhadoras do setor terciário durante o dia, passou dos limites, quando o grupo passou a dar sinais de que sua farra poderia se transformar, facilmente, numa cena de hospital ou caso de polícia. E não foi o que ocorreu?
Entre galhofas, esbarrões, frases desconexas, babadas, cuspidas, puxões de cabelos entre elas, copos quebrados e amendoins de aperitivo sobrevoando as mesas, pude perceber até que ponto não só o homem, mas também a mulher pode sair de sua altivez feminina, cair do salto e literalmente bater com sua boca carnuda e vermelha de batom no fundo da sarjeta.Espanta ao homem ver uma mulher alcoolizada porque isso o faz comparar a embriaguez feminina com o absurdo da conduta masculina pós-álcool, identificada com a irresponsabilidade do homem ou exercício babaca de macheza ("o macho tem que beber"), contrária à conduta da mulher sóbria; pois, para o homem, as mulheres deveriam ser a encarnação da sobriedade. Na lógica patriarcal de nossa sociedade ocidentalizada, em seus moldes greco-romanos e com forte influência da cultura judaico-cristã, a figura do ébrio é sempre representada pelo homem, enquanto que para mulher compete a imagem da austeridade, da serenidade maternal que a tudo acolhe e tolera, inclusive os porres do marido. A "mulher honesta" a que aludia Júlio César, para justificar na Roma Antiga seu divórcio de Pompéia, deveria ser aquela mulher do tipo "Amélia" (que me perdoem as detentoras desse nome); ou seja, aquela que fica em casa, costurando ou cerzindo os uniformes do marido a serem usados na guerra, enquanto que o homem-guerreiro, ao voltar das batalhas, teria direito ao porre de comemoração, em tributo a Baco, enquanto que à mulher restaria uma ansiosa espera no lar do marido embriagado, à disposição de seu homem para entregar o seu corpo após a festa masculina, mesmo que tendo de aguentar um desgraçado hálito de vinho. Uma mulher que não se portasse dessa maneira, e, ao revés, provocasse a ira dos deuses, confrontando-os, saindo na balada e bebendo do que seria um líquido reservado aos homens, ou era tachada de bruxa ou prostituta. Parodiando a célebre novela televisa de Manoel Carlos, ao invés de "mulheres apaixonadas", nascia o epíteto da vulgaridade para as nossas "mulheres embriagadas"!
Vulgus, do latim, significa "povo, massa comum", ou simplesmente a palavra" popular". Sêneca já aplicava o termo em Roma para qualificar a turba, o povão, a plebe, aquela categoria social numerosa e distinta da elite, formada por homens e mulheres simples, que fazem da simplicidade sua maneira de ser. Vulgar foi então um termo utilizado para definir algo que seja do povo, do gosto comum, algo distante do que querem ou pensam os sábios, os estudiosos, os letrados, os detentores de conhecimento. Ora, tem coisa mais popular (vulgar) do que a bebida, consumida em larga escala sem distinções de raça, credo ou classe social? Por que as mulheres então seriam tidas como vulgares porque bebem?
