quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

CINEMA: "O SOLISTA" é uma sinfonia acerca de nossos sentimentos de solidariedade.

Fazia tempo que eu não saía do cinema com as lágrimas escorrendo pelos olhos. Não chorei de raiva, por ter visto um filme tão ruim, ou pela decepção de ter gasto uns bons trocados na sala de cinema que já me valeriam uma janta, mas sim pela profusão de sentimentos que a película do diretor Joe Wright, me fez sentir. De fato, o filme "O Solista" revelou-se uma grata surpresa, nessa véspera de festejos natalinos, sobretudo após dois artigos extremamente profundos que escrevi aqui neste blog, acerca de dois atributos igualmente comuns ao gênero humano, tão díspares entre si, a que me referi várias vezes ( e não canso de repetir), que traduzem a história da humanidade: o amor e a maldade.

Lembram os meus leitores, que acerca do singelo e comovente relato do jornalista Paulo Sant'Ana, comentei sobre o amor em textos anteriores deste mês, assim como, paradoxalmente, falei da maldade do homem, ao retratar o dantesco caso envolvendo uma pobre criança na Bahia, cujo corpo foi perfurado impiedosamente por agulhas várias vezes, por outras pessoas, entre elas, por seu próprio padrasto. Posso ser acusado de contraditório, ao louvar o amor, como característica sublime do gênero humano, e ao mesmo tempo acusar as maldades dessa condição, dizendo que os homens são todos maus, como criaturas imperfeitas criadas à imagem e semelhança de Deus (mas nunca sendo iguais a Ele), ou de ser um gênio recalcado, obliterado por minhas pieguices religiosas, à custa de um Deus imaginário que nunca vem; ou que, conforme o entendimento de nossos letrados e racionais intelectuais "humanistas", não pode, enfim, ser comprovado.

Mas se a época é de Natal, não deixo de comentar ( e festejar) a sensível película de Joe Wright, lançada este ano, que conta com o talento extraordinário de dois atores já oscarizados. Dentre eles: o principal, Robert Downey Jr. (já eletrizado como super-herói para as novas gerações como o Homem de Ferro) e o fantástico Jamie Fox (ganhador da estatueta ao interpretar o mítico músico Ray Charles), ator da nova safra de artistas negros consagrados pela crítica e indústria do cinema americanos (assim como Denzel Washington e Morgan Freeman).



Os dois, no filme, fazem um singelo duelo de interpretação, digno dos melhores cenas dos clássicos do cinema, em papéis difíceis (ambos), num roteiro adaptado deliciosamente escrito, narrando uma história real, que ocorreu no começo deste século, acerca da amizade entre um jornalista branco consagrado, e um músico sem-teto negro, acometido do mal da esquizofrenia. Downey Jr. interpreta Robert Lopez, um conhecido articulista do L.A. Times (assim como no aqui no sul, seria nosso célebre Paulo Sant'Ana), que em sua coluna de jornal trata das crônicas urbanas do dia a dia, tão banais quanto seu acidente de bicicleta, no asfalto impiedoso de Los Angeles, ou tão profundas, quanto ao tratar da miséria, da violência das gangues, do caos urbano e dos sem-teto, de uma metrópole remediada, sobre o governo republicano do "ex-terminator" Schwarzenneger.

É nessa meca do capitalismo e do consumismo desenfreado que um ambicioso Lopez ( papel de Downey Jr), mais interessado em transformar notícia em prestígio, reconhecimento social e prêmios no jornalismo, nas cafonas cerimônias de fim de ano no setor, depara-se num belo dia com a realidade de Nathaniel Ayers Jr., um músico negro de rua, lelé da cuca, que do meio de sua loucura consegue extrair de sua vareta as mais belas sinfonias de Beethoven, desde a praça onde se ergue o monumento ao músico germânico, até as fétidas ruas de periferia, viadutos e túneis do cenário urbano de Los Angeles. O que inicialmente parecia ser apenas uma matéria jornalística, torna-se o pano de fundo para uma extraordinária estória de amor fraterno, conquista, solidariedade e reconhecimento do outro, na medida em que o abonado e cool Lopez vai se deparando com a realidade antes dantesca, porém muito bem explicada racionalmente, de seu inusitado novo amigo Ayers.
Logo, vemos o custo e a lógica do absurdo dentre as incontáveis consequências irracionais da amizade incomum entre opostos. Desde um homem branco com um negro numa América profunda que ainda não deglutiu suficientemente a eleição de um Obama para a presidência, até o relacionamento sincero e meigo entre um abonado e um excluído do sistema; ou pior: entre um dito "normal" e aquele considerado louco. Na verdade, a maior lição de "O Solista" não está apenas na decantada equação politicamente correta, entre os que estão "por cima da carne seca" e os que estão na pior, ou de um branco que se socializa com um negro, na sublime aspiração do american dream na resolução compartilhada e visão liberal-democrática de um amanhã melhor (bem ao gosto dos dramalhões estrelados por Will Smith, faça-me o favor!). Na verdade, o filme de Wright cativa por motivos bem menos simbólicos, mas que impressionam os olhos, na medida em que é natural fecharmos os olhos para um mundo imcompreensível a nossa visão racional: o mundo da loucura.

