Recordo que uma vez meu pai me deu de presente um forte apache. Ótimo! Eu era fã de filmes de faroeste que assistia junto com o velho, e lia as estórias em quadrinhos do Zorro, do Cavaleiro Solitário, do Tex e Ken Parker. O negócio é que, já fanático por leitura, podem acreditar (minha mãe pode confirmar), com 8 anos de idade li um livro inteiro, cheio de gravuras sobre a Guerra da Secessão Americana, pra organizar os bonequinhos do meu forte entre yankees e confederados. Eu pintava os uniformes dos bonecos de acordo com as gravuras dos soldados inimigos que eu via no livro; ou seja, desde essa época, os referenciais teóricos serviam pra minha diversão!
Pois é! Gênio não sou, mas desde pequeno fiquei com pecha de intelectual por conta dessas bizarrices. Continuo usando de artifícios teóricos, valendo-me de diversos pensadores, artistas e intelectuais para expressar meus pensamentos e sentimentos. Talvez, para muitos terapeutas, seja um mecanismo de defesa. Para mim não deixa de ser diversão, pois me divirto escrevendo, divirto-me em criar, em refletir, elucubrar. Pensar é minha diversão!
Não deixo de empregar os filósofos, poetas e literatos para explicar minhas agruras internas, minhas relações com o mundo, meus amores e desilusões. Recentemente, um tema que me veio à mente e tocou meu coração foi a relação com a família. Pois é, apesar de ser um “cabra” solitário, tenho família. Quer dizer, tenho parentes, já que na fase adulta, segundo as convenções sociais, família pra um homem da minha idade seria mulher, filhos e sobrinhos. Não tenho nenhum deles. De minha linhagem familiar, parece que, ao menos por enquanto, a geração parou por aqui.
Tenho ainda um pai vivo (apesar de já idoso e meio doente), uma mãe cronicamente preocupada e duas irmãs, que já não vejo há um bom tempo. Tirando minha mãe que não larga do meu pé e vem me visitar pelo menos uma vez ao ano, mesmo que eu esteja em Marte, para o restante da parentela, estou devendo uma visita. Amo a todos e tenho uma boa relação com eles, não só por que eles são sangue do meu sangue, mas porque cada um de sua forma fez ou faz parte de meu trajeto de vida. Entretanto, sou um cara meio esquisito, até antissocial para alguns, pois hoje não faço a menor questão de ficar perto deles. Por favor! Não me tachem de cruel ou insensível pela franqueza!
Na verdade ficar longe de meus familiares tem haver com abafar a tristeza. Ué, como é isso? Explico. Saudade para mim é um sentimento extremamente válido, valioso e que tem características altamente positivas, porque nós só temos saudade de quem nos importa. O problema não é saudade de quem está longe, mas sim a tristeza. Sim, porque se relacionar com quem amamos (em especial nossos pais) pode nos causar, sim, muita tristeza.
Quem vai explicar isso de forma notável é Baruch Spinoza (1632-1677), filósofo holandês do século XVII, que junto com Descartes e Leibniz fundou um movimento teórico chamado de racionalismo. Muitos pensam que Spinoza foi apenas um teórico do Estado e da Política, tendo em vista que sua obra foi popularizada no Brasil, em parte pelos comentários de Marilena Chauí. Mas quando se vê os comentários de Delleuze à obra deste autor, vê-se que a filosofia spinozista é bem mais profunda, e pode ser empregada, inclusive, para entender o jogo intricado das relações humanas.
Spinoza morreu jovem, com apenas quarenta e quatro anos de idade, vítima da tuberculose, e sua família, assim como ele, eram religiosos. De origem judaica, ele mudou seu nome hebraico de Baruch, para Benedictus, assim que sua família foi perseguida pela Inquisição Espanhola. Não chegou propriamente a exercer a fé cristã, mas seus escritos sobre Deus e a Natureza são marcados por uma forte religiosidade, que revelam a inspiração familiar. Tanto é que para explicar diversos elementos complexos, como a natureza do homem, o Estado e a sociedade, Spinoza valia-se de alegorias religiosas. Seu pensamento, no entanto, transcende a religiosidade, mas através dela podemos ver que ele escrevia sobre diversos sentimentos e inquietações humanas: como a solidão, a tristeza, a paixão e o amor familiar.
