Semana passada, andando pela cidade de Natal, vi uma cena curiosa: um carro zero quilômetro empacotado pra presente na frente de uma famosa churrascaria da cidade. Perguntei para o colega ao meu lado se ele sabia do que se tratava, e ele me disse que aquela churrascaria tinha uma promoção inusitada: quem comesse até 8 kg de carne no almoço ganharia o carro. Soube de um turista gaúcho, um senhor de acentuado corpanzil que se sentou no lugar para comer e soube da promoção. Como sabemos, gaúcho é um povo acostumado a comer muita carne, e o serelepe gaudério inventou de topar o desafio das carnes, chegando a ingerir 6 quilos e meio de carne, até ser levado ao hospital, direto para uma lavagem estomacal. No que tange à carne vermelha, o organismo humano leva horas para digerir tanto alimento, podendo variar de um período de 24 horas numa boa churrascada até 3 dias. Isso acontece porque o alimento leva de seis a oito horas para sair do estômago e ir para o intestino delgado. Imagine então um estômago entalado, tal qual areia colocada no cano de escapamento de um carro. O estrago é grande, você não acha?
Fico imaginando pessoas que ameaçam morrer de tanto comer só pra conseguir um veículo novo, ou que fazem qualquer tipo de esforço físico sobre-humano tão somente para conquistar um prato de comida ou ganhar alguns trocados. Fico pensando naquelas provas imbecis do programa Big Brother, em que nove idiotas se submetem a testes vexatórios, como ficar acordado em pé uma noite inteira dentro de uma caixa de vidro ou de permanecer horas segurando a chave na porta de um carro, só para levar como prêmio o veículo ou dez, vinte ou trinta mil reais antes de ser eliminado no paredão, com um indefectível Pedro Bial ao fundo da tela. A cena ainda faz me lembrar outra, de um clássico filme do diretor Sidney Polack, de 1969, chamado A Noite dos Desesperados, que retrata a Grande Depressão americana, em que casais de jovens trabalhadores desempregados passavam horas dançando até caírem exaustos em concursos de dança, para ganhar algum dinheiro do prêmio. Quanto vale a dignidade humana por um prato de comida? Quando vale o orgulho, a autoestima, a autopreservação, a valorização da vida, quando se é permitido fazer tudo para conquistar um prêmio:um carro, uma casa, um cheque polpudo ou uma loteria? Quando é que separamos o verdadeiramente humano do inumano?
A lógica liberal-capitalista é a do laissez faire, ou seja, para o homem livre tudo é possível na busca do êxito pessoal, até mesmo machucar a si próprio. A lógica da automutiliação de alguns perfomers de piercing é de se pendurar com ganchos pelos mamilos, como fez o ator Vincent Harris, no filme Um homem chamado cavalo, simulando um ritual indígena.Às vezes penso que a lógica sadomasô explicitada na obra de terror Hellraiser, do cineasta britânico Clive Barker, aplica-se a alguns competidores dos bizarros torneios televisos, com Lucianos Huck, Bials ou Faustões no lugar de Pinhead e seus cenobitas. É necessário realmente sentir (muita) dor para se obter o prazer da satisfação pessoal de ganhar o prêmio? Pergunte isso para o glutão cliente da churrascaria que vomitou muitos dos quilos de carne que ingeriu, antes de descobrir que até seu estômago volumoso tem limites, e que mesmo os obesos hábeis na arte de comer não conseguem ganhar sempre, mesmo que isso signifique a perda de um carro.
Não sou contra os jogos, e, ao contrário, até os aprecio pois servem para muitas das reflexões filosóficas. Os poetas lidam com jogos afetivos ao tratar da paixão, da sedução, dos afetos, das emoções, assim como os filósofos da linguagem, como Wittgenstein, analisavam o jogo das palavras. O problema não está no jogo, na competição em si, mas sim no que se busca ao final de cada jogo. Se o velho lema que eu escutava da professora primária no colégio não serve mais, pois o importante é mesmo ganhar e não competir, lamento por outro lado que o sabor passional da competição e substituído pelo vício, pela ilusão tétrica da vitória a qualquer custo, mesmo que pagando o preço da própria vida. Sobre isso, recordo de outro filme, esse uma película espanhola, chamado Intacto, de 2001, do diretor Juan Carlos Fresnadillo; em que Tomás, (personagem do ator argentino Leonardo Sbaraglia), é um sujeito de extrema sorte, que ao conseguir ser o único sobrevivente de um desastre de avião, é chamado a participar de vários jogos e desafios no sentido de obter o prêmio máximo e derrotar o sagaz e experiente Samuel (Max Von Sidow, impecável), um velho judeu sobrevivente de um campo de concentração que é considerado "o senhor da sorte" e que costuma sair vitorioso em todos os jogos.
E porque não lembrar também do sanguinolento Jogos Mortais, que já virou uma repetitiva franquia com seis filmes, em que entre tripas, corpos despedaçados e sangue aos borbotões, podemos identificar com clareza o empobrecimento do espírito humano quando, ao invés de trabalhar o jogo como uma lógica natural das relações humanas, transforma a competição num combate infernal pela sobrevivência, cujas armadilhas inexoráveis não dão qualquer alternativa a não ser continuar jogando, para jogar e jogar cada vez mais.
Talvez na literatura eu ainda encontre Dostoievski, e sua formidável obra O jogador, onde seu personagem, Alexis Ivanochi, perde sua própria humanidade na jogatina, na busca de seu eterno amor por Paulina Alexandrovna. Em todos esses personagens, do comedor de churrascos do restaurante a Ivanovichi de Dostoievski, todos nós nos deparamos com dramas humanos, tão demasiadamente humanos, e vemos que o espectro de nossa fraqueza está revelada não no começar a jogar, mas no desaprender de jogar. Desaprendemos do jogo no momento em que nós deixamos tomar por ele e nos tormanos o próprio dado lançado na roleta, e não as mãos e dedos lançadores. Ser bom jogador depende de uma psicologia do sujeito, de um controle concreto de seu livre-arbítrio,e da disposição de jogar apenas se realmente o jogo valer realmente a pena. Eu digo isso porque continuo me perguntando pensando a cena inicial da churrascaria: pra que realmente jogar ameaçando ter um infarto por comer tanta carne, se o que me vale mais é o prazer de comer, e não o prazer de ter um carro ao me matar de comer? Talvez essa pergunta possa ser respondida pelo comilão que acabou no hospital, ou ele não tenha mais condições físicas de responder. E você? Encararia 8 kg de carne pra ter um carro novo? Se a resposta for afirmativa, só posso te dizer uma coisa: bom apetite!!!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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