segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

CINEMA E FILOSOFIA:"Polícia-adjetivo":gramática e repressão numa reflexão filosófica.

Assisti nesse final de semana o filme romeno do diretor Corneliu Porumboiu (que nome!!), chamado "Polícia-Adjetivo"(Politist,adjetif), que está fazendo a alegria dos cineclubistas de nosso Brasil varonil. Apesar do título, não se trata de um filme policial, e muito longe do gênero, parece-se mais com o bom filme europeu de cinema de autor. A película é uma obra existencial (seja pelas longas e até tediosas tomadas de câmera), sobre a simplicidade de acompanhar a rotina modorrenta do protagonista, na sua atividade de perseguição e vigilância, numa bucólica Bucareste pré-inverno. O filme foi indicado pela Romênia para concorrer ao Oscar 2010 de melhor filme estrangeiro.

Na estória, o personagem, Cristi, é um policial que participa de uma investigação em um colégio, para determinar se alguém está traficando drogas na instituição. Ele encontra três adolescentes suspeitos, dois garotos e uma menina, que fumam haxixe num descampado, ao sair da escola, mas, à medida que vai investigando os garotos, Cristi percebe que não se tratam de traficantes, mas sim de jovens estudantes de classe média, cuja única infração visível é gostar de fumar um baseado. O policial passa, a partir daí, a questionar seus atos e as ordens de seus superiores, pois, apesar de saber que a legislação romena é uma das mais repressivas da Europa acerca do consumo de drogas, ele sabe que em breve, a exemplo de outros países, a lei vai mudar. Cristi sente o peso da consciência de saber que pode estragar a vida de um menino, colocando-o por sete anos na cadeia (mesmo que seus colegas de trabalho digam que o jovem sairá em condicional em três anos e meio).

Consciência, essa é a palavra-chave do filme, juntamente com outras, como lei e moral. É justamente no jogo de palavras no dicionário, sua semântica e por interpretações gramaticais, que o filme trata na verdade de linguagem, e não necessariamente de polícia. Uma obra-prima para aqueles que estudam o direito ou se debruçam na filosofia. Na verdade, é uma película de filosofia do direito.

O filme é lento sim, muito lento, e para os desavisados, pode parecer até uma chatice(vi poucos casais que assistiram o filme saindo da sala de cinema, reclamando o quanto o filme parecia ser chato pra c...). Mas, na verdade,a película de Porumboiu (como esses romenos tem o nome feio) tem o propósito de ser propositalmente lenta. Pela lentidão da conduta de Cristi, necessária para não se fazer percebido pelos seus investigados, acompanhamos também o drama de sua consciência, lenta em tentar entender como é que um sistema considera eficaz combater o tráfico de drogas e a drogadição, colocando moleques que somente fumam um baseado na cadeia. No filme de Porumboiu podemos ver como dois sistemas filosóficos fundamentais foram se desenvolvendo na relação entre indivíduo e norma: de um lado, a filosofia do sujeito, dando lugar à razão prática (Kant); de outro, a filosofia da linguagem, com sua razão comunicativa (Habermas). Calma, vou explicar!!

Para Kant, nas relações entre os homens, a razão está voltada para uma máxima moral universal, que obriga a todos os homens, e por isso mesmo se transforma em mandamento fundamental ( o imperativo categórico). O problema é que ao reduzir o universo multifacetado de condutas à obediência a uma norma moral de valor universal Kant dá vazão à correntes teóricas e doutrinas ideológicas na ciência, como o positivismo, que tendem a compreender que esse imperativo moral encontra-se inserido na lei. Daí não existir mais uma lei moral reconhecida que oriente as condutas (e suas consciências), mas sim uma lei pública que seria a exteriorização real da razão prática tão defendida por Kant. Obedecer a lei, portanto, é também agir moralmente, pois não seria racionalmente viável descumprir uma norma, no momento em que conforme a máxima universal não é razoável querer que todos descumpram a lei, só porque eu quero descumpri-la(Fundamentação da Metafísica dos Costumes).

Já para Habermas, a discussão sobre seguir ou não a lei não está no sujeito que se apega ao imperativo moral, mas sim ao discurso. A razão encontra sua lógica no discurso, no agir comunicativo entre os homens e não no sujeito autossuficiente e racional pensado por Kant. Seguindo a tradução da Escola de Frankfurt, Habermas dará espaço à comunicação, como uma condição ideal do discurso onde os diversos sujeitos entre si debatem qual a melhor solução a ser seguida, cada um carregando, naturalmente , seus esquemas morais, mas cada um contribui para uma resolução normativa que agradará a todos, que é a lei. A lei, nesse aspecto, é vista como uma expressão de condições democráticas do discurso, onde os diversos participantes do discurso atuam mediante um amplo debate, proporcionando o surgimento da regra (Direito & Democracia).

É nesses dois ambientes filosóficos que Cristi irá se deparar, quando começa a construir na sua consciência uma nova semântica acerca da lei, que afinal, enquadra-se bem no discurso habermasiano. Pra que seguir uma lei retrógada se a sociedade já discute democraticamente a possibilidade de revê-la? O grande problema para ele, e para qualquer agente de Estado, não só na Romênia, mas no mundo inteiro, desde a América profunda de Bush até a ação do BOPE, aqui no Brasil, é que, apesar de tudo, no jargão positivista lei é lei, e como policial você tem duas opções bem definidas pelos seus superiores: ou segue a lei ou deixa de ser policial. É justamente no dicionário que gravita o filme que chegamos a definição do que é ser policial. Policial se trata de um substantivo ou de um adjetivo? É uma profissão, um cargo público, ou um modo de vida? Polícia se torna adjetivo no momento em que aquele que se transforma num agente de Estado (seja um juiz, um promotor ou um delegado) não apenas está na ocupação de um cargo ou tem um emprego diferente dos demais. O sujeito é policial, seu ethos é de policial, e dessa opção de vida aquele que assume essa árdua função adota uma nova perspectiva (eu poderia dizer heideggeriana) de se tornar um "ser-aí" como diria o filósofo da Floresta Negra, um dasein. Resta saber se no mundo que passa a ser visto como um mundo policial, aquele que reprime pode questionar sua própria condição, no momento em que repensa sua relação com a lei; pois como policial, ele não apenas reprime, mas também é reprimido pela norma, e talvez por isso esteja mais preso a ela do que os outros pobres mortais, e, em função disso, por vezes, é obrigado a fazer difíceis escolhas. E estas escolhas serão difíceis para Cristi.
Pra quem for assistir o filme ( e aguentar sua lentidão) digo que a melhor parte está reservada para o final. É no diálogo ímpar e longuíssimo entre Cristi e seu chefe, o comandante da polícia romena, que poderemos ver até que ponto surge a encruzilhada de deixar de ser polícia ou cumprir a lei, e, se na verdade, isso não passa por meras questões semântico-gramaticais. Com certeza, ao menos, ao sair do cinema, você terá na cabeça uma nova concepção sobre a palavra "consciência" e vai entender porque ela pode pesar ou não, na vida de um policial. No meu caso, a minha já pesou por muito tempo, e do adjetivo policial só me restou um substantivo: tristeza.


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