Posso empregar Spinoza, por exemplo, para explicar a família, o vínculo familiar cujo substrato se encontra no afeto. Se Spinoza estudava o poder, veremos que dentro do ambiente familiar (núcleo social primário), o poder será o primeiro que irá se manifestar através do respeito filial à figura paterna e materna. No interior da família acendem-se as paixões. É em seu Tratado Teológico Político que Spinoza irá definir que o afeto transita entre dois pólos: alegria e tristeza (a essência da paixão). A tristeza é a paixão que diminui a potência de agir, reduz o indivíduo, torna-o impotente, faz que com ele se torne submisso, subjugado, renda-se à submissão. Já a alegria é a paixão que caminha em sentido contrário, em direção à liberdade, à independência, ao fim do jugo de dominação da tristeza, o aumento da potência de agir.
Segundo Deleuze, a partir dessa reflexão sobre o afeto, Spinoza irá explicar porque é que aqueles que exercem o poder nos deixam tão tristes. O detentor do poder familiar (um pai ou uma mãe) depende da tristeza para poder subjugar, para poder obter o respeito e a submissão dos filhos. Entendam que a tristeza aqui não é tão somente um sentimento ruim, nem nossos pais ou nossas mães tem a vontade deliberada de nos fazer mal (longe disso), mas, ao contrário, não tenho dúvida que nos amam e nos querem bem; porém, para entender a tristeza no sentido spinozista é importante ressaltar a dimensão dela enquanto uma “redução da potência de agir”.
Pois é! Nossos pais e nossas mães podem nos causar tristeza tão e simplesmente para nos subjugar, reduzindo nossa independência, querendo que com isso estejamos cada vez mais subjugados, cada vez mais vinculados a eles numa relação de poder afetivo, para que reconheçamos nossa eterna condição de filhos, de destinatários desse poder parental. É por isso que fico triste ao estar próximo de meus pais, e, ao contrário, nutro e desenvolvo alegria quando estou longe, porque a alegria, no sentido que Spinoza quer dar ao termo, significa “potência de agir”, autonomia, independência, poder sobre si próprio, liberdade da subjugação familiar. É por isso que nos afastamos de nossos pais. É por isso que queremos ter vida própria. É por isso que saímos de casa. Queremos ser alegres!!
Como pássaros que na vida adulta, deixam de ser filhotes e alçam voo, também queremos desfrutar da alegria da liberdade, queremos pagar o preço por obter essa alegria, mesmo que ela traga uma nova tristeza (causada pelo poder do Estado, pelo poder do outro sobre nós, pelo poder da natureza que mostra nossas limitações). Spinoza defende a alegria, porque nela encontramos a inteligência, porque a tristeza, ao contrário, reduz à inteligência. Quando mais os súditos são tristes, menos inteligentes eles são, e mais suscetíveis de dominação. O Estado autoritário produz tristeza, pois a tristeza leva à ignorância. Ou nos conformamos em ser autômatos tristes, ou ganhamos independência como alegres desbravadores.
É por isso que, como intelectual, não compactuo com a tristeza, não quero ceder a ela, para não perder somente minha identidade, mas também meu cérebro. No momento em que não cedo ao poder familiar, afasto-me de meus parentes; mas, ao contrário, na medida em que um deles adoece, morre ou me chantageia com a necessidade da minha proximidade, aí a tristeza vem, e abalam-me os pensamentos. Prefiro ser um ser alegre, daqueles que vê alegria na penúria da solidão, do que me ver triste ao ser subjugado, num esquema de afeto que não me traz ganhos, mas só dominação. Amo meus pais mais ainda porque eles não me dominam, porque tenho alegria para compartilhar meu amor com eles, e não a tristeza de tê-los perto, apenas para ser dominado novamente pelo poder familiar. Segundo Spinoza: “a única coisa que conta são as maneiras de viver”.
Está na hora de eu fazer o convite a outros que se sintam dominados de ler Spinoza se quiserem, ou mesmo não lendo, serem spinozistas, ao darem seus voos próprios. Boa sorte!