terça-feira, 6 de abril de 2010

CATACLISMOS: Chuvas no Rio de Janeiro -Quando a solidariedade vale mais do que muita verba pública!

Toda vez que desço de avião para mais uma chegada ao Rio de Janeiro, recordo do clássico "Samba do Avião", de Tom Jobim, eternizado na voz de tantos intérpretes: "Minha alma canta. Vejo o Rio de Janeiro. Estou morrendo de saudades... Rio de sol, de céu, de mar. Dentro de um minuto estaremos no Galeão.  Este samba é só porque, Rio eu gosto de você. A morena vai sambar. Seu corpo todo balançar. Aperte o cinto, vamos chegar. Água brilhando, olha a pista chegando. E vamos nós. Aterrar...."

Infelizmente, esta minha última descida não foi das mais felizes, pois tive que ver uma das cidades que tanto amo amanhecer debaixo d'água, face às fortes chuvas intensas que acometeram o solo carioca. Não que acidentes naturais não sejam previsíveis. Afinal, vemos enchentes e desabamentos no Brasil quase que o tempo inteiro, sobretudo nessa época do ano. Os terremotos ocorridos no Haiti e no Chile, por exemplo, por vezes fazem com que nossas infelicidades climáticas sejam "fichinha" diante do drama humano de ver tanta gente morta, ferida ou desabrigada em virtude de abalos sísmicos, tsunamis,furacões etc. Entretanto, o que me chamou atenção foi a extensão do dano e as profundas consequências que repercutiram na metrópole carioca,em função de um pouco mais de 16 horas ininterruptas de chuva.

Daqui há um ano e quatro meses completo 40 anos, e nos meus atuais 38 anos de vida, em todas as vezes em que fui ao Rio, já presenciei tudo de ruim no tocante à informações negativas acerca da vida na "cidade maravilhosa", tais como: violência urbana, enormes congestionamentos, descalabros administrativos, enchentes, desabamentos, poluição na Baia de Guanabara. Reservo ao Rio um capítulo especial de minha biografia, revelado aqui em diversos escritos anteriores deste blog, seja por ter passado minha infância por lá, ter vínculos sócioafetivos mais do que consolidados há muitos anos na terra fluminense, por se abrir agora a possibilidade de um novo emprego por lá, por ter uma irmã carioca e por eu mesmo ter quase nascido carioca. Sou nordestino de sangue e origem, com muito orgulho, mas assumidamente carioca de coração! 

Entretanto, impressiona-me a olhos vistos ter presenciado em tão pouco tempo tamanha desordem, caos e transtorno coletivo causado pela última saraivada de chuvas que se abateu sobre a cidade. Ao chegar hoje pela manhã ao Rio de Janeiro, fui obrigado a engolir em seco a alegria que me dá ao chegar sempre nessa terra, ao som de "Samba do Avião", quando me arrependi amargamente, pela primeira vez, de aterrisar no Galeão, e perceber que fiquei num iminente cárcere privado, ao me encontrar junto com outros tantos passageiros, totalmente ilhado, sem dispor de meio de transporte algum, em função da cidade ter parado, o trânsito ter se paralisado por conta de todas as suas vias principais estarem alagadas. Contabilizei quatro horas de espera para conseguir chegar no meu destino, debaixo de muita chuva. Imagina isso numa cidade com pouco mais de 6 milhões de habitantes!!

Fico imaginando uma chuva dessas em tempos de Copa do Mundo, ou pior, nas tão celebradas Olimpíadas, após a indicação do Rio como cidade-sede do evento vindouro. Até o presente momento contabilizam-se quase cem pessoas mortas nos desabamentos decorrentes da chuva apocalíptica que castigou a cidade. Em sua imensa maioria moradores pobres, de periferia, vivendo em ocupações irregulares, de alto risco. O Rio de Janeiro é uma cidade montanhosa, cheia de picos e encostas, e qualquer um que se aventure a construir sua casa próximo a um desses acidentes naturais, corre o risco de um belo dia ver sua habitação destruída, seus objetos destroçados e tudo o que possui tomado por lama, pedra, areia e barro, numa fração de segundos; da mesma forma como aconteceu a tragédia que vitimou as comunidades em Angra dos Reis, no começo do ano.

Também imagino a coincidência macabra ou cabalística de, nesse mesmo ano, já ter vindo ao Rio duas vezes (a primeira no reveillon, sem contar o Carnaval), e ter presenciado tragédia semelhante; seja no começo do ano em Angra dos Reis, ou agora na capital. Se São Paulo denuncia o impacto do desemprego pela quantidade de vilas, cortiços e favelas, e por uma exclusão social gritante em sua periferia, com as enchentes havidas no começo do ano e os ocasionais incêndios que destroem casebres populares na zona sul e leste paulista, o Rio revela a dimensão de sua tragédia social com o dilema da falta de habitação, quando milhares de pessoas que não tem pra onde ir, fixam sua residência em terrenos movediços, totalmente inapropriados para condições de vida e sujeitos a desabamentos e inundações. O que choca no Rio é que não somente a água invade as casas, destruindo patrimônios, mas também a terra desaba em avalanche, matando por soterramento em frações de segundos famílias inteiras. Volta-se a velha cantilena da ausência de políticas públicas, e quem paga o pato, como sempre, é a população mais desvalida.