A loucura é a inimiga do racionalismo. Assim como o Antigo Regime é a pá opressora que impede o surgimento do progresso, segundo a crítica de Foucault ao pensamento de Descartes, ao se ler "História da Loucura". A loucura ficou associada ao sonho ou ao erro. Louco é aquele que sonha, que não pensa ou encara a realidade, e por isso erra. No filme, vemos que o personagem de Jamie Fox, Nathaniel Ayers, sonha acordado no momento em que tem que se ver sozinho, diante de uma plateia imensa, com seus risos, tosses e engasgos, sufocado por suas vozes interiores, que o impossibilitam de fazer o que mais gosta ao dedilhar os dedos num cello ou num violino, ao se comunicar com suas vozes sublimes mais interiores, ao se comunicar com Deus. Lopez vai percebendo cada vez mais isso, e é chamado a tomar profundas decisões, quanto a ser somente um jornalista boa-praça, que, num gesto de caridade, superinflacionado pela audiência, auxiliou um sem-teto, ou, se, na verdade, sabe cultivar o significado real da amizade, não entre semelhantes, mas até mesmo entre aqueles que não tem a mínima sensação da realidade ( ao menos no que temos cultivado em nossas racionais relações pessoais). Amizade não implica apenas em compartilhar, mas tambem em sacrifício. Um sacrifício que envolve desistir de corrigir o diferente, como condição para que ele se torne seu semelhante; e, ao contrário, permitir que a diferença permaneça, reconhecendo a alteridade, mesmo que seja àquela relacionada com aqueles que, segundo o jargão legal da medicina ou da política pública, "necessitam ser corrigidos".

O personagem de Jamie Fox, assemelha-se, em alguns aspectos, ao tipo festejado pelo público, na figura do ex-guardador de carros Zina, esquizofrênico reconhecido, que ao obter a sorte grande, sendo reconhecido pelo "Programa Pânico na TV", acabou ganhando notoriedade, muito menos em relação a seus dotes intelectuais, mas tão somente a sua personagem espontânea, natural, quase pueril, que revelou um homem que precisava de ajuda, mas, ao mesmo tempo,alguém feliz com sua recreativa vida de guardador de carros, morador da Xurupita e hipnotizado fã do Corintians. Hipnose essa que parece tomar conta de Nathaniel Ayers, toda vez que toca seu violino ou escuta uma sinfonia de Bach, em paz no seu mundo de desvalidos, loucos, sem-tetos, excluídos e párias sociais, no meio das caóticas, sujas e frenéticas ruas de uma metrópole.

Entendo que loucos como Ayers, no fundo de sua esquizofrenia, acabam por viver num mundo paralelo, livre das amarras da disciplina e do Estado. Creio que a loucura inaugura uma nova moralidade, a exemplo da clássica separação que faz Hegel entre uma moralidade subjetiva e outra objetiva, para definir os seus conceitos de liberdade e de direito. Afirma ele: "O que é moral não se define, antes de tudo, como o oposto do que é imoral, nem o direito como o que imediatamente se opõe ao injusto, mas todo o domínio do moral e também do imoral se funda na subjetividade da vontade".

Vontade, ahh, a vontade! Quando o jornalista Robert Lopez descobre que respeitar a vontade de seu amigo esquizofrênico é muito mais superior que a vontade de querer curá-lo, ele imediatamente descobre uma esfera nova de moralidade que até então estava reservada à manutenção da diferença, do controle e da subordinação, na relação entre os ditos normais e os loucos. Lopez passa a descobrir que não é mais tão importante querer que Ayers (na juventude um brilhante estudante de música da renomada Escola Juilliard, de Nova York, que desistiu no segundo ano em virtude da doença), volte a participar de recitais, voltando a velha vida de um velho homem que tanto o aterrorizara, contribuindo para sua enfermidade; mas sim para uma nova dimensão da vida que aceita, inclusive, levar a tiracolo um louco desvalido, com seu carrinho de compras recheado de bugigangas, com suas roupas extravagantes, e que prefere dormir no chão de um abrigo para sem-tetos e loucos como ele, do que descansar num confortável apartamento à prova de som, para que ele possa realizar seus estupendos ensaios de cello e violino.



De fato, "O Solista" é um bom filme para se ver na véspera de Natal, resgatando, a meu ver, bem mais o espírito natalino de fraternidade, amor e reconciliação, do que as cansativas películas de Papai Noel, com seu "ho-ho-ho-ho", que já encheu o saco aos meus ouvidos (que me perdoem as crianças). Foram lágrimas bem vertidas aquelas no cinema, ao assistir este belo filme, pois me fizeram acreditar que, apesar de tanta maldade, sim, nós humanos, tão contraditórios, também somos esplêndidos em impressionar uns aos outros com nossos gestos de nobreza; inclusive percebendo a mudança interior que isso nos faz durante o processo. Por isso, para todos os amigos e leitores deste blog: UM FELIZ NATAL!!!

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