Recordo do meu primeiro beijo em uma garota. Tinha seis anos de idade (é, apesar de velho, minha memória ainda não anda tão falha), vivendo no Rio de Janeiro, e me recordo de brincar com uma coleguinha (aí já é demais, não recordo o nome), filha de um colega de trabalho do meu pai, entre as mesas de um salão de festas, brincando de esconde-esconde. Lembro que debaixo de uma daquelas mesas ela me pediu pra fazer silêncio, e que não contasse pra ninguém o que ia fazer.Quando consenti, ela me tascou um beijo na boca e fugiu, e quase não saí debaixo daquela mesa, enquanto minha mãe me procurava desesperada pelo salão. Parecia que tinha sido atingido por um raio, tamanho o impacto daquele rito de passagem do começo de minha história de vida. Alguém, fora a minha mãe e minha avó, havia me beijado.Foi aí que realmente vivi pela primeira vez a experiência inesquecível de ser tocado pelo outro, de sentir uma proximidade do toque que ia muito além de um abraço, superior a um aperto de mão. Naturalmente soou estranho num primeiro momento, mas se tornou um saboroso mistério entender essa dinâmica do beijo, e assim permanece com sua riqueza e pluralidade insondável de significados, pois, afinal; não se trata apenas de um beijo. Sim, pode ser apenas um beijo, mas ao mesmo tempo, não é. Um beijo pode significar nada ou pode ser tudo!
Voltei a ser um beijoqueiro já na fase adulta, e aprendi que a manifestação de carinho através de um beijo pode quebrar muitas barreiras travadas na adolescência, quando no conflito de gerações nos distanciamos de nossos pais. Quando pequeno, era comum pra aquela criança amada beijar e ser beijada pelos pais, e à medida que fui crescendo, no meu afã da puberdade de conquistar minha própria identidade, afastei-me de meus velhos, tornei-me mais distante, até um tanto indiferente, um jovem militante do movimento estudantil, metido a revolucionário, que não se incomodava com essas "pieguices pequeno-burguesas". Beijar pai e mãe??!!Ora, que coisa mais judaico-cristã: "religião é o ópio do povo", minha gente! Assim pensava eu na minha fase marxista-leninista. Eis que após concluir a faculdade (pois é, demorou) vi que um simples beijo dado no rosto do meu pai ou da minha mãe servia para abolir toda uma década de revoltas, discussões e desentendimentos familiares. A partir do primeiro beijo dado em minha mãe após anos de distanciamento, podia fazer aquela frágil criatura encolher-se toda como que atingida pelo mesmo raio que me acometeu aos seis anos de idade. Pelo beijo, minha mãe passou a entender que realmente era amada, que o beijo não era apenas um convenção social entre familiares, mas um gesto sincero de quem realmente sente a falta e quer bem.Passei a reiterar meus beijos em meus familiares, não por convenção, mas por entender que pelo beijo podemos sepultar refregas antigas, quando manifestamos para quem amamos o quanto nós os amamos, dando-lhes um simples, mas sincero beijo. Mesmo o beijo como mera convenção social teve sua relevância histórica. Na Idade Média, por exemplo, guerras e conflitos sangrentos entre senhores feudais eram resolvidos mediante uma cerimônia em que o beijo entre os contendores era o ápice do final do combate e a consolidação da paz. O beijo, provou-se historicamente, serviu para terminar guerras.