Apesar da falta de condições dignas de moradia já ser crônica cotidiana do drama social brasileiro em nossa Terra Brasilis, o nível de solidariedade e comoção social que os desabamentos provocaram face às chuvas, serve para desbancar muita teoria criminológica, como aquela apontada pela Escola de Chicago, no século XX, de que áreas de pobres não tem organização. Segundo essa teoria, o morador da periferia seria tão desenraizado que sequer manteria vínculos de socialibilidade com seu vizinho mais próximo na comunidade, vivendo quase que num estado de natureza selvagem, que lembra muito a necessidade de um Leviatã, no mito do "homem lobo do próprio homem" hobbesiano; mas essa tese se revela furada e cai por terra quando o ser humano consegue surpreender pela sua enorme capacidade de redescoberta, e quando vemos pela TV centenas de moradores do subúrbio acotovelando-se junto a bombeiros, para retirar pessoas feridas dos escombros. A reação dos populares diante da tragédia foi tão impressionante, que me arrisco a dizer que até os traficantes pararam de trocar tiros por um instante, e devem ter se unido à comunidade, para tirar alguém de um lar soterrado.

Essa é uma das coisas que me comove no espírito humano. Isso é o que me faz pensar que existe algo mais nas políticas públicas do que simplesmente pensar intervenções sob a lógica do Estado. É claro que o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes vão gastar a goela até a última saliva para responsabilizar a natureza, o castigo divino ou o mau-humor de São Pedro, pra explicar tanta chuva, mas a questão de fundo que atormenta o Rio passa por estabelecer um projeto de cidade que lide com seus grandes cataclismos. Esse projeto passa mesmo pelo planejamento e pelo devido valor dado a estudos técnico-meteorológicos, ao cumprimento rigoroso da legislação no que tange à permissão e fiscalização de construções, seja pelo Plano-Diretor ou pelo Código de Obras e Posturas; como também o respeito à própria normatividade social, a partir da ação coordenada da própria comunidade, que assim como se mobilizou para remover os escombros de casas soterradas pela chuva e socorrer vítimas, também pode ser chamada para opinar e deliberar sobre projetos de construções futuras, novos povoamentos, numa política de adensamento populacional que leve em conta a participação popular. E isso, meus caros leitores do blog, não é balela, não!!

Gunther Teubner, famoso sociólogo alemão, discípulo de algumas das teses do pensador da teoria sistêmica Niklas Luhmann, defende a ideia de que o pluralismo das reivindicações sociais pode ser aproveitado juridicamente pela ordem legal, sem que políticas, tais como o planejamento habitacional, sejam vistas apenas como mera ação de Estado. Pra que esperar o Estado com suas políticas tardias, cheias de "não-me-toques" do formalismo burocrático da administração pública, com suas dispensas  ou não de licitações, se a própria comunidade pode tomar a iniciativa de regularização de suas posses, mediante uma efetiva mobilização social, reivindicando não apenas o reconhecimento da legalidade da posse de terrenos, mas também sua devida avaliação ambiental, com resultados que previnam as tão frequentes ocupações irregulares, que como um enxame espalham-se pela paisagem do Rio de Janeiro, devido ao fato de que a população de baixa-renda é literalmente empurrada para as encostas dos morros, por pressão do capital especulativo imobiliário?

Entendo piamente (e, inclusive defendo na minha tese de doutorado) que as comunidades tem sua dinãmica própria, sua própria política e normas de convivência que devem ser mais respeitadas, do que necessariamente assimiladas pela ordem estatal. Se a prefeitura e o governo querem ajudar às associações de moradores, porque não deixam que essas associações funcionem como verdadeiras ONGS, reconhecendo que elas possam dispor, ou mesmo disponibilizar mediante convênio técnicos que não apenas estudem os efeitos climáticos e sua relação com o traçado urbanístico, mas também esclareçam a população de que habitação possível não é apenas a mais barata, mas também a mais segura, e que diante dos sucessivos eventos climáticos decorrentes do aquecimento global, deve-se promover não só a proteção de áreas ambientais, como morros e encostas, proibindo-se a ocupação irregular, mas também deve-se proteger à comunidade, mediante iniciativas que promovam seu real assentamento e condições minimamente dignas de moradia. Para se evitar que o popular invada o morro, tem que se garantir um canto seguro para ele. O povo só quer um local tranquilo e sossegado pra morar. Será que é pedir muito?

Ao menos, ponto pro governo carioca em um único sentido: prevaleceu o bom senso tardio dos administradores em dissuadir os moradores das áreas de risco de não ficar em suas casas no momento do temporal, alertando-os do perigo que é hoje viver num grande centro urbano como o Rio de Janeiro, onde não só a violência do crime organizado, com suas balas perdidas, atinge a população mais pobre, mas também os desastres naturais, podem tomar a vida de alguém numa fração de segundos, bastando cair uma chuva mais pesada na cidade. Resta saber se a iniciativa será a mesma nos dias de sol, quando não tiver mais essa copiosa chuva, quando o Rio de Janeiro comumente volta a ser o cartão-postal da música de Jobim, mas não é tão somente aquela terra de paisagens belíssimas, chope, carnaval e mulher bonita, mas tamém lugar onde gente pobre e trabalhadora quer e deve viver, tendo um lugar decente pra morar. Continuo amando o meu castigado Rio, seja sob o sol lúdico da praia ou mediante a chuva tormentosa, mas quero ver se algum dia minha alma vai cantar algo mais do que a dor triste de mães que perderam seus filhos, num dia triste de enxurrada. Levanta Rioooo!!!!

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