quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

FILOSOFIA: AMORES PERROS: Sobre a cadelinha do Paulo Sant''Ana e os amores entre homens e bichos.

Costumo ler a interessante coluna do jornalista Paulo Sant'Ana no jornal gaúcho Zero Hora, assim como os textos de David Coimbra, e, apesar de Santana ser gremista e eu, aqui no sul, colorado( e um apaixonado botafoguense), compartilho de algumas de suas reflexões e sentimentos, especialmente na última edição da Zero do dia 9 de dezembro, onde ao final do jornal, o articulista escreveu de seu lamento, sobre a perda de Pink, sua cadelinha de 13 anos de idade.





Também tenho um animal de estimação: meu gato persa Fontaine (assim como já tive um cachorro chamado Bonifácio), e sei bem da dor da perda de um animalzinho que se personificou, deixou de ser apenas um bichinho de estimação, um mascote, para se tornar um ente querido.

A perda faz parte das sensações e sentimentos que temos não só por pessoas, mas também na nossa relação com os animais, quando em nossos momentos de solidão temos nossos peludos, alados ou aquáticos companheiros, e também concordo com Sant'ana quando ele diz que os cães devem ter alma. "Se ela não tivesse alma, não teria deixado tamanha saudade". E a saudade é um dos sentimentos que decorre de, talvez, o nosso maior atributo enquanto seres humanos: a capacidade de amar.



Acerca do amor, o filósofo francês André Conte-Spomville, em sua obra Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (Martins Fontes, 2004), trata dessa sagrada virtude através de uma releitura dos gregos, trazendo um conceito de amor que envolve o emprego dos dois termos eros e philia, analisando o discurso de Sócrates, no Banquete de Platão. Lá, pode-se ver que às vezes o amor se reveste da dimensão do desejo, da paixão, do consumo ardente do amante incompleto que necessita ser completado por sua outra metade, o objeto amado, o ser desejado, mas nunca acessível, que alimenta a paixão pela iminência da perda ( o amor-eros). Por outro lado, o amor também pode ser visto enquanto cuidado, o zelo e a proteção do ser amado, daquele que se contenta em amar, mesmo não sendo amado, por lhe ser suficiente, tão somente, a existência do ser amado e a possibilidade de cuidá-lo, deixá-lo perto, senti-lo próximo, mesmo que ele se encontre distante ( o amor-philia). Talvez seja desse cuidado, desse zelo e desse contentamento com a possibilidade da guarda, que nos faz tão próximos de outros animais, que em sua bruta irracionalidade, tornam-se dóceis e queridos aos nossos afagos, ao nosso círculo protetor afetivo em busca de cuidar de nossos entes amados.

Gosto de pessoas e de animais e um dos primeiros pré-requisitos para eu me sentir atraído por uma mulher é ao menos ela gostar de bichos. Pode até não gostar de pessoas, mas amor pelos animais tem que ter ao menos um pouquinho. Não digo que precisa ser vegetariana, mas que também não cometa a sandice de sair correndo apavorada e histérica, toda vez que um animal peludo (e não é o Tony Ramos) se aproxime dela, roçando suas pernas ou tentando lamber os seus pés. É dessa dimensão da amor enquanto philia que nos revestimos e sentimos saudade, como disse Sant'ana, quando vemos em definitivo aquele ser amado partir, desvelando o nosso sonho de algum dia poder reencontrar aquele nosso ente querido (um pai, uma mãe, um irmão ou um animalzinho), nem que seja no além, em outra dimensão. Esse amor está revestido de uma aura de religiosidade, pois assim como a religião, nos ligamos ao ser amado por uma dimensão de afetividade pura, sem mesquizenhas, em toda pureza de nossas imperfeições e nossas fraquezas, entregando-nos ao ser amado, como quem se entrega a uma sublime divindade. Para Sponville, é a dimensão amorosa onde reside a fé, pois o amor vivenciado sob a ética da companhia ( o amor-companheiro, podemos dizer assim) nos traz e renova a fé de sempre estar presente junto ao ser amado, mesmo com a angústia e a dor da partida, o que faz com que vivamos as nossas lembranças, e as tornemos efetivas, numa perspectiva heideggeriana, já que, segundo Heidegger: a consciência também é um ente. O ser amado deixa de ser lembrança para tornar-se um ser existente exatamente porque existe enquanto lembrança! É por isso que a mãe ou o pai que guarda o leito do filho ausente (como diz a música de Chico Buarque) guarda não um fantasma,uma ilusão, mas sim a existência fática de um ente vivo, mesmo que vivo apenas em pensamento. Foi por isso que ao morrer seu passarinho, minha mãe construiu para ele um pequeno jardim, onde ele foi enterrado abaixo da janela de seu apartamento, para que as flores ali regadas permanecessem sempre vivas, assim como o cantarolar do saudoso "loro". Isso é obra do amor, e não um ato da tragédia, pois, assim como para os gregos, para nós, em nossa modernidade, comédia e tragédia podem ser as duas facetas da mesma moeda da condição humana. E nossa melhor condição é na condição de amar.

