Trato aqui da crise do garantismo, e digo isso porque antes da morte do pedreiro, quando este confessou seus crimes, a imprensa, com sua fome devoradora de notícias, logo procurou encontrar os culpados pela precipitada libertação de Admar, os responsáveis por uma suposta "omissão administrativa" ou irregularidade, que permitiu que um maníaco psicopata pudesse ser solto, e assim viesse a cometer novos delitos. O juiz da Vara de Execuções Penais que concedeu a liberdade de Admar fugiu dos holofotes, mas permitiu a divulgação de entrevista em que ele afirma que tão somente cumpriu a lei, baseado num laudo psiquiátrico requisitado pela Justiça, que atestou a normalidade de Admar, informando que ele não possuía doença mental alguma, e, portanto, poderia ele, supostamente no entendimento do juiz, ser solto, por "não apresentar perigo à sociedade", preenchendo as condições legais para progressão de regime, sendo-lhe concedida liberdade condicional. Uma vez solto, rapidamente o maníaco goiano voltou a perseguir e matar o objeto de seu desejo pedófilo:jovens adolescentes, mal saídos da infância, que eram atraídos pelo pedreiro com promessas de dinheiro, sendo sexualmente violentados e mortos em seguida, a pauladas ou a golpes de enxada. O criminoso chegou a enterrar todos os corpos em local próximo à residência das vítimas, e aparentava uma completa frieza diante das mães das vítimas, além de não manifestar sinais de visível arrependimento ao confessar seus delitos.
Mas o pior ainda estava por vir para prejudicar ainda mais a credibilidade do Estado e da Justiça Brasileira; quando, uma vez recolhido novamente à prisão, e sujeito à tutela do Estado, que deveria assegurar ao acusado o devido processo legal, a proteção de sua integridade física e um julgamento justo, Admar acabou sendo encontrado morto em circunstâncias misteriosas, na carceragem de uma mesma polícia encarregada tanto de detê-lo quanto de protegê-lo de outros que, por um sedento sentimento de vingança, queriam ver morrer o monstro, um cruel assassino de garotos. As circunstâncias da morte de Admar indicam suicídio. Porém, devido à estranheza de tal fato, o Ministério Público goiano pediu imediata instauração de investigação, para determinar se Admar de Jesus teve de fato uma "morte morrida" e não uma "morte matada". Fica difícil de se chegar a uma conclusão!!
O garantismo é uma corrente teórica surgida inicialmente no direito europeu e que ganhou vulto no direito brasileiro há mais de uma década, com especial relevância no direito penal, que prega a subserviência de todo o aparato jurídico aos princípios constitucionais garantidores dos direitos e liberdades individuais e sociais. Isto implica em dizer que na aplicação da lei penal, por exemplo, os agentes do Estado devem observar se as leis que estão cumprindo correspondem ao seu papel constitucional de assegurar ao preso o devido processo legal, o respeito a sua incolumidade física, a garantia de penas que não sejam contrárias à dignidade humana, bem como a atenção à presunção da inocência. Nada mais justo! Ora, em qualquer Estado democrático e civilizado, é natural que qualquer indivíduo que seja preso tenha os mínimos direitos assegurados constitucionalmente a qualquer um, como a assistência de um advogado, o respeito a sua integridade física, com a proibição do famigerado expediente da tortura ou de maus-tratos, e a garantia de um processo penal limpo, organizado e com direito ao contraditório. Isso é inegável! Como também é inegável que qualquer condenado sujeito a cumprimento de pena privativa de de liberdade, exercendo sua pena em regime fechado, tem direito à progressão para um regime prisional mais benéfico, se apresenta os requisitos para isso (bom comportamento, capacidade laborativa, vontade de ressocialização, ausência de distúrbio antissocial etc). O problema não está no cumprimento da lei, como bem nos ensina o jargão positivista. O problema está em como a lei é cumprida!
Após o cometimento de seus últimos crimes, Admar foi diagnosticado por especialistas como psicopata. Segundo a literatura criminológica, baseada em estudos médico-psiquiátricos, o psicopata é um indivíduo frio, que padece de ausência de remorso e de sentimentos comuns aos demais indivíduos considerados normais, tais como culpa ou arrependimento. Um detalhe significativo é que os psicopatas não são considerados doentes mentais, uma vez que não apresentam estados dissociativos (quebra da realidade), não deliram como os loucos e tem completa consciência da gravidade de seus atos; ou seja, eles sabem o que estão fazendo. A única diferença é que o psicopata não se importa com isso. Foi assim que o maníaco de Goiânia se manifestou quando perguntado pela imprensa sobre o porquê de seus crimes. Psicopatas não lidam com porquês simplesmente pelo fato de que não ficam se indagando de suas condutas, eles simplesmente agem. E foi agindo que Admar de Jesus provocou tanta desgraça, desperdiçando tantas vidas inocentes. Psicopatas não tem cura, e a única maneira de deter psicopatas criminosos para que eles não voltem a delinquir é mantê-los afastados do convívio em sociedade. Fico me perguntando o seguinte: se Admar era de fato psicopata, ou seja, um sujeito ausente de culpa que não se arrepende, como ele poderia ter se suicidado? É muito estranho, mesmo! Será que no processo penal, pela dimensão dos crimes praticados, não sacaram que esse cara era psicopata?
