Foi o que ocorreu recentemente com o rumoroso caso propagado pela mídia ( e a mídia, naturalmente, adora casos rumorosos), sobre uma pobre criança de 2 anos encontrada na Bahia, com mais de 30 agulhas enfiadas em seu corpo. Inicialmente, pensava-se que a quantidade era maior, mas é só dar uma olhada na radiografia do menino mostrada acima e divulgada à exaustão nos meios de comunicação, para ver a imensa barbaridade e sofrimento a que ficou sujeita essa criança; e o pior ainda, com a maléfica participação de seu padrasto.
Ahh, padrastos e madrastas! Lá vem eles novamente, a exemplo dos contos de Cinderela e Branca de Neve, onde aparecem como os grandes vilões, assim como a vilã do ano passado, Ana Jatobá, uma das suspeitas de ter assassinado, junto com o marido, a enteada Isabela Nardoni. Desta vez, entretanto, não foi na urbana classe média paulista que se presenciou um bárbaro crime, mas sim na ensolarada Bahia, terra de Caetano e Gil, do axé, do Olodum, da alegria dos trios-elétricos e tantas fanfarras, que agora presenciam tambores emudecidos pelo horror! "O horror!O horror!" na clássica frase de Marlon Brando no filme Apocalipse Now, agora parece ressoar na cidade de Ibotirama, onde vive o garoto vítima das agulhas, perplexa como até que ponto pode chegar a selvageria humana. Ou será que, segundo Hobbes, não deixamos nossa condição de lobos? E apenas saímos da casinha de cachorros, momentaneamente, para revelar a verdadeira fera irracional que nós somos. O mal existe, de verdade, e a maldade penetrou junto com as agulhas que perfuraram o frágil corpo de uma criança inocente.
Suspeita-se de ritual de magia negra, ou tão e simplesmente de vingança. O padastro do menino, Roberto Carlos Magalhães Lopes, disse em cadeia nacional no Fantástico da Globo, que teria cometido a vilania para se vingar da mãe do garoto, uma pobre empregada doméstica. O sujeito mulato, esquálido, cabelos crespos desalinhados, retratando um tipo lombrosiano bem ao gosto dos criminólogos positivistas da tradição, parecia ter sido tirado do elenco do clássico do terror-trash: "O massacre da Serra Elétrica". Poderíamos dizer em uníssono, com a chancela da escritora Ilana Casoy, que estaríamos diante de um psicopata, um maníaco, um pervertido, um endemoniado, um monstro; mas eu só consegui ver ali um homem, um simples homem, com toda a fraqueza, vilania e perversidade que poderia ter um burocrata do serviço público que maltrata seus funcionários ou um político corrupto que está pouco se lixando para os seus eleitores. Tá bom! Vão dizer que estou tratando de lugares-comuns toda vez que se fala de crime no Brasil, que estou querendo voltar aquele papo esquerdista da criminologia crítica, de que crime bárbaro de rico não aparece na televisão, que o cara só fez isso porque é pobre, bla,bla,bla,bla. Mas não é nada disso. Minha análise é bem mais complexa.
Como complexos são os seres humanos em toda sua ambiguidade de se encontrarem humanos. Os mesmos seres que são capazes de maravilhas, como uma sinfonia de Beetoven, a caridade e a fraternidade do Natal, a sensibilidade de entregar a uma pessoa amada poemas e flores, são capazes de matar ou ferir por pura mesquinhez, por egoísmo, por prazer; e foi isso o que, de antemão, nos apressamos em justificar, ao analisar o tétrico crime praticado por Lopes e suas comparsas(pela ordem: uma suposta amante do suspeito, além de uma mãe-de-santo, cuja prisão já foi decretada pela Justiça). Seja ou não mediante um ritual macabro de origem africana (para uns a quimbanda, mas que, para os estudiosos da temática afro-religiosa, seria reducionismo atribuir a esta expressão religiosa o caráter de diabólico), a maldade com nosso semelhante mais fraco(crianças, idosos ou enfermos) não nos causa apenas repulsa, mas também ódio e sentimento de vingança. Argumentos sobre a suposta humanidade da espécie humana, que nos diferenciaria das feras, não é suficiente para nos afastar da maldade e da mesquinhez de nossos próprios atos, e, nesse sentido, fico me perguntando se não havia contradição na bondade pregada pelos gregos (bom=belo), no momento em que bons eram apenas os mais bonitos e mais inteligentes na sociedade ateniense, enquanto que os "feios" escravos, estrangeiros e jovens não podiam participar da tomada de decisões da polis. Ou então me pergunto dos bons e belos espartanos, com suas práticas eugênicas, onde crianças, como a da idade do menino baiano, eram simplesmente descartadas e jogadas de penhascos, quando não se adequavam ao perfil de perfeição e "bondade" espartana. Definitivamente, a meu ver, maldade não se explica recorrendo-se ao humanismo. Maldade é assunto pra ser debatido pela teologia!