A paixão, esse ávido sentimento, tão peculiar aos poetas, talvez seja, na visão de Sponville um "pré-amor", ou um produto das armadilhas afetivas que só a busca do amor traz. A paixão circula em torno do desejo, se autoresolve autopoieticamente pelo desejo do consumo do objeto dessa paixão, que se autorreproduz pelo sentimento de perda. O apaixonado só assim é porque sabe que nunca terá por inteiro o ser amado, pois esse continuamente se desgarra de suas mãos, torna-se inacessível, distante. O motor das paixões é a ausência, a perda, pois, segundo a leitura de Platão, o homem não consegue se relacionar por completo com o outro, e tende a ver o outro narcisicamente como parte de si próprio. Por isso é comum o sentimento dos apaixonados de se sentir fraturado, de sentir que parte de si foi retirada, ou que permaneceu incompleto, pois aquele que o completava agora partiu. Uma parte na verdade que nunca foi sua, uma partícula de ser que nunca existiu. Construímos no objeto da paixão todo nosso referencial, pois, como Narciso, nos olhamos nos olhos do ser amado e vemos apenas nosso próprio reflexo, e não a real aparência do ser amado. No desejo desenfreado de nossa paixão queremos que o ser amado corresponda a todos os ditames autoritários de nossa paixão. Não desejamos que esse ser viva, que tenha existência própria, instrumentalizado que está na rede sufocante da paixão. Quantos crimes, quantas vilanias, quantos vilipêndios, quantas sandices sanguinárias não foram promovidas em prol da paixão?

Entretanto, a paixão tem também seu viés motivador que a conduz pelo oceano interno dos amantes quando amadurece, e ao invés de se consumir em si própria, evolui, e se torna amor. O amor verdadeiro não é aquele que prescinde da paixão, mas aquele que a doma, que a educa, que age como um zeloso pai numa loja de doces, não deixando que sua filha tão inquieta ( a paixão), no frêmito de seus desejos se consuma, incendeie ou se destrua, impelida por suas pulsões, por seus impulsos, pela fome devoradora que quer consumir a todo custo seu objeto desejado. O amor lida com uma paixão educada pela perda, convencida da necessidade do reconhecimento da ausência, da transformação da dor em lembrança, e é isso que faz com que tantos seres apaixonados tornem-se eternos enamorados, resistindo, sobrevivendo à vida, prosseguindo, repletos e propensos a distribuir amor.

O que sentimos pelos animais pode-se traduzir em autêntico amor-philia quando depositamos neles os atributos de responsabilidade e solidariedade depositados em pessoas para seres irracionais. Isso ocorre, na adversidade, pelo nosso sentimento de sempre contar com o outro, com o companheiro, quando as coisas se tornam difíceis. O ser amado é o que, mesmo distante, está sempre disponível, nos escuta, nos ouve, está a postos diante de qualquer sinal nosso de dor. Seja uma fúria, um choro, um lamento, uma risada, temos a nossa disposição nossos eternos mascotes, que não racionalizam (ao menos, no que sabemos) as razões de nossas condutas, e estão sempre ali prestes ( e prontos) a serem amados, como protagonistas de nossos romances pessoais. Foi assim na literatura com a cadela Baleia, do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos (alagoano de nascença, como eu), e foi assim com Jack London, em seu clássico romance O chamado da floresta (Call of the wild), contando a triste história do cachorro Buck, na época da "corrida do ouro", numa gélida América do Norte.



Partiu Pink, e com ela toda uma alegria de viver que o velho jornalista via nos olhos ávidos e carinhosos de um animalzinho que entre latidos e lambidas, só queria dar amor e se sentir amado. Parte o ser amado, reacendendo nossa paixão, mas fica, permanece esse mesmo ser, na lembrança, na saudade, pois é aí onde reside o amor. Sei bem o que se passa com Sant'ana, pois também sinto, choro, suplico e tenho os olhos tristes, ao pensar no dia que também terei que me despedir do meu querido Fontaine e só escutar os seus miados nos meus sonhos e lembranças. Imagino a dor de minha mãe, quando partir seu querido cão Leopoldo, hoje velho e doente. A mim, sobrarão as lembranças e a alegria da presença companheira de meu felino, testemunha de minhas noites incontáveis de sofrimento e êxtase ao vivenciar minhas paixões, assim como de tantas pessoas e animais, que já tive a capacidade e a benção de amar. Quanto ao amor, junto-me a ti, Paulo Sant'ana na quantidade quieta de lágrimas, compartilhando amorosamente a tua dor. Adeus, Pink!

2 comentários:

  1. Querido, Fernando!!!

    Há tempos desejo escrever-te algo, mas, dragada que fui pela vida moderna, só agora encontro tempo para aqueles que realmente parecem merecer os meus minutos, horas, segundos...
    Lendo esse post lembrei de uma história de Rubem Alves, logo mais postar-la-ei em blog próprio, e , não por acaso, recordo de minha-nossa viagem à Recife: "tudo se enche com a presença de uma ausência".
    Tenho dito que pessoas sensíveis são raras.
    Espero poder manter contato com esse meu mais novo amigo!
    Com carinho e saudades dos luhmannianos, todos, agradeço vossa visita no albergue, lamentando não estar presente, pois fui dar uma voltinha em Porto de Galinhas...

    Beijos
    Fernanda

    ResponderExcluir
  2. Agradável surpresa encontrar vosso comentário, Fernanda. Muito bem vinda e retomemos o contato sim. E viva os luhmannianos (pelo menos os que pagam a minha cerveja)!!! Beijos!!

    ResponderExcluir

Coloque aqui seu comentário:

Gates e Jobs

Gates e Jobs
Os dois top guns da informática num papo para o cafézinho

GAZA

GAZA
Até quando teremos que ver isso?