Foi esse o fator principal não observado pelo juiz quando concedeu a liberdade de Admar, e que esteve presente na sua entrevista feita à imprensa, rebatendo as críticas feitas a sua atividade profissional, feitas até mesmo pelo Ministério da Justiça, quanto a um suposto equívoco do julgador ou evidente erro judiciário. O juiz se defendeu, alegando que não poderia prever que todo preso que ele libertasse viesse a delinquir novamente, bem como afirmou ser impraticável requerer um laudo psiquiátrico de avaliação de todo condenado, uma vez que isso travaria a Justiça, pela ausência de profissionais suficientes para avaliar uma quantidade tão grande de criminosos que são condenados diariamente, por ser um trabalho técnico demorado e trabalhoso. Creio que isso não é argumentação válida! Ora, se o problema é ausência de pessoal qualificado, que se contrate mais pessoal! Se a avaliação de comportamentos psicopáticos é demorada e prolongada, que se prolongue então a manutenção do condenado na prisão, até que se comprove cientificamente que ele não apresenta perigo à sociedade. O grande problema do caso da libertação de Admar de Jesus é que ele foi diagnosticado pela junta médica, na Vara de Execuções, como um indivíduo que não portava enfermidade mental; logo, por presunção judicial, o mesmo não apresentaria perigo à sociedade. Ledo engano! Uma vez que psicopatas são perigosos, mas não são doentes mentais!
Nem todo psicopata é criminoso, isso é verdade, mas todo psicopata que venha a delinquir poderá apresentar o mesmo comportamento por toda uma vida. Sobre isso inquietam-se juristas e criminólogos e pergunta-se qual a melhor saída para casos como o do pedreiro goiano, uma vez que, segundo o entendimento do jurista Rodrigo Capez, entrevistado pela Rede Globo, o juiz que concedeu a liberdade de Admar estava entre a cruz e a espada: por um lado, observar a periculosidade do condenado, atestando se este deveria ou não voltar ao convívio em sociedade; por outro lado, a necessidade do cumprimento da lei e do respeito aos princípios constitucionais, garantindo-se ao indivíduo à progressão de regime toda vez que ele apresente requisitos para tal. É! Dura a vida de ser juiz criminal num país como o nosso!!
Entendo que pelo entendimento garantista, o juiz deveria realmente conceder a liberdade ao apenado se este preenchesse os requisitos legais, em obediência à lei, garantindo-se seus direitos constitucionais.O grande problema do garantismo é que esse funciona como um "positivismo light"; ou seja, um positivismo com preocupações humanitárias, sendo a grande norma positiva representada no ordenamento jurídico estatal como a própria norma constitucional. Garantistas são positivistas que carregam uma Constituição debaixo do braço, e as soluções que eles propõem, apesar de humanitárias, não fogem muito ao binômio fato X norma. Questões complexas como a concessão ou não de liberdade a um indivíduo que não é doente mental e preenche os requisitos para progressão de pena, não obstante ser psicopata, foge em muito do reducionismo normativo a que se propõe uma interpretação garantista. Na verdade, o garantismo teve sua razão de ser num Brasil que tinha acabado de sair de uma ditadura, e a defesa dos princípios constitucionais, como norteadores do direito penal, deixou de ser questão óbvia para qualquer estudante de direito do primeiro ano, para se tornar um cavalo de batalha empregado por tantos juristas, sob o pretexto de combater um Estado policial e desumano.
É engraçado ver como o garantismo foi adotado enquanto matriz teórica pelos juristas brasileiros. Em sua gênese, o garantismo é uma corrente de pensamento vinculado a velha tradição liberal-positivista, de formação do Estado contemporâneo, caracterizada por uma postura de eterna desconfiança do indivíduo quanto ao Estado, sendo a principal tarefa do cidadão (delinquente ou não) combater os abusos e a arbitrariedade estatal. Garantia no pensamento liberal é a garantia que tem o cidadão que o Estado não o importune, e nessa linha de raciocínio muitos criminosos escapam da cadeia sob o pretexto de não serem "importunados injustamente" por um Estado autoritário e punitivo. Daí que muitos juízes, vinculados a uma linha de interpretação garantista, revestem-se de uma série de cuidados ao apreciar o processo penal e proferir suas decisões, chegando ao ponto de libertar contumazes criminosos que poderão certamente voltar a delinquir, sob o pretexto de resguardar suas garantias constitucionais. É nessa crítica do modelo garantista de política criminal que se debruçou o jurista espanhol José Diez Rippolés, na interessante obra : La política criminal en la encrucijada. Apesar de notadamente liberal-burguês, o discurso garantista ganhou no Brasil franca recepção entre pensadores de esquerda, e sob o manto de um suposto esquerdismo de juristas identificados com um Welfare State, o garantismo transformou-se no modelo ideal de concepção de Estado, onde qualquer iniciativa punitiva podia ser identificada com o compromisso autoritário com um regime de exceção, historicamente sepultado com o ressurgimento da democracia no Brasil.