Para uns, dá vontade de chamar um dos personagens de "Bastados Inglórios", do filme de Tarantino, para dar uma sova com taco de beisebol no infeliz padrasto, suposto autor do crime contra a criança, ou então poderia ser o caso de chamar o Capitão Nascimento, de "Tropa de Elite". Tudo para satisfazer nosso ódio contra o vilão do noticiário, para mostrar a ele que a "justiça" se resolve através de uma cadeira elétrica, uma forca, uma câmara de gás ou simplesmente um tiro. Imagino o que já está preparado para Roberto Lopes e sua turma quando chegarem no presídio. Existe uma certa ética na bandidagem encarcerada, em que estupradores, assassinos de crianças ou aqueles que mataram a própria mãe, tem seu destino selado, à revelia de qualquer pena ou medida de segurança aplicada por nossos tribunais. O mal povoa corações e mentes quando tratamos de crimes bárbaros. O ódio contra os criminosos tidos como vis acende nossas próprias maldades. Mas cabe a nós perguntar de qual barbárie estamos nos apegando mais: se a do padrasto, por sua torpeza em torturar uma pequena criança, que aos gritos e choros, dopada por vinho e amordaçada, deve ter passado por um sofrimento inominável enquanto agulhas perfuravam o seu corpo; ou se estamos nos referindo a nossos mais primitivos instintos de vingança, quando, ao presenciar o noticiário num restaurante, onde todos acompanhavam boquiabertos a entrevista com o padrasto da criança, logo em uníssono pude ouvir em coro declarações inflamadas de pais e mães indignados, que queriam tão somente que aquele infeliz fosse linchado, destroçado em praça pública. É a volta do martírio, a volta do castigo infamante e lancinante, retratado por Foucault na abertura de "Vigiar e Punir". É a sombra da maldade, meu povo, muita maldade! Como na música de Clara Nunes: "É o juízo final"!
Assim como na música, também quero ver a vitória do bem sobre a mal, pois quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer. Chamem-me de demagogo se quiserem, mas, de fato, não senti ódio ou repulsa ao ver a entrevista daquele homem na TV, contando em detalhes como supliciou seu enteado, em prol de interesses absurdamente egoísticos. Senti, na verdade, tristeza, uma profunda tristeza, pois vejo a contaminação que o mal produz, e isso me faz ficar triste, muito triste. Se eu parasse para fazer uma breve leitura teológica, diria que ali o Diabo estava presente enquanto influência ou entidade, e meus amigos ateus ou agnósticos se apresssariam em enjoar do texto e dizer que, agora, eu estaria iniciando meu velho papo de crente. Na verdade, creio que o caso havido na Bahia podia ser explicado teologicamente bem, ao se ler um pequeno tratado de Demonologia, capítulo da Teologia Sistemática que trata do estudo das referências bíblicas a Satanás e aos demônios. Porém, diferentemente daqueles que pensam que se trata de estudar a influência de um certo carinha tinhoso, com chifres na cabeça, patas de bode e tridente, esse estudo pretende analisar até que ponto determinados casos de manifestação da maldade podem ser tido como possessões ou são mera influência demoníaca.