A embriaguez para os gregos, definitivamente, não era atributo feminino. Seja no Banquete de Platão, ou nos relatos de Plutarco, Heródoto ou Tulcídides, a hora onde os convivas se regalavam no vinho e bebiam até cair ou vomitar era atributo dos homens, dos senhores das letras e da política, que em tributo a Dionísio, e levando em conta a fartura das colheitas de vinho, deveriam se entregar aos excessos, conduzindo-se a estados cada vez mais delirantes de embriaguez, enquanto competia às criadas ou esposas tão somente recolher em vasos o vômito de seus senhores. Não raro, figuras influentes da política deixavam-se embriagar na alcova, junto a suas amantes ou prostitutas, porque, na verdade, o compartilhamento da bebida inebriante não deveria ser feito junto às esposas. Na Idade Média, o feudalismo e o advento de uma cultura fundada na religiosidade cristã, com o poderio da Igreja Católica, reforçou os estereótipos e papéis sociais, condenando o álcool e a embriaguez, reservando às mulheres até mesmo a fogueira, se adotassem um comportamento semelhante ao das feiticeiras, estas sim, vorazes consumidoras de bebidas alcóolicas. O delírio, a conduta alucinada de quem bebe, não deveria estar associada à sagrada figura feminina. O cristianismo católico, vinculado ao cânone da santidade de Maria, não poderia admitir que no seio de sua comunidade pudessem existir mulheres depravadas, que destoam do seu ofício natural de mães, contrariando os mandamentos da igreja e se deixando levar pelo álcool. A saída para as cortesãs era o período do Carnaval, festa pagã tipicamente da Renascença, criada com anuência da igreja, no sentido de permitir, ao menos uma vez durante o ano, antes da quaresma, um curto período onde eram permitidas as licenciosidades (inclusive goles de birita tanto para homens e mulheres, desde que bem escondidinhos pelas máscaras carnavalescas).
Mulher alcoolizada passou então a ser tabu na sociedade ocidental, tanto quanto o adultério, o divórcio ou o incesto. Durante séculos os abusos a que estavam sujeitas devido à dominação masculina fizeram com que as mulheres ficassem obrigatoriamente sóbrias. Na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da psiquiatria e o surgimento da psicologia e posterior advento da psicanálise freudiana, o alcoolismo feminino passou a ser associado com doença, com surtos de histeria ou loucuras decorrentes do estado hormonal, que faziam a mulher tomar uns dois tragos ou mais, ou mesmo tão e simplesmente sinais de decadência moral e física. Quem desposaria uma mulher que leva uma garrafa debaixo do braço? Ter ao seu lado uma mulher alcóolatra era a pior das infâmias, motivo de escárnio ou preces devido a uma maldição causada ao homem por punição divina. Mulher e copo cheio de bebida não correspondiam, ao menos que o whisky, a cerveja, o vinho ou a cachaça fossem sorvidos pelo homem, a fim de alimentar seu apetite sexual e assim, de forma ébria, satisfazer-se sexualmente possuindo uma mulher, em estado de embriaguez preordenada.
Somente no século XX, com os movimentos de libertação da mulher e o surgimento do feminismo, o consumo de álcool e outras condutas tanto adotadas por homens quanto por mulheres, passaram, a meu ver, a serem toleradas na sociedade, não sem um certo tom de crítica e estereótipos traçados pela cultura do período. Até hoje, a visão de uma mulher segurando uma garrafa de bebida alcóolica, pode simbolizar tanto propaganda de cerveja quanto o auge da vulgaridade. No Código Penal, na jurisprudência, e na doutrina jurídica sobre os crimes sexuais, o fato de um homem ter relações sexuais com uma mulher embriagada ainda pode suscitar um processo por crime de estupro, com violência presumida, uma vez que muitos teóricos do direito entendem que a mulher num estado de embriaguez é incapaz de discernir sobre a natureza de seus atos ou de manifestar consentimento. Em função disso, muitos homens alertam os outros da "roubada" de conhecer uma mulher embriagada no meio da noite e com ela ir para a cama, uma vez que no dia seguinte o sujeito pode ter a polícia batendo na sua porta. O álcool ainda pode ser utilizado por muitos como artíficio ou mecanismo para inibir a mulher, tirar dela toda a liberdade de ação, e com isso usar da substância alcóolica como mais uma instrumento de subjugação.
