domingo, 21 de fevereiro de 2010

LITERATURA: As angústias de Hemingway

"A felicidade em pessoas inteligentes é uma das coisas mais raras que conheço". Essa é só uma das máximas de um singular escritor norte-americano, que viveu intensamente a primeira metade do século XX. Ernest Hemingway (1899-1961) foi um dos primeiros escritores que tive a oportunidade de ler ainda adolescente. Recordo que meu pai era sócio do Clube do Livro e todo mês recebia pelo correio coleções da literatura universal, e uma das que chamou a atenção foi O Sol também se Levanta. Aquela figura do toureiro na capa do livro me impressionou e não me saiu mais da cabeça. Depois vieram outros livros, Paris é uma Festa, Por quem os Sinos Dobram e, na minha opinião a mais antológica obra desse escritor: O Velho e o Mar.


Sou filho de marinheiro, e, portanto, natural que o périplo do personagem do livro, o pescador Santiago, tenha me emocionado tanto. Ficava imaginando o protagonista lá, à deriva, só ele e seu pequeno barco, no imenso oceano, tendo conseguido pescar um gigantesco peixe impossível de ser pescado. Suas dificuldades de retorno à terra, os perigos, os obstáculos, os tubarões pelo meio do caminho, as tempestades. A meu ver, O Velho e o Mar é uma alegoria de nossas angústias modernas, perdidos que estamos nós no nosso oceano de preocupações, em meio a tantos obstáculos ao tentar "pescar o peixe", sendo obrigados a passar por tormentas e tempestades até chegar à calmaria e buscar a terra firme, não sem antes ter de enfrentar os tubarões.

Talvez como Hemingway eu tenha tido os meus dias lupanares, que ele retrata autobiograficamente em Paris é uma Festa. No meu caso, minha Paris é o Rio de Janeiro, uma cidade esplendorosa, assim como foi a Paris dos anos 30 vivenciada por Hemingway. Porém, não presenciei guerras, como esse escritor presenciou ao relatar a Guerra Civil Espanhola, em Por quem os Sinos Dobram, ou a II Guerra Mundial, onde ele serviu como correspondente, resultando em Adeus às Armas; mas compartilho com ele da aversão à monotonia, de uma certa ojeriza pela mesmice, pela vontade de conhecer outros povos, culturas, ambientes diversos. Hemingway tinha uma alma poética desbravadora, e, confesso, sem medo de parecer arrogante, creio que tenho a mesma physique du rôle.

O problema todo é que esse medo do imobilismo acabou custando a própria vida desse escritor tão magnético. Hemingway tinha sofrido com o suicídio do pai, no período da Grande Depressão Americana, por problema de dívidas, e somando-se a isso uma mãe dominadora e problemas de saúde que o acometeram na velhice (inclusive a perda de memória por demência precoce, uma sentença de morte para um escritor), Hemingway não conseguiu se safar de seus fantasmas internos, e quando percebeu que já se encontrava imprestável, decidiu se matar explodindo a cabeça com um tiro de seu próprio rifle de caça.

Não tenho medo da morte, tenho sim medo do que posso fazer com a minha vida. Todos os atos praticados por Hemingway em vida foram consequências de suas escolhas, e graças a elas a humanidade pôde ter em mãos algumas das mais sublimes obras da literatura. Hemingway é conhecido como o "escritor da solidão e da morte", pois seus personagens, via de regra, são todos solitários e carregam consigo o fantasma da morte solitária a lhe acolher todo momento. Seus tipos humanos geralmente são complexos, como o personagem Jake, de O Sol também se Levanta, um repórter (mesma profissão do escritor durante anos) em Paris que, ao viajar para a Espanha para elaborar uma reportagem sobre as touradas, acaba se apaixonando pela fútil e vazia Lady Ashley, amante de um toureiro. O problema é que Jake sofreu um acidente durante a I Guerra que o mutilou, impossibilitando-o de manter relações sexuais. Mais do que a impotência física, Hemingway enfatiza a impotência da alma, apresentando o seu personagem pela metáfora do touro ferido na arena. Jake e seus amigos beberrões vão para a Espanha ver as touradas e lá, mais do que, para muitos, seja uma diversão popular sádica de se ver um animal ser perfurado até a morte, vemos o quanto a imagem do touro simboliza pessoas como o próprio Hemingway: um ser forte, vigoroso, furioso, intenso, porém ferido, mutilado por suas angústias internas, e assim como o personagem Jake, impossibilitado de fazer sua própria fiesta, tornando-se apenas aquele touro ferido, cansado, esgotado, incapaz de fugir a seu destino, prestes a ser abatido pelo toureiro.