A figura do demônio (ou demônios) está associada a nossa própria fraqueza, as nossas falhas, a nossa capacidade enquanto seres finitos e limitados de cometermos coisas horríveis, que contrariam um espírito positivo de racionalidade, que alguns preferem chamar de "bem", em contraposição a um "mal". O demônio interior de seres caídos como os humanos, equivale a seu correlato mítico na figura de Lúcifer, ele também um ser caído que, ao não admitir suas limitações e querer comparar-se a Deus no paraíso, acabou por ser expulso e cair no infermo, assim como Adão e sua companheira Eva caíram, ao serem expulsos do Jardim do Éden. Nesse sentido, o mal está associado à queda, ao resultado desagradável de nossos erros, de nossas próprias ações equivocadas. O mal pode vir de diversas formas, desde uma conduta que consideramos errônea ou repulsiva, como mutilar crianças, por exemplo, até o parricídio de nossos ancestrais idosos, deixando-os abandonados, simplesmente ao relento, entregues a sua própria sorte. Entretanto, sabemos que culturalmente, povos díspares, espalhados por esse planeta Terra globalizado, adotam diferentes condutas, que na realidade de suas tradições, não são de forma alguma consideradas práticas maléficas ou erradas, pois são até mesmo recomendáveis, como a extirpação do clitóris de meninas, na tenra idade, no norte da África, ou a tradição hindu na zona rural da Índia de abandonar seus velhos que não conseguem mais ser úteis, largando-os na floresta, para que morram de inanição ou sejam devorados por outros animais. No relativismo de nosso conceito racional-ocidental de bondade, que tem haver com o princípio da dignidade humana e da universalidade dos direitos do homem, não tem vez considerar nossa própria maldade,mas sim sempre a maldade dos outros. A maldade que surge de uma consciência negativa ou pessimista sobre a alteridade às vezes nos faz cair na armadilha sofista-dicotômica de que se eles são os maus, nós somos os bonzinhos; e, no caso da criança da Bahia, padrasto, amante e mãe-de-santo são os verdadeiros malvados. O humanismo também cai no erro de separar selvagens de civilizados, quando Hans Staden, por exemplo, ao escapar de seu cativeiro e voltar para a Europa, deixava a imagem tenebrosa para o conquistador português, de que os índios tupinambás eram malvados canibais, que matavam em rituais seu semelhante pelo prazer da gula, e isso só poderia ser a expresssão do puro mal, em detrimento da racional bondade européia, de matriz aristotélico-tomista, monopolizada pela Igreja Católica.
Crime e religiosidade sempre foram temáticas intensas em nosso meio jurídico, revelando as interfaces entre direito e religião, uma vez que a base de nossa legislação, por séculos teve forte influência do direito canônico. Recordo-me da passagem envolvendo uma história real, de um crime horroroso havido num pequeno povoado norte-americano do Kansas, nos anos cinquenta do século passado, onde dois ladrões de residência provocaram uma chacina, dizimando uma família inteira, no célebre livro "A Sangue Frio", do jornalista e dramaturgo Truman Capote; onde, revendo a cena do julgamento dos acusados: de um lado, sustentava a promotoria pela condenação dos réus à forca, citando as passagens bíblicas do Antigo Testamento, onde se pregava a pena de morte prevista em Levítico, para aqueles que matassem seus semelhantes; enquanto que, por outro lado a defesa sustentava trechos do Novo Testamento,onde Cristo trata de perdão e reconciliação. Os dois lados da Justiça Penal, que balançam entre a condenação e o perdão, refletem muito bem a influênca religiosa dos textos jurídicos, que nem com todo o peso da racionalidade positivista, conseguiu-se modificar, sob o pretexto de que argumentos de fé não podem ser considerados juridicamente, por não serem racionais, quando acontece justamente o contrário! O poder hermenêutico das escrituras sagradas, somado à força impulsionada do discurso e das prédicas dos sacerdotes, são um verdadeiro estímulo ao espírito do legislador, e foram responsáveis por grandes e extensos textos normativos, por sua vez embasados, mesmo que subliminarmente, em textos religiosos. Para o bem ou para o mal (já que estamos falando, afinal, sobre maldade), o homem sempre necessitou de uma justificativa transcendente para analisar a crueza de atos tidos como os mais pérfidos e irracionais, e por debaixo de nossas falhas, pesa para alguns sempre o argumento de que o mal só pode ser fruto de forças diabólicas, transcendentais, que escapam ao nosso domínio e que só podem ser explicadas como possessão, como uma ação exterior de seres mais malignos do que nós próprios.