Entre as figuras célebres no meio feminino que popularizam o consumo do álcool e até o utilizaram como marketing involuntário, podemos citar, na contracultura do final dos anos 60, a cantora Janis Joplin, que entre goles e mais goles de whisky, vodka e um quilo de drogas e substãncias alucinógenas, cantou a alma da mulher ferida entre um trago e outro, cambaleando por vezes no palco com sua embriaguez triste, porém lírica. Décadas antes, Billie Holliday sucumbia ao efeito das mesmas drogas e de doses cavalares de álcool, sem medo de dizer o que sentia ou o que cantava, e dando de bruços às críticas da sociedade conservadora e racista de sua época. O consumo de bebida e a imagem da bad girl passaram a caminhar juntos, e assim como os demais símbolos de contestação, as chamadas "moças de familia" passaram a sair de casa, contrariar seus pais e tomar umas doses de bebida, não sem antes receberem a extremada crítica de que mulher que bebe é mulher vulgar, mulher vadia ou que não tem a cabeça no lugar. Pra reforçar o estereótipo, na década de 80 do século passado, no lugar de Janis Joplin, tivemos o corpo sóbrio, sarado e rebolado de Madonna, dançando freneticante like a virgin, exalando sensualidade, mas sem uma gotinha de álcool, no seu perfil de geração saúde, regado à alimentação macrobiótica, exercícios, plásticas e cabala. Somente no novo século, nesta última década, é que pudemos reviver a estética de estrelas bebuns, como no caso das cantoras inglesas Amy Winehouse ou Lily Allen. No caso da primeira, as estripulias etítlicas serviram de fermento para os paparazi, enchendo os tablóides e alimentando a fama da nova estrela da soul music global, tanto quanto sua música, que esboça o mesmo sofrimento da perda do amor sentido a cada gole da mulher traída ou abandonada, como as idas e vindas das clínicas de reabilitação por consumo de álcool ou drogas de Miss Winehouse; enquanto que no caso da segunda, o consumo excessivo de álcool mais parece uma picardia juvenil pós-adolescente de quem quer aparecer através da birita. É! De qualquer forma, a impressão que fica é que sempre parece feio ver uma mulher encher a cara, e mais feio ainda de ver que nas novas gerações, mais e mais mulheres buscam seus iguais direitos numa sociedade masculinizada, imitando até os vícios dos criticados homens, vindo a beber tanto ou mais que seus antagonistas de gênero. Será que é preciso mesmo beber tanto?
Volto para a cena que vi nesta semana, vendo uma pobre coitada despencar embriagada de uma cadeira, batendo a cabeça no piso do bar, permanecendo inconsciente e desanimada, enquanto uma turba de garçons se apressava a reanimá-la, entre golfadas e mais golfadas de vômito. Pensei que desabava ali não mais apenas uma mulher embriagada, mas também o resto de sua autoestima e credibilidade. Bebemos por vários motivos: ou para comemorar a vitória de nosso time, o novo emprego conquistado, o nascimento do filho, a aprovação no vestibular, um novo emprego ou um aumento de salário; assim como podemos tomar mais uma dose para afastar sentimentos recônditos que odiamos, fugir da tristeza que não cansa de ficar, ou para esquecer amores perdidos. No caso da mulher, parece que a sentença por ter bebido e exagerado parece mais pesada e demasiada do que a dos homens. Não importa só a ressaca física da mulher que beijou a lona após ter bebido demais, mas sim aquela ressaca moral,que insiste em permanecer quando vemos que o fiapo de sedução que a mulher possuía desaparece,quando ao invés de um rosto, um cabelo ou corpo bonito, o que sobra é um corpo flácido e alcoolizado, mais parecendo um saco de batatas do que um objeto do desejo, numa noite perdida em uma mesa de bar. Não sou contra mulheres que bebem, e sou muitas vezes parceiro de uma rodada de chope de muitas de minhas amigas, mas o que percebo tristemente é que mais e mais mulheres desconhecidas vão me aparecer com bafo de whisky, martini ou cachaça, e dessas, com muita certeza, creio que não vou ter muito o que acrescentar. Só posso dizer uma coisa: SE BEBER NÃO DIRIJA! Até o próximo gole!!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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Entre biritas, Dionísios, Marias, vulgaridades e a decadência humana, nada justifica a cena lamentável da segunda!
ResponderExcluirFaltou um ítem aí: SIMANCOL.
Que bela despedida, hein amigo?
Até a próxima rodada, sem nenhuma "mimada sem noção" na volta para atrapalhar a noite alheia, de preferência!
Beijão!