sábado, 19 de junho de 2010

LITERATURA/HOMENAGEM:Saramago-um ateu que morreu como crente.

Sou um oportunista! Confesso! Sou um oportunista. Pela quantidade de obituários que podem ser vistos neste blog, como blogueiro pareço até um bom papa-defunto. São tantos assuntos e besteiras que posso comentar, que aproveito oportunisticamente a morte de alguém famoso para escrever. E nisso confesso, de forma meio desavergonhada, aos leitores deste blog, meu oportunismo mórbido como forma de criar assunto. E é me aproveitando dessa confissão que como um oportunista descarado (mas sincero), escrevo sobre o falecimento (e a devida homenagem) a um dos grandes nomes da literatura latino-americana(e mundial), e o único autor da língua portuguesa já agraciado com o prêmio Nobel de Literatura. Claro, a essa altura do campeonato e pelo título acima, todos sabem que estou falando da morte de José Saramago.


Conheci Saramago não propriamente por sua fama, conquistada apenas após os 60 anos de idade, mas de um livro que dei de presente a uma ex-companheira, há alguns poucos anos atrás, que, por sinal, não o leu. Pois é! Com o livro, que acabou ficando comigo após a separação, tive a minha disposição a leitura de Saramago pela frente, em um de seus livros mais célebres e mais polêmicos: O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Pra quem não conhece o livro acima ou nunca ouviu falar de Saramago (Claro! Não cobro atestado intelectual das boas e vivas almas que lêem este blog), pelo título da obra parece até que Saramago escreveu um livro de teologia ou catequese. Nada mais errado, e também nada mais certo. Na verdade, dos três livros que li de Saramago, além daquele que citei acima (vale lembrar Ensaio sobre a Cegueira e as Intermitências da Morte), ao menos nessas obras que conheci encontra-se presente sempre o transcendente, o sagrado, o sobrenatural, o espiritual; não como algo distinto, onipresente ou onisciente sobre os homens, mas como algo que faz parte deles.

Saramago sabia escrever sobre Deus mesmo sem acreditar Nele. Ao menos é o que ele dizia ser: um ateu convicto, além de comunista na juventude. Foi pelo materialismo histórico marxista que Saramago conheceu o mundo e a injustiça, como jornalista e libertário, e foi a partir de seu materialismo que ele passou a exercer sua crença no homem, sua fé secular em valores absolutos como a justiça, a solidariedade, a tolerância e a liberdade, como atributos propriamente humanos. Saramago soube ser fiel e coerente às crenças políticas e filosóficas em que acreditava, não temendo, inclusive, romper com líderes e movimentos que apoiara no passado, denunciando os excessos do totalitarismo de esquerda, ao renegar seu apoio aos irmãos Castro em Cuba, a denunciar ditaduras de extrema-direita no continente latino-americano, ou a desafiar, com seu talento e verve, o imperialismo norte-americano e o sistema capitalista, participando de eventos significativos como o Fórum Social Mundial.

Mas Saramago também era um profundo crítico de uma das instituições mais tradicionais e antigas da humanidade, muito presente na sociedade portuguesa e na cultura ibero-americana: a Igreja Católica. Foi justamente criticando o monolitismo, a influência e os cânones católicos que Saramago desenvolveu sua literatura, apontando para uma nova forma de espiritualidade que poderia ser contemplada sem a necessidade especial de uma divindade punitiva e todo-poderosa. É por isso que digo que Saramago, de seu jeito, era um escritor crente, pois ao questionar a religiosidade cristã que aparecia a ele por meio da pujança católica, ao mesmo tempo, desta forma, pôde este escritor português desenvolver seus próprios “messias internos”, através dos personagens e das obras que escreveu.

Vejamos, por exemplo, em Ensaio sobre a Cegueira. Neste livro, adaptado para o cinema pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles e tendo como principal protagonista a bela e talentosíssima atriz norte-americana Juliane Moore, Saramago se vale de um estilo e de um expediente típicos de sua escrita (além da célebre prolixidade, a que irei me referir nos próximos parágrafos), retratando personagens que não tem um nome e são o filho, a amante, o vendedor, a diarista, a prostituta, o executivo, por exemplo). No livro, acompanhamos a peregrinação da mulher do médico, que parece ser a única mulher que enxerga, em uma cidade acometida de uma bizarra e medonha epidemia de cegueira, que tolhe a visão de todos, menos da protagonista, que passa a ser uma espécie de guia de uma multidão de cegos, aprisionados não apenas pela cegueira dos olhos, mas pela cegueira de seus próprios corações e mentes. Através do mito da cegueira, Saramago nada mais faz do que recriar a passagem bíblica, vista nos Evangelhos em Mateus (20.29-34), Lucas (18:35-43) e Marcos (10:46-52), de quando Cristo cura um cego em Jericó. Assim como no personagem da Bíblia, o cego Bartimeu, que recupera a visão, pois, segundo Jesus, “sua fé o salvou”, a personagem da mulher do médico cego, no livro de Saramago, também busca a salvação por meio da fé, não porque acredita que, num passe de mágica, os enfermos recuperarão a visão, mas pela fé de que tem de prosseguir em sua missão de cuidá-los, já que é a única quem vê, e por isso, não pode perder a fé em salvá-los, mesmo que eles não consigam enxergar. Saramago une, neste belo livro e obra singular, o melhor da espiritualidade cristã, juntamente com a filosofia platônica vista no “mito da caverna”, narrado na República de Platão (acerca da libertação da cegueira da ignorância). Percebe-se o quanto os escritos de Saramago provocam uma tremenda e desconcertante reflexão intelectual, nem tanto pela beleza do texto, que, como disse, é bem complexo e arrastado, mas sim pela evocação da genialidade do tema, que faz toda a diferença, ao ler este autor português. Para mim, nesse sentido, Saramago foi o nosso “James Joyce na língua portuguesa”.