Fico imaginando, diante deste aterrador caso retratado na sincrética Bahia, quantos ministros religiosos pentecostais, desavisadamente, vão iniciar seus sermões raivosos, pregando sobre o caráter diabólico dos cultos africanos, reduzindo tudo, numa retórica reducionista, à "coisa do Diabo". Imagino a mídia, preocupada com audiência, em seu noticiário sensacionalista, reportar o caso, de acordo com a repercussão bombástica da entrevista do padrasto preso pela polícia, apressando-se em dizer o quanto aquele homem é perverso e não minimamente perturbado, a fim de que seu defensor público (já que o cara é pobre de marré-marré) não utilize do expediente processual do incidente de insanidade mental, para livrar a barra de seu cliente. Para mim, tudo é maldade, quando banalizamos, por exemplo, o sofrimento de milhares de crianças pobres, meninos de rua, que desgraçadamente pululam em nossas ruas, nos semáforos das grandes cidades, ou são expulsas por seguranças de lojas de conveniência, como presenciei ontem, em determinado posto de gasolina de Porto Alegre, onde a maldade também se materializa pelo descaso ou pela pouca ou má vontade com seu semelhante. Lamento profundamente o ocorrido em Ibotirama, e assim como qualquer pessoa sensata nesse país, não passo a mão na cabeça dos culpados, assim que julgados e condenados, e quero simplesmente justiça, dentro das limitações do Judiciário brasileiro. Só não posso ficar cego para as maldades de nosso próprio cotidiano, e da maldade de nosso sistema educacional, que não conseguiu tirar das trevas da ignorância certos infelizes, que, a pretexto de exercer uma opção religiosa, rendem-se a esdrúxulos rituais, onde a vida humana é objeto de sacrifício, a pretexto de satisfazer egoísticos interesses pessoais. Isso pra mim é que é barra-pesada!! E uma péssima notícia nos meus festejos natalinos.
Por falar em Natal, que belo banho de água fria o crime de Ibotirama proporcionou ao nosso espírito natalino, vocês não acham? Enquanto saudamos a abençoada vinda de uma criança, personificada pelo Menino Jesus, vemos outra criança passar por sofrimentos tão lancinantes que nos fazem pensar se Deus existe mesmo, por ser capaz de deixar que terrores como esse aconteçam ou se Ele simplesmente contempla nossa risível condição de seres caídos, inertes em nossa fraqueza, perdidos em nossos pecados, fazendo-nos ser incapazes de perdoar o imperdoável ou de redimir aqueles que necessitam de redenção. Somos serzinhos bastante complicados, realmente, nós, seres humanos, tão complicados que não sabemos sequer lidar com a maldade, não apenas à alheia, mas principalmente àquela que é nossa. Perdoem-me aqueles que tem muita fé e aqueles que não tem alguma que seja: mas nós somos maus pra caramba! Talvez o grande passo em direção ao bem seja a consciência da maldade, o reconhecimento de nossas fraquezas, pois isso se constitui numa das primeiras portas abertas, com destino a reconciliação. E se é reconciliação, nada mais nobre do que pensá-la numa data que nos faz recordar disso, que é o Natal. Então, como presente impossível que peço a Papai Noel, em minha imaginação, peço o fim da maldade, afogada pelo bem que pode imergir de nossos corações, não mais sedentos de ódio ou de vingança, mas sim contemplados por nobres sentimentos de justiça, paz e reconciliação.Que Deus nos ajude!! FELIZ NATAL PARA TODOS!
oi Fernando Alves!
ResponderExcluirobrigada por este texto!
um beijo,
Branca