É engraçado ver como o garantismo foi adotado enquanto matriz teórica pelos juristas brasileiros. Em sua gênese, o garantismo é uma corrente de pensamento vinculado a velha tradição liberal-positivista, de formação do Estado contemporâneo, caracterizada por uma postura de eterna desconfiança do indivíduo quanto ao Estado, sendo a principal tarefa do cidadão (delinquente ou não) combater os abusos e a arbitrariedade estatal. Garantia no pensamento liberal é a garantia que tem o cidadão que o Estado não o importune, e nessa linha de raciocínio muitos criminosos escapam da cadeia sob o pretexto de não serem "importunados injustamente" por um Estado autoritário e punitivo. Daí que muitos juízes, vinculados a uma linha de interpretação garantista, revestem-se de uma série de cuidados ao apreciar o processo penal e proferir suas decisões, chegando ao ponto de libertar contumazes criminosos que poderão certamente voltar a delinquir, sob o pretexto de resguardar suas garantias constitucionais. É nessa crítica do modelo garantista de política criminal que se debruçou o jurista espanhol José Diez Rippolés, na interessante obra : La política criminal en la encrucijada. Apesar de notadamente liberal-burguês, o discurso garantista ganhou no Brasil franca recepção entre pensadores de esquerda, e sob o manto de um suposto esquerdismo de juristas identificados com um Welfare State, o garantismo transformou-se no modelo ideal de concepção de Estado, onde qualquer iniciativa punitiva podia ser identificada com o compromisso autoritário com um regime de exceção, historicamente sepultado com o ressurgimento da democracia no Brasil.
Entendo, entretanto, que não vivemos mais num regime de exceção ou de tolhimento das liberdades, e nem num pais em que considerar a prisão como uma ultima ratio, seja, com isso, considerar que não deve se haver prisão, sob o pretexto de autorizar o mandonismo estatal. Nesse sentido, compartilho muito mais de um ideal abolicionista, meio "oito ou oitenta", baseado num princípio de intervenção penal mínima, onde concordo com a tese que advoga soluções não penais para questões originalmente penais (como as pequenas agressões ou pequenos furtos, por exemplo), e normas penais mais graves para situações igualmente graves, ou seja; lei penal apenas para aqueles fatos que realmente, apresentam relevância penal (como o caso da vida ou da liberdade, esses sim, direitos constitucionalmente consagrados e que devem sempre ser levados em conta). O que quero dizer com isso? Digo que no caso do pedreiro goiano, não bastava tão e simplesmente verificar se o sujeito tinha direito à progressão de regime, mas também saber se ele poderia aproveitar bem o benefício dessa progressão. Os direitos não são absolutos, como pensa o jusnaturalismo moderno, mas são contextualizados historicamente e dentro da perspectiva própria de cada sistema jurídico. Não posso simplesmente conferir o direito de liberdade a um cidadão se, em tese, ele tem direito a essa liberdade, mas em aspectos fáticos, ele pode comprometer o exercício desse direito, abusando dele, vindo a sufocar o direito do outro, valendo-se do crime (aí me revelo bem hegeliano). O problema dos garantistas é que eles parecem um séquito de ouvintes de música popular brasileira, que acham que ouvir nos dias de hoje música de Chico Buarque ainda é uma forma de protesto, porque Chico Buarque compunha bem quando vivíamos numa ditadura. Só que agora existe um detalhe: hoje, a juventude letrada não escuta Buarque e sim Zeca Baleiro ou Malu Magalhães, e está longe de ouvir um Osvaldo Montenegro (arrggg, que detesto!). Porém, antes que os fãs de Chico venham me jogar pedras, explico abaixo, sem brincadeiras, como entendo essa suposta "crise do garantismo".