Saramago não explora propriamente em seus textos os dramas pessoais de seus personagens, apesar de eles estarem lá, pela fórmula secreta de um intimismo que ele conseguia imprimir em seus leitores, de forma quase mística. Seu detalhismo, na busca rebuscada da exposição de detalhes de certas cenas e ocasiões, mais do que os próprios personagens, numa linguagem por vezes, para muitos, cansativa, conseguia na verdade convidar o leitor a fazer uma verdadeira reflexão filosófico-espiritual em cada página. Algo que malfadados (mas famosíssimos) escritores por aí, que inauguraram uma celebridade e uma aura de sucesso misturando misticismo com autoajuda, ganhando reconhecimento internacional, nem sequer chegam perto (vocês devem saber de quem estou falando, não é?). Agora, é bem verdade, a leitura de Saramago nunca foi simples e própria para principiantes. E, também confesso, ler Saramago num primeiro momento me pareceu muito chato. Pois é! Não foi experiência fácil. Mas, também, não deixou de ser deliciosa a reflexão que pude ler a cada texto que lia deste singular escritor lusitano.

Por falar em escritor, creio que, para mim, Saramago era muito mais um filósofo que gostava de escrever, do que propriamente um romancista. Ele era uma espécie de metafísico que se valia do roteiro da exposição novelística para expressar suas reflexões existenciais. Foi assim em As Intermitências da Morte, um de seus últimos livros (e o último que li); onde, curiosamente, Saramago tratava de algo que para ele, em sua velhice prolongada e pelo corpo de ancião que começava a padecer com o peso dos anos, anunciava-se por acontecer, e que ele necessitava expurgar através de um realismo fantástico de proporções líricas: a iminência da morte e a pergunta que não quer calar acerca do mistério que seria, se ninguém conseguisse mais morrer. É disso que trata esse livro, quando, num povoado (lusitano) imaginário, ocorre que num belo e certo dia as pessoas deixam de morrer, deixando a cidade em polvorosa. Mas o que poderia parecer um milagre e motivo para festejo pela benção conferida da imortalidade, passa a se revelar como maldição, no momento em que os moribundos, estes sim, os principais destinatários da morte, simplesmente não podem alcançar o descanso definitivo, pois não podem morrer. A eles, compete o estado eternamente desagradável da agonia e do sofrimento que não tem mais a morte para lhe encerrar. Não demora para que a morte novamente se torne importante para a população do vilarejo onde ela não mais aparece, passando alguns até a ter saudades dela, procurando saber enfim: afinal de contas, por que a morte entrou em greve?

Esses e outros temas estão presentes na obra de Saramago. Ele, afinal, afirmou em entrevista num documentário que assisti a poucos anos, que não tinha medo da morte, apenas lamentava ter que ser levado por ela um dia. Saramago citou a experiência de sua avó (o que me chegou a ver lágrimas caindo de meus olhos) que dizia a ele, na sua juventude, que lamentava não o fato de ter de morrer um dia, mas sim o fato de que ao morrer, ela não teria mais a oportunidade de acordar no dia seguinte e ver no mundo tantas coisas bonitas. Pois é, para Saramago, apesar dos pesares, a vida valia ser vivida porque não era feita só de coisas ruins, como se houvesse apenas um contra o outro, um homem lobo de si mesmo, mas sim porque o homem, assim como poderia criar destruição, também poderia contemplar e criar coisas belas. Em seu estoicismo ou neoplatonismo, Saramago afinal acreditava na vida sob uma doutrina da beleza, que servia para explicar o sentido, a estética da vida. Assim como pensavam os gregos, o sentido da vida encontrava-se no belo, pois o belo era o bom. E assim a manifestação mais bela da beleza da vida seria envelhecer, ao menos, envelhecer bem. Deve ser por essa beleza que Saramago carregava em cada ruga, com seus 87 anos de experiência, que ele conquistou Pilar Del Rio, jornalista espanhola, amada e devotada esposa do escritor português, cerca de 30 anos mais nova, que o acompanhou numa apaixonada relação, em seus últimos anos de vida. Ou será que os velhos também não podem amar?

Ao morrer, Saramago faleceu não como um ateu empedernido, daqueles que não querem nem ouvir falar em Deus ou que pensam em queimar igrejas, mas sim como um crente devotado à vida, ou a menos em alguém que tinha fé na beleza de mundo, que se ele não reconhecia como criado à imagem e semelhança de um Criador, ao menos não questionava a grandiosidade e a transcendência de uma natureza que em seus últimos anos de vida, ele aprendeu a contemplar da janela de sua casa, nas Ilhas Canárias, saudando quase que religiosamente o nascer de um sol que um dia, seus envelhecidos olhos não iriam mais ver, no fechar definitivo de suas pálpebras pelo sono eterno. Se, de fato, ao contrário do que pensava, a vida não se encerra com o fim, e o paraíso (ou outro mundo transcendente), sagrado e possível pode existir, creio que agora Saramago deve ter descoberto isso. Ao menos, no caso de Saramago, essa é uma última experiência que somente ele pode compartilhar agora e não mais com seus leitores. Como ele mesmo disse, agora ele não pode mais contemplar as coisas belas que tanto viu por tantos anos. É uma pena!Mas, quem sabe, não exista agora outra beleza a contemplar? A resposta está com aqueles que partem e não com os que ficam, pois a nós, resta apenas a beleza do ponto de partida, até chegar num belo no ponto de chegada. Enquanto isso, somente digo ao final: uma boa viagem, José Saramago!

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