Na universidade, houve uma época em que, como todo jovem pós-adolescente, vivi a fase antológica da cultura machista do indivíduo "pegador" (hoje acho risível), quando na verdade não pegamos nada, o que fazemos apenas é beijar mais. Eu e um amigo estabelecíamos a divertida e pueril competição de quem beijava mais nas festas do campus. Definíamos quem seria o campeão dos beijos da noite anterior. Até estabelecemos um ranking, cujo récorde seria beijar no menor tempo possível todas as garotas da residência universitária. Como éramos bobos, como éramos puros! Ainda não havia o papo do sexo (na verdade, para moleques mal saídos da barra da saia da mãe, isto até nos assustava). Sexo se via nos prostíbulos, nas boates de strip-tease, nas revistinhas de sacanagem. Para moleques nerds cuja testosterona os elevou a líderes estudantis, o mais importante era beijar, porque sexo com beijo (daí vem meu testemunho), para muitos de minha época, era sinônimo de casamento. Éramos tolos em achar que nós éramos os beijoqueiros; pois, na verdade, não éramos nós que beijavam as garotas, eram elas que nos escolhiam para serem beijadas.O beijo é um trâmite democrático entre dois corações que se abrem pro carinho. No linguajar filosófico habermasiano, o beijo é uma circunstância resultante de "condições ideais do discurso" amoroso.
O beijo é um acordo tácito de vontade, um gesto de suprema liberdade individual, onde se é livre para beijar e se deixar ser beijado.O beijo de pai e mãe é o que nos acompanha em nossa memória afetiva; o beijo dos amantes, nosso ideal platônico. Um beijo de despedida lembra cena antológica de filme, enquanto que um beijo de adeus pode ser dado no fim de um relacionamento ou durante um funeral, pois tem o mesmo efeito devastador da saudade.O beijo do amigo é doce, porém não é intenso. O beijo de quem mais amamos pode ser amargo, quando sabemos que o outro não nos ama. O beijo pode ser apenas oportunista, quando queremos garantir uma entrada na promoção do cinema. O beijo pode ser de traição, como o beijo recebido por Cristo de Judas Iscariotes.O beijo pode enfeitar a festa de casamento, ou pode ser por toda a vida. O beijo sincero dispensa asseio, não se incomoda com o hálito, com as cáries ou com perfume. O beijo é uma sublime invenção humana!
Através do beijo podemos construir uma pirâmide de sentimentos que, na cultura dos amantes, simboliza uma virtude sublime, eternizada por tantos filósofos e poetas: o amor. Na verdade, sob a égide do chamado "amor cortês", nova forma de expressão das relações humanas com o Renascimento, o beijo significava a última fase de um ritual de afagos que levavam alguém ao altar. Sobre isso, interessante é a pesquisa histórica realizada por Mary Del Priore, no livro História do Amor no Brasil (Editora Contexto). No livro, ela inclusive descreve a história do beijo enquanto prática social, dizendo que na Idade Média, havia um rígido controle desse gesto, através do critério do "deleite carnal", uma vez que o beijo podia ser visto desde um gesto pueril de uma mãe para o filho até o "pecado grave porque tão indecente e perigoso". É! Antigamente, beijar podia não ser coisa fácil! Os romanos chegavam a distinguir em 3 (três) categorias de beijo: os oscula (beijos de amizade), os basia (beijos de amor) e os suavia (beijos de paixão). No entanto, arrisco-me a dizer que depois dos egípcios, com o advento da cultura greco-romana, o beijo só passou mesmo a ser identificado como suprema expressão de carinho entre amantes (legalmente permitido) na modernidade. Com um seguinte detalhe: até hoje em culturas fechadas, como aquelas sujeitas ao fundamentalistmo islâmico como no Irã, na Arábia Saudita ou no Paquistão, beijo em público entre namorados ainda pode dar cadeia. Coitados dos beijoqueiros!