O Sol também se Levanta trata de pessoas maduras, livres e abastadas que pagam o preço da liberdade ao se envolver num hedonismo que acaba por deixar profundas marcas. Trata de uma geração e de um conjunto de pessoas que, como pelo próprio título do livro, vê após cada noite boêmia, por fim o sol se levantar, e como na música do Barão Vermelho, na voz de Cazuza, ficam se perguntando o que fazer “pro dia nascer feliz”. O preço da liberdade é o preço da solidão, algo que acomete em muito a todos os solteirões de hoje em dia que, como eu, já passaram da casa dos trinta e se aproximam da dos quarenta. O touro é livre para manifestar toda sua fúria ao ser solto na arena, mas acaba por descobrir que as estocadas do toureiro chamado destino um dia acabarão por esgotá-lo. Hemingway demonstra que somos produto de nossas escolhas, mesmo que elas resultem na produção de novas feridas, que um dia, podem nos levar.
Hemingway tornou-se Nobel da Literatura em 1954 não porque sua vida de angústias dentre tantas viagens resultasse numa obra que difundisse tristeza. Muito pelo contrário, o encanto de seus livros se deve pela profunda sabedoria que ele consegue extrair na solidão de seus personagens, como do exausto pescador Santiago, retratado em O velho e o mar. “A sabedoria dos velhos é um grande engano. Eles não se tornam mais sábios, mas sim mais prudentes”. Arrisco-me a dizer que existem duas fases na obra de Hemingway: a primeira associada à juventude, onde seus livros tratam de uma geração de trintões e quarentões, no período entre-guerras, a chamada “geração perdida”; e outra fase reflete seu período de envelhecimento e amadurecimento, pontuado pelas crises psicológicas, cada vez mais agudas. Hemingway acabou encontrando na paisagem tropical de Cuba seu último lar como escritor. Como um eremita moderno, ele acabou tendo a morte solitária que acompanhava tanto os personagens que escreveu. Não se pode dizer que tenha sido um homem que não tenha amado, mas sim de como ele amou, e de como isso resultou também numa gama de escolhas, que tanto podemos criticar de forma negativa, quanto positiva.

Sim, Hemingway teve várias mulheres. Dizia ele: “se duas pessoas se amam uma a outra, não pode haver final feliz”. Dos vários casamentos (ao menos quatro) e várias amantes, somente uma ficou com ele até seus últimos anos de vida, Mary Welsh, também jornalista de profissão, como Hemingway. Essa instabilidade amorosa pode também ser identificada na obra desse escritor, não porque ele nunca tivesse aprendido a amar, mas acredito, compartilhando com ele de algumas sensações transmitidas em seu texto, que Hemingway na verdade era um tipo narcísico. Ele via em cada mulher por quem se apaixonava um pouco dele próprio, e quando isso passava e ele era obrigado a identificar o outro por detrás da máscara de si próprio, acabava por desistir daquela pessoa. Ora, mas fico me perguntando, todo escritor é um pouco narcísico, portanto, será que os intelectuais ou escritores nunca aprenderão a amar? Essa pergunta enigmática não consigo responder, apenas escrevo.

De qualquer forma, vai aqui minha homenagem a um dos vários escritores que li e me marcou tanto, em diversos momentos de vida, e que, vira-e-mexe, voltam a me inspirar, como anjos caídos resgatados no limbo de minhas lembranças. Onde quer que você esteja: um abraço, Ernest!

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