Segundo Ripollés, o modelo garantista de direito peca pelo seu excesso de racionalismo que redunda numa fria objetividade no tratamento da lei penal. Quero dizer com isso que o racionalismo aproxima o juiz e o jurista das normas, mas afasta o restante da sociedade de seu efetivo significado. O respeito aos princípios constitucionais como forma de manutenção do ordenamento jurídico surge como um código cifrado de conhecimentos apenas de juristas iniciados, de frequentadores de faculdades de direito, mas permanece um saber fechado para o restante da população. Assim, para a mídia, e para setores oportunistas como os editorais da sucursal da revista Veja (olha a minha crítica a Veja, de novo!), quando um assassino confesso, como o jornalista Pimenta Neves, permanece há mais de dez anos fora das grades, após ter matado covardemente Sandra Gomide, a impressão que se tem é que o nosso Judiciário favorece a impunidade, em prol de um desconhecido princípio da presunção da inocência, já que povo que é povo mesmo não sabe o que é isso. Os garantistas conseguiram fechar o direito do conhecimento público numa torre de marfim, apesar de suas boas intenções, e não conseguiram tornar mais eficaz um sistema que tivesse a função básica de garantir segurança e a proteção das pessoas. Na sua inabilidade com o fenômeno criminal, na sua ineficácia como instrumento de controle social, a ideologia garantista acabou por ceder espaço a sua cara-metade do "lado negro da força", sua nêmesis no debate jurídico, que são os movimentos da lei e da ordem.
Graças ao garantismo na órbita penal do direito brasileiro, as falhas de um sistema criminal baseado nesse entendimento passaram a ser perseguidas por aqueles que defendem um Estado penal forte e mais punitivo. Os garantistas acabaram por fornecer lenha à fogueira dos neoconservadores, habilitando todo discurso excessivamente punitivo, cada vez que as soluções garantistas se relevaram falhas em termos práticos, na aplicação da lei penal. Assim, a manutenção do princípio da presunção da inocência no caso de réus confessos revelou-se uma verdadeira aberração jurídica, no momento em que obrigou o jurista garantista a se prender, em termos absolutos, a supostos preceitos constitucionais que, como norma contramajoritária, poderiam, inclusive, legitimar o absurdo. Não é assim que penso o funcionamento do sistema penal e nunca pensei!
Na verdade, não obstante concordar com muitos dos pontos de vista de Luigi Ferrajoli, nobre papa do garantismo, autor da excelente obra Direito e Razão, creio que alguns pontos do garantismo penal aplicado no Brasil necessitam ser revistos, sobretudo acerca de um monolitismo neopositivista que tende a interpretar de forma absoluta certos preceitos constitucionais, a fim de legitimar absurdos. A obsessão racional em perseguir a norma constitucional não pode se confundir com um racionalismo tacanha, de entender que garantir aos piores monstros dignos direitos consagrados a todos, sirva para legitimar a impunidade, endossar o erro, avalizar a inoperância e tolerar a ineficácia. Além de ter permitido que um perigoso psicopata saísse as ruas para voltar a matar, o nobre juiz que autorizou a libertação de Admar ainda teve que amargar, junto com toda a Justiça Brasileira, a morte do próprio acusado, tendo em vista que foi encontrado morto em circunstâncias que indicam, hmmmmmmmm.......... vejamos..... suicídio??! É cedo para se tirar conclusões acerca desse episódio, mas o que posso atestar, com certeza, é que o Estado brasileiro mais uma vez falhou ao permitir que um acusado não pagasse por seus crimes, deixando que ele fosse morto (por mãos próprias ou "suicidado" pelos outros), o que por si só mostra a inoperância do sistema penal vigente neste país.
Não quero aqui entrar no lugar comum da crítica reaconária ao garantismo, pois entendo que os movimentos da lei e da ordem são, na verdade, um fascismo travestido de legalidade, que, de forma oportunista, quer sacrificar todos os direitos humanos em prol de um questionável Estado de segurança. Entendo que, assim como a liberdade é um direito fundamental, a garantia dessa liberdade pela segurança também tem força constitucional, e qualquer estudante de direito sabe disso. Se segurança é uma garantia constitucional, é porque esta serve para garantir, inclusive, a minha liberdade de não ser importunado por outrem, e dessa forma, presumo o quanto foi limitado o entendimento do juiz que concedeu a liberdade de Admar, ao se prender (sob a ótica garantista) a apenas uma dimensão de interpretação do que seja o direito à liberdade. Liberdade não é apenas direito do preso ao preencher os requisitos legais, mas também direito da sociedade enquanto um conjunto de indivíduos que também que ter seu direito à liberdade garantido a partir da segurança, o que não foi o caso, nem no caso da libertação de Admar, nem no caso de sua trágica morte; pois, nos dois casos, o Estado se omitiu de garantir a segurança tanto das tristes vítimas do maníaco goiano, quanto do próprio assassino, encontrado morto em circunstâncias que indicam ou suicídio ou justiciamento. De qualquer forma, bola murcha para o garantismo, na minha opinião. Desculpa aí, garantistas!
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