A religiosidade não é contrária ao beijo apaixonado (suavia, se preferirem, que nome bonito!). Na Bíblia, no Cântico dos Cânticos, vemos uma explícita referência ao beijo dos amantes, na passagem do capítulo 1, versículo 2, nos versos que expressam o diálogo entre a amada e o amado, que diz: "Ah, se ele me beijasse, se sua boca me cobrisse de beijos..."Ou em outra passagem, descrita no capítulo 8, versículo 1: "Ah, quem dera você fosse meu irmão, amamentado nos seios de minha mãe. Então, se eu o encontrasse fora de casa, eu o beijaria, e ninguém me desprezaria". Os teólogos cristãos de diversas denominações religiosas são unânimes em afirmar que se trata de um poema de amor, com certeza, com real protagonismo da mulher (a amada), começando o canto com o desejo dela de receber o beijo do amado e termina com o convite para que seja consumado aquele amor. O beijo é visto como o selo de abertura da relação amorosa, o ponto de partida, o começo da consumação de um desejo e sentimentos altamente confessáveis. Se a religião entende desta forma o beijo, como poderia ele ser reprimido?
Na filosofia de Heidegger, entre sua distinção e conjunção entre ser e ente, imagino o ser beijável e o ente beijado. O ser se encontra no ente, mas o ente nunca revela totalmente a real dimensão do ser. Para não complicar a cabeça dos leitores, é só trabalhar a alegoria simples do beijo para identificar a seguinte questão: será que ao beijarmos ou sermos beijados (ente beijado) revelamos a infinita dimensão do "ser" de nossos sentimentos(ser beijável)? Digo isso ao questionar os típicos "relacionamentos de bolso" indicados na sociologia de Zygmunt Baumman em seu ótimo livro: Amor Líquido.Nos capítulos iniciais Baumman emprega esse termo para analisar a chamada cultura das "ficações", típica do período que alguns designam como pós-modernidade, e se traduzem como em eventos ocorridos na noite paulistana, tão bem descritos na monografia de Ana Garbin na pós-graduação em psicologia da PUC/SP, onde em algumas casas noturnas, no meio da dança, trabalha-se a regra no estabelecimento de que alguém só pode sair do local ou ganhar brindes na festa se beijar alguém. Ué! Em nossa cultura de big brother será que o beijo virou algo assim tão trivial? Não estou sendo conservador e nem quero estabelecer uma crítica em relação aos "pós-modernos", pois beijar é muito bom, gosto, e sei que beijo é fundamental numa relação a dois(como mera "ficação" ou como algo mais sério), mas me pergunto até que ponto o beijo deixou de ser aquela iniciativa pueril, meio no estilo de "modalidade esportiva" como eu fazia nos meus tempos de universitário, ou se virou mais um fetiche à disposição do mercado (beije mais, compre mais, ganhe mais!).
Sei o quanto beijo é bom, pois adoro beijar e ser beijado, seja entre familiares, amigos ou entre aqueles com quem a gente quer manter uma relação amorosa. Espero nessa vida, com a Graça de Deus, ainda poder experimentar a deliciosa sensação do beijo molhado, ao tocar a boca da mulher querida, seja numa vitória de Copa do Mundo ou do meu time de coração, numa festa entre amigos, num aniversário, numa mesa de bar, no escurinho de um cinema, nos corredores do local de trabalho, ou acalorado pela saudade que serve de alimento pra tantos beijos apaixonados, quando se é romântico, e se retorna a ver quem a gente ama. O beijo pode decifrar enigmas, revelar senhas, esclarecer códigos e assim tornar a nossa vida até mais fácil. O beijo antece ou sucede o sorriso alegre de quem ama viver, e como eu, quer continuar beijando até receber o último beijo daquela entidade cujo beijo ninguém quer receber: o beijo da morte (Aiiiiii!Não pensem que sou mórbido ou emo, estou sendo apenas realista!).
De qualquer forma, no dia de hoje saúdo todos os beijoqueiros do meu Brasil varonil. Aqui minha singela homenagem a todos os que beijam no mundo, e que entendem que o beijo pode ser um gesto extremamente agradável e muito gostoso, independente dos sentimentos que você carrega ao beijar ou ser beijado. Por isso que saúdo o dia mundial do beijo, beijando ou não sendo beijado. E ainda dizem que não tenho alma de